quarta-feira, 31 de março de 2021

O VALOR DA PALAVRA

 

Estudos linguísticos e a vida cotidiana mostram que a palavra é instrumento indispensável e determinante na constituição de processos culturais e humanísticos. Todo fenômeno humano depende da palavra, que tem força própria, em conexão com mundividências e com ordenamentos da mente. Inadequadamente empregada, a palavra pode ficar desprovida de sua força constitutiva e edificante. Pode ainda alimentar dissonância, sem propriedades para possibilitar o reconhecimento de novos horizontes na vida social, política e também religiosa. Expressar-se é atitude que exige responsabilidade – dizer com sabor do Evangelho – para bem desempenhar as próprias responsabilidades.

Não é difícil constatar que muitos se expressam de modo medíocre, sem conseguir gerar o que é necessário para promover o bem. Ao contrário, semeiam o caos, alimentado por quem não sabe falar com o sabor do Evangelho. Um descompasso comum nos muitos espaços de convivência e nas diferentes formas de relacionamento humano. Um pai de família que não sabe instruir seu filho, a partir de palavras alicerçadas no Evangelho, compromete a qualidade do processo educativo no contexto familiar. Dizer com o sabor do Evangelho precisa ser compromisso de todos, especialmente dos cristãos. Aos que professam a fé cristã, esse modo de dizer exige força de profecia – ser porta-voz da verdade que aponta a urgência de se tomar rumos novos para construir um mundo melhor. Exige também palavras de consolação, capazes de contribuir para que as pessoas encontrem sentido e esperança na vida – modos de se expressar que são bálsamo para o coração. A palavra dos cristãos, com sabor do Evangelho, deve ser, ao mesmo tempo, profética e consoladora, reconforto e lúcida força educativa, para ajudar a humanidade na conquista de novas compreensões.

Há de crescer a consciência do quanto é insubstituível e necessária a capacidade de se comunicar com o sabor do Evangelho, para levar harmonia e qualificação a muitos processos institucionais, inclusive nos âmbitos políticos, culturais e religiosos. Nesses diferentes campos, estabelece-se uma confusão de entendimentos, com a multiplicação de subjetivismos, nas estreitezas de interesses particulares e limitada perspectiva humanística. A liberdade de se expressar, neste tempo de muitas facilidades para fazer circular as próprias palavras, exige, neste mundo que permanece fechado à fraternidade social, um remédio: palavras com o sabor do Evangelho. É, a cada instante, um risco emitir juízos e opinar sem saber dizer com esse necessário sabor. Não basta somente usufruir-se do direito de dizer, ou valer-se dos meios tecnológicos para se expressar. Todos têm o dever de oferecer contribuição, em cada palavra, para estabelecer novo ciclo civilizatório, sem faltar com a verdade, promovendo as urgentes correções de rumos, plantando esperanças, a serviço de um desenvolvimento integral e inclusivo.

Para amalgamar tudo o que se aprende e se sabe, os recursos existenciais e profissionais aprendidos, para ser livre de um modo néscio de falar e, sobretudo, da incompetência na execução das próprias responsabilidades, é preciso, com humildade, inspirar-se na literatura sapiencial de Israel, na prece de Salomão, e suplicar: “Ó Deus, Senhor de misericórdia, que tudo fizeste com tua Palavra… para governar o mundo com santidade e justiça e exercer o julgamento com retidão do coração… dá-me a sabedoria… manda-a para que me acompanhe e trabalhe comigo…”. Assim, todos possam saber dizer com o sabor do Evangelho.

terça-feira, 30 de março de 2021

O BRASIL INVADIDO PELO EXÉRCITO INIMIGO.

Por José Roberto Torero* Sonhei que o Brasil tinha sido invadido pelo exército de outro país!

Aí, nos primeiros dias, quando o exército inimigo estava começando a tomar as nossas ruas, eu fui pra tevê e disse: “Calma, pessoal. Isso é só uma briguinha. Vamos continuar trabalhando senão todo mundo vai morrer é de fome.”

Quando francos atiradores já começavam a matar centenas de brasileiros por dia, um pessoal esquerdalhento disse que o povo precisava de máscaras, capacetes e coletes à prova de balas. Mas eu falei que esse treco de proteção era mimimi.

Pro povo pensar que estava seguro, mandei distribuir aqueles revolvinhos que disparam água. E chamei eles de hidroxipistolina. Não adiantou muita coisa, mas a fábrica de hidroxipistolina se deu bem.

Os estados protestaram no STF e conseguiram o direito de fazer barricadas. Eu tentei impedir, dizendo que as barricadas feriam a liberdade de ir e vir das pessoas. Mas perdi essa.

Para me vingar, não fiz um planejamento centralizado e coloquei o meu pior general para organizar a defesa.

Ofereceram armas tremendas para nós: tanques Pfizer, metralhadorasCovax e bombas chinesas. Mas eu disse que quem mandava era eu e não deixei comprarem porcaria nenhuma.

Chamei o pessoal que se escondia em bunkers de mariquinhas e disse que tinha que enfrentar o inimigo de peito aberto.

Pra dar o exemplo, aglomerei, joguei bola, fui na praia e passeei de jetski. O engraçado é que, logo depois que eu saía de um lugar, o inimigo bombardeava a cidade.

Nessa altura, a gente já estava perdendo mais de dois mil soldados por dia.

Eu dizia que quem estava matando o pessoal não era o inimigo. Era pneu que estourava no peito do cara, era diabetes, era velhice. Qualquer coisa, menos o inimigo.

Só quando já tínhamos perdido centenas de milhares de soldados é que eu liberei a compra de armas. Mas a distribuição foi bem lenta. Morreram mais sei lá quantos.

Até aí, tudo bem. Então começou o pesadelo de verdade. É que, quando finalmente o inimigo foi vencido, os sobreviventes foram pra rua e pediram a minha cabeça.

Pode tamanha ingratidão?

segunda-feira, 29 de março de 2021

FESTEJAMOS A PÁSCOA,

A história bíblica da saída do Egito contém o relato de dois relatos. O relato de Moisés, que vivendo na opulência da corte egípcia não suporta ver seu povo maltratado e o conduz à liberdade; e o relato do faraó, um déspota incapaz de mudar de rumo. O Faraó, um tirano que nada aprende da catástrofe, que ele mesmo alimenta, e Moisés, que usa a catástrofe para liderar seu povo para uma vida melhor.

Frente as pragas que assolavam o seu país, e que acabariam se os israelitas fossem liberados, o faraó não aceitava que sua onipotência fosse questionada, que um poder maior o exigisse a mudar de conduta. Um faraó insensível, que preferia ver seu povo morrer a reconhecer seus limites. Um faraó cegado pelo poder, que se alimentava de ódio, que não sabia o que é a compaixão.

As pragas, pelo sofrimento que produzem, nunca devem ser celebradas, mas sim lembradas, pois nos ensinam que a vida está composta por incertezas, que o inesperado está sempre à espreita, que sempre estaremos enfrentando o desconhecido. Perante elas, dependeremos do esforço de todos, da solidariedade e do apoio mútuo e, quando possível, de líderes preocupados com o bem comum, que transmitem esperança apesar da difícil travessia.

Festejamos Páscoa para recordar que a liberdade só é possível se formos solidários e nos indignamos com o sofrimento dos outros.

Festejamos Páscoa para lembrar que fomos escravos, e por isso devemos sempre confrontar toda forma de opressão.

Festejamos Páscoa para lembrar de nunca nos submetermos aos faraós, grandes e pequenos, e nem, sobretudo, de virarmos um faraó.

O nosso faraó interno, que não enxerga nem escuta, que é ignorante porque pensa que sabe tudo, e substitui o poder do sentimento pelo sentimento do poder.

O faraó que habita dentro de nós, em nossa vontade de que os outros se submetam a nossos desejos, em nossa dificuldade de conviver com o diferente.

O faraó que humilha, que ofende, que desrespeita aos mais fracos, que circula entre a indiferença ao sofrimento e o ódio a todos os que o incomodam por não aceitarem se submeter a sua vontade.

Porque viemos de longe, lemos os textos da tradição à luz da experiência e sabedoria acumulada.

Porque sabemos que os textos são sagrados quando servem para santificar a vida.

Porque quem foi perseguido não pode ser cumplice de nenhum tipo de perseguição, nem quem foi estigmatizado pode aceitar que alguém o seja.

Porque ser livre exige conviver com crenças diferentes, dissonantes das nossas, aceitando que todo problema tem várias soluções, e toda pergunta várias respostas.

Porque o passado nos traz ensinamentos para o presente, celebramos Páscoa e agradecemos:

Que vivemos, que existimos, que chegamos a este momento.

quinta-feira, 25 de março de 2021

COMPROMISSO COM A VIDA E A PAZ

Cantou-se, num tempo em que havia mais brotos de esperança, uma singela canção. Dessas canções que levam ao coração humano singular encantamento para bem viver. E também uma inocência, bálsamo e remédio para curar perversidades, indiferenças. Cantava-se assim: “Palavra não foi feita para dividir ninguém, palavra é a ponte onde o amor vai e vem”. Pois hoje, tempo de inusitada velocidade na circulação do que se fala, se verifica uma banalização da palavra, fenômeno poderoso para alavancar a banalização do mal. Até na defesa da verdade, busca-se demolir o outro, com ataques a reputações, um passo rumo ao autoextermínio. Dentre as consequências está o enfraquecimento de instituições que, neste momento desafiador, são chamadas a decisivamente contribuir com a recomposição do tecido sociopolítico e a abertura de novo ciclo na história.

Palavra não é simplesmente a emissão de um som com configuração sintática e semântica. É força que pode ser construtiva ou destrutiva. Então não se pode “dizer por dizer”. Não se deve “jogar palavras ao vento”. Nessa perspectiva, e considerando o atual momento, merece maior atenção o desafio existencial imposto pela pandemia, com seus desastres dolorosos – o número de mortes que enlutam corações, indicação de um verdadeiro genocídio. Este tempo demanda ainda mais palavras de consolação, que cultivam esperança nos que estão desolados, em razão da solidão, dos pés cansados, dos joelhos enfraquecidos, sem forças para continuar a lutar. De modo especial, é preciso sublinhar que os cristãos, morada do Espírito Santo de Deus – chamado de consolador, o paráclito, por Jesus – têm a irrenunciável tarefa de alimentar-se de consolação para consolar os outros.

Consolar é um ato de fé, capacidade para expressar palavras que reacendam a luz da esperança. Palavras que alimentem a coragem para que as pessoas continuem seus caminhos, iluminando a mente para imbuir-se das inegociáveis páginas e lições do amor de Deus. Infelizmente, o que se assiste hoje é a piora de cenários desoladores que atingem a humanidade, a sociedade brasileira. Uma situação agravada pelo coro de agoureiros, fonte diabólica de palavras que precipitam, deliberadamente, o povo no caos, ameaçando o seu destino e a sua história. Torna-se essencial reconhecer a função insubstituível da palavra, para ser contraponto aos que buscam inviabilizar o diálogo, cooptar desavisados e enfileirar fanáticos. Gente que, em nome de um tipo patológico de paixão, justifica o injustificável e defende o indefensável, nas molduras de negacionismos e de obscurantismos que são sintomas de sociopatias.

A banalização da palavra abriu campo para as fake news, de capacidade destrutiva, causando confusão, juízos equivocados, com consequências ameaçadoras para pessoas e instituições. Enquanto isso, convive-se com a lacuna de palavras ainda esperadas, de muitos líderes, incapacitados para dizer o que é necessário pela falta de formação humanística. A sociedade brasileira, agora de modo ainda mais urgente, precisa de líderes e cidadãos capazes de partilhar palavras que promovam reconstrução e respostas para os problemas contemporâneos. Os fracassos sociais são também adequadamente creditados aos que palreiam palavrórios sem força de edificação, na contramão da direção do bem, da justiça e da urgência maior que é salvar vidas.

Há um tipo de palavra que precisa, lucidamente, ser dita, e prevalecer no conjunto da sociedade, repercutindo nas instâncias de poder, para que a civilização encontre novo rumo. Essa palavra, para ser escutada, não necessita de gracejos divertidos, de pessoas que parecem estar em picadeiros. Trata-se da palavra de quem promove a amizade social, inspirando a solidariedade com suas exigências de novas lógicas e dinâmicas, particularmente aquelas capazes de resgatar os mais pobres e vulneráveis dos escombros da desigualdade social. Seja escutada a palavra de quem constrói pontes e recompõe cenários devastados. Pessoas que levam luzes de esperança onde há escuridão.

Indispensável é o exercício da escuta que leva a projetar a própria alma para além da mediocridade, conquistando uma amplitude a partir do amor à vida de todos. Nesse exercício, oportuno é se inspirar em São José, celebrado a cada dia 19 de março, no horizonte deste ano que é especialmente dedicado a ele, em razão dos 150 anos de sua proclamação como patrono da Igreja Universal. Exemplar pai de família, um dom para todos os católicos, São José, visitado pelo anjo, se mostrou admirável na capacidade para escutar. Por isso, alcançou compreensão adequada sobre o mistério maior do amor, o lugar da única fonte capaz de atrair para a escuta, gerar a palavra que edifica e sustenta pontes para o diálogo, consolidando o compromisso com a vida e a paz.

quarta-feira, 24 de março de 2021

DIA DA ÁGUA EM PLENA PANDEMIA

Este é o segundo ano no qual celebramos o Dia Internacional da Água em plena pandemia. Lavar as mãos e cuidar mais da higiene pessoal são preocupações primárias para todos. No entanto, como cumprir essas exigências sanitárias em um Brasil no qual água e saneamento ainda parecem luxos aos quais grande parte das pessoas não têm acesso?

Conforme dados oficiais, quase metade da população do Brasil continua sem acesso a sistemas de esgotamento sanitário. Quase 100 milhões de pessoas, ou seja, 47% dos brasileiros, utilizam medidas alternativas para lidar com os dejetos – seja através de uma fossa, seja jogando o esgoto diretamente em rios. Além disso, mais de 16% da população, ou quase 35 milhões de pessoas, não têm acesso à água tratada, e apenas 46% dos esgotos gerados nos país são tratados.

O fato da ONU consagrar o dia 22 de março como Dia Internacional da Água nos recorda que, além da pandemia, vivemos uma crise que abrange toda a humanidade e afeta o planeta Terra. O modo de organizar o mundo, baseado na exploração de seres humanos e na destruição da natureza não tem mais sustentação. Dos mais de sete bilhões de pessoas que habitam a face do planeta, apenas 1% goza os privilégios desta sociedade consumista e predadora da humanidade e da Terra.

A consciência dos limites do planeta começou a surgir a partir da década de 60, mas aprofundou-se na década de 70 e generalizou-se a partir da década de 80. Entre todos os bens da Terra e da Vida, o mais ameaçado é a água. É o maior problema ecológico de nossos tempos e é motivo de conflitos e guerras entre vários povos em quase todos os continentes. Se um bilhão e duzentos milhões de seres humanos não têm acesso à água potável e milhões de crianças, em muitos países pobres, morrem em consequência do uso de águas impróprias para a saúde, não podemos mais não cuidar com prioridade desta questão. O uso que a sociedade faz da água aumenta sempre. Enquanto isso, por causa da poluição e do aquecimento global, os rios diminuem de volume normal. Muitos estão agonizantes, como o São Francisco. Na região amazônica, grandes rios contaminados por mercúrio. Em Minas Gerais e outras regiões do país, rios mortos pelos elementos tóxicos jogados pelas barragens das mineradoras. A cada dia, em todas partes, as fontes de água diminuem e o uso das águas continua predatório.

Essa realidade ainda se torna mais problemática porque a sociedade capitalista transforma a água em mercadoria e a privatiza. Empresas como a Coca-Cola, a Nestlé e Danoni se tornam donas de fontes de águas. Atualmente, todas as fontes minerais da cidade de São Lourenço, MG e a própria água que serve à cidade são propriedade particular da Coca-cola e são vendidas como mercadoria.

Muitos grupos da sociedade civil têm se mobilizado contra este crime. O Uruguai conseguiu passar uma lei na nova Constituição Federal que proclama claramente: “A água é uma necessidade e direito de todos os seres vivos. Por isso, não poderá ser privatizada nem mercantilizada”.

A resistência contra a mercantilização da água continua difícil e violenta. Basta lembrar a lei que privatiza o saneamento, lei sancionada pelo atual presidente em 15/07/2020. Mas, a organização da sociedade civil mais consciente e os grupos ecológicos não descansam. Grupos organizados aceitam pagar os serviços da empresa que nos traz água até em casa, mas não pagar pela água.

Na Itália, em 2004, as comunidades se organizaram e conseguiram obter uma grande vitória: obrigaram 136 prefeituras a retirar a deliberação – já muitas vezes, implementada – de privatizar a água. De lá para cá, a luta se ampliou e espalhou-se por outras regiões e países.

É importante que todos(as) tomem consciência do problema. É urgente educar-se e educar os seus a tomar todo cuidado para poupar água, proteger rios e fontes próximos à sua casa ou em sua região. Além de cuidar do consumo da água na própria casa e outros espaços que frequenta, quem tem possibilidades, pode formar espontânea e civilmente comissões de defesa das bacias hidrográficas, previstas em lei federal ou participar ativamente nos Comitês de Bacias Hidrográficas onde eles já foram implementados.

No Brasil e em todo o mundo existem várias organizações consagradas à luta pela democratização da água. Elas pedem à ONU que proclame a água como bem comum da humanidade e direito universal de todo ser vivo. Em todas as regiões, se podem participar dessas associações. Assumir, individual e coletivamente, a responsabilidade desta questão vital e juntar-se a todas e todos que se propõem a ser guardiões da água é fazer com que a Paz e a Justiça possam ocorrer no mundo.

segunda-feira, 22 de março de 2021

NOITE DOS CRISTAIS À BRASILEIRA?

Segundo parte do texto que escreveu e publicou Jean Goldenbaum: Possivelmente a maior ação da SA foi a ‘Kristallnacht’(“Noite dos Cristais”), ocorrida entre 9 e 10 de novembro de 1938. Este episódio, compreendido como o prelúdio para a ‘Endlösung der Judenfrage’ (“Solução final da questão judaica”, ou seja, a eliminação do povo judeu através do genocídio), consistiu em um pogrom (ataque violento e massivo a um grupo étnico) aos judeus em toda a Alemanha. Dezenas foram assassinados, milhares foram espancados, centenas de sinagogas foram depredadas e queimadas. E quem arquitetou tudo isso foi a SA. Milhões de civis, de “pessoas normais”, ajudaram, espancaram, depredaram. Conheci testemunhas (tanto judeus quanto não-judeus) que estavam lá e viram tudo com seus próprios olhos. Embora a ação fosse extraoficial, ou seja, não partiu de uma ordem governamental, o governo hitlerista sabia que aconteceria e obviamente não somente permitiu, mas também legitimou e encorajou os atos. Por fim, a polícia nazista ainda por cima prendeu cerca de 30 mil judeus.

Agora pergunto à leitora e ao leitor: qual é o próximo passo no Brasil de Bolsonaro? Um governo nazifascista já está no poder; seu líder possui dimensão mítica e é adorado de maneira sectária; a ideologia do ódio e da dominação sobre outros está solidificada aos seus seguidores; agora eles possuem um grupo paramilitar armado com o propósito de proteção e intimidação; os inimigos já estão escolhidos; a máquina de fake news mostra-se mais eficiente do que nunca. E ainda por cima há a pandemia que agrega a tudo isto a questão do genocídio. Ainda que de maneira diversa à de Hitler, não nos esqueçamos que quem mais morre de COVID-19 é o preto pobre e o indígena, e não o branco rico. A política higienista também é evidente.

O próximo passo é uma espécie de Noite dos Cristais brasileira? Desta vez as vítimas não seriam os judeus, mas sim os esquerdistas que “sacrificam crianças como os judeus faziam”, como postou ontem o deputado bolsonarista Roberto Jefferson em seu Instagram? E junto com os esquerdistas a comunidade LGBT+ como um todo, com seus “kit gays” e suas “mamadeiras”? E as feministas com seus “movimentos diabólicos”?

Já aviso que se isso acontecer, não será idêntico a 1938, não esperem isso. Mas será muito semelhante em termos de ideologia, propósito e método. E com uma roupagem contemporânea, é claro. Ou alguém considera impossível ou improvável que gradualmente vejamos ataques e linchamentos por parte de milicianos sobre os alvos do bolsonarismo? Acredito que nesta altura da história não há ninguém mais tão ingênuo sobre tudo o que esse movimento pode proporcionar, não?

Cabe ainda uma lembrança mais. Este vídeo atual não é a primeira aparição deste grupo de boinas-vermelhas. Em maio de 2020 eles visitaram seu Führer no Palácio da Alvorada e proporcionaram uma cena que também deverá entrar nos livros de história, que está devidamente registrada e pode-se facilmente encontrar na internet. Todos se reuniram em frente ao presidente e o saudaram erguendo seus braços direitos estendidos. Exatamente igual à saudação hitlerista. Depois justificou-se por aí que eles estavam rezando e, aparentemente, alguns evangélicos rezariam com suas mãos estendidas à frente… Estratégia “manjada” de propaganda. Produz o imaginário, o registra e o imprime na mente das pessoas, e depois desmente com uma desculpa qualquer. Na época mostrei a foto deste episódio a amigos alemães, que obviamente ficaram completamente estarrecidos ao verem imagens dos livros de história saltarem aos seus olhos em sua contemporaneidade.

Encerro este artigo lembrando a todos que o monstro não enganou ninguém sobre quem ele era. Ele sempre se mostrou. Para os minimamente atentos já era claro que ele representava o Neonazifascismo no Brasil desde 2018. Agora ele tem o poder, e a última coisa que está em seus planos é largá-lo. Tudo o que Trump fez para assassinar a Democracia nos EUA – e foi o maior ataque a ela na história daquele país – Bolsonaro estará disposto a fazer em dobro. Por isso não é hora de subestimar um líder que já chegou tão longe e segue passo a passo a cartilha de Hitler. Eles estão armando a “Sturm verde-amarela” e estão anunciando abertamente diante de nossos narizes. Ou aprendemos com a história da humanidade, ou tudo de ruim que já ocorreu desde 2018 pode ter sido somente o prelúdio de coisas muito piores que ainda virão.

quarta-feira, 17 de março de 2021

A MUDANÇA SOCIAL ESPERADA POR TODOS.

 

A sociedade civil e a comunidade política são interdependentes, mutuamente se influenciam. Mas é preciso reconhecer: a sociedade civil tem, hierarquicamente, primazia sobre a comunidade política. A Doutrina Social da Igreja ensina que o contexto político deve estar a serviço da sociedade civil, dedicando-se ao seu bem e ao seu equilíbrio. Contudo, os cenários de devastação, com mortes, violências, fome, desemprego e descompasso social, demonstram sobejamente que há descaso em relação à primazia da sociedade civil. A população brasileira é vítima das ineficiências da comunidade política, que não cumpre adequadamente as suas tarefas. O conjunto de desajustes no enfrentamento da pandemia é sinal desta realidade, com impactos ainda mais graves na vida dos pobres e vulneráveis.

Entre as vergonhosas feridas sociais, causa especial tristeza a fome de milhares de pessoas que habitam este território abençoado por Deus – com riquezas para ser um celeiro do mundo. Uma contradição que revela desafio da sociedade civil: recuperar a sua primazia, uma tarefa cidadã. A assustadora desconsideração desse primado leva a atrasos civilizatórios que demandarão muito tempo e esforços extraordinários, sobretudo lucidez e competência, para serem superados. A tarefa cidadã de recuperar a primazia da sociedade civil é desafiadora e exige dedicação a processos que promovam o bem comum. Isto significa, neste momento, salvar vidas do vírus mortal, da fome e do desemprego, contando com quem tem competência para corrigir descompassos gerados por carências humanísticas e opções cegas que vêm alavancando a atual crise.

Urgente é uma reação ancorada nos princípios da legalidade, para que a administração pública, em qualquer nível – nacional, estadual, municipal – cumpra a sua finalidade de servir aos cidadãos. O Estado é o gestor dos bens do povo, devendo administrá-lo para garantir o bem comum. Quando administradores públicos negociam ou vilipendiam o bem comum comprovam a própria incompetência. Trata-se de crime inaceitável. Por isso, posturas, escolhas e a adoção de caminhos que sejam contraponto ao equilíbrio global da sociedade não devem ser aceitos.
 
A comunidade política há de ser modificada a partir das indicações da população sobre a necessidade de se tomar novo rumo, por meio de recursos legais corretivos. Sem esse novo rumo, vidas continuarão a ser dizimadas e instituições, sustentáculos dos funcionamentos democráticos, perderão força – prevalecerá um verdadeiro caos. A sociedade civil, detentora da primazia, tem o dever de investir no equilíbrio, livrando-se das paixões que costumam cegar. Neste horizonte, é fundamental convencer, a partir do diálogo, aqueles que equivocadamente optam pelo caos, achando que se trata do melhor caminho – uma ilusão. Essas pessoas dedicam-se, ou submetem-se, às manipulações e às falácias que se camuflam na defesa de algumas poucas “bandeiras”. Ignoram, assim, tantas outras “bandeiras” que precisam ser defendidas e carregadas para gerar as mudanças sociais esperadas por todos.

PELA JUSTIÇA E PELA PAZ

 

Entre as vergonhosas feridas sociais, causa especial tristeza a fome de milhares de pessoas que habitam este território abençoado por Deus – com riquezas para ser um celeiro do mundo. Uma contradição que revela desafio da sociedade civil: recuperar a sua primazia, uma tarefa cidadã. A assustadora desconsideração desse primado leva a atrasos civilizatórios que demandarão muito tempo e esforços extraordinários, sobretudo lucidez e competência, para serem superados. A tarefa cidadã de recuperar a primazia da sociedade civil é desafiadora e exige dedicação a processos que promovam o bem comum. Isto significa, neste momento, salvar vidas do vírus mortal, da fome e do desemprego, contando com quem tem competência para corrigir descompassos gerados por carências humanísticas e opções cegas que vêm alavancando a atual crise.

Urgente é uma reação ancorada nos princípios da legalidade, para que a administração pública, em qualquer nível – nacional, estadual, municipal – cumpra a sua finalidade de servir aos cidadãos. O Estado é o gestor dos bens do povo, devendo administrá-lo para garantir o bem comum. Quando administradores públicos negociam ou vilipendiam o bem comum comprovam a própria incompetência. Trata-se de crime inaceitável. Por isso, posturas, escolhas e a adoção de caminhos que sejam contraponto ao equilíbrio global da sociedade não devem ser aceitos.  Diante do compromisso de amar a todos, sem exceção, o amor a um opressor não significa consentir com as suas atitudes. Pelo contrário, amar corretamente o opressor, conforme ensina o Papa Francisco, é procurar, de várias maneiras, fazê-lo deixar de oprimir, tirando-lhe o poder que é mal administrado e que o desfigura como ser humano.

A comunidade política há de ser modificada a partir das indicações da população sobre a necessidade de se tomar novo rumo, por meio de recursos legais corretivos. Sem esse novo rumo, vidas continuarão a ser dizimadas e instituições, sustentáculos dos funcionamentos democráticos, perderão força – prevalecerá um verdadeiro caos. A sociedade civil, detentora da primazia, tem o dever de investir no equilíbrio, livrando-se das paixões que costumam cegar. Neste horizonte, é fundamental convencer, a partir do diálogo, aqueles que equivocadamente optam pelo caos, achando que se trata do melhor caminho – uma ilusão. Essas pessoas dedicam-se, ou submetem-se, às manipulações e às falácias que se camuflam na defesa de algumas poucas “bandeiras”. Ignoram, assim, tantas outras “bandeiras” que precisam ser defendidas e carregadas para gerar as mudanças sociais esperadas por todos.

Os que optam pelo caos, dedicando-se às falácias e às manipulações, ajudam a conduzir a sociedade na direção de extremismos e radicalismos. Querem promover demolições de todo tipo, a partir de linguagem desestabilizadora, sem fidelidade à verdade, propagando mentiras para alcançar seus objetivos. Os saudosismos político-partidários também não contribuirão para que seja construído um tempo novo, com mais respeito à vida, em todas as suas etapas. Para que urgentemente seja consertado o contexto social é preciso investir na dimensão moral que qualifica a cidadania e, consequentemente, as autoridades. Isto significa alicerçar-se na dimensão que está fora do arbítrio e da vontade dos que estão no poder, fortalecendo as instituições.

A partir de suas identidades e missões, as instituições têm o papel de “ir a campo para nova semeadura”, limpando discursos, arejando mentes, para que sejam intuídas novas ações capazes de promover o primado da sociedade civil e da defesa do bem comum. Ações corajosas e transformadoras na contramão de negociatas. Com a tarefa de se avançar no combate à pandemia, todos assumam o compromisso de dialogar mais sobre os rumos políticos do País, exigindo que as instâncias do poder alicercem-se nos parâmetros da ciência e da boa governança. A fidelidade a esse compromisso é que possibilitará a construção de nova realidade social, política, econômica, cultural e religiosa capaz de recuperar a primazia da sociedade civil, fundamentada na democracia – construtora e guardiã do bem comum pela justiça e pela paz.

terça-feira, 16 de março de 2021

RECUPERAR A ESPERANÇA



A crise brasileira é uma crise política. Os partidos perderam sua legitimidade, pois todos eles embarcaram em manobras de conjuntura, olhando para as nuvens, e não para o céu, para os ganhos e perdas deles, e não do pais, Como se Bolsonaro ficar ou sair fosse um programa político para o futuro do Brasil. Estamos presos a bolhas que nos apequenam.

Chegou a hora de a sociedade civil exigir dos políticos comprometidos com o bem público a se disporem a trabalhar juntos, pensando no futuro, e não em candidatos. Devem fazer avançar uma frente política, suprapartidária, que coloque como prioridade no Congresso Nacional a reforma política.

Só uma reforma política que diminua o número dos partidos, permita ao eleitor ter maior informação e controle sobre seus representantes e reduza o custo e regule o financiamento das campanhas, poderá permitir que o próximo Congresso não seja uma versão do atual, que inviabiliza a governabilidade.

Uma frente parlamentar, de políticos dos mais diversos partidos, que inclusive possa gerar a base de uma nova agrupação eleitoral, com um programa mínimo de reformas básicas que tirem o pais do atoleiro.

Um programa que acompanhe os sentimentos amplamente difundidos na cidadania: em favor de um Estado que se concentre em oferecer serviços públicos de qualidade e apoie os setores mais desfavorecidos, e de uma economia com menos amarras burocráticas e carga tributária.

Uma frente que lute por uma reforma da Previdência que elimine primeiro os privilégios mais gritantes usufruídos por políticos e setores de funcionários públicos, para logo ter a legitimidade necessária para fazer avançar outras medidas mais amplas.

Uma frente que possa ser o embrião de um partido político que se assuma como um centro radical, sensível tanto às necessidades sociais como às demandas empresariais legitimas, que modernize o Estado, avesso ao corporativismo e com um sólido código de ética, aberto às transformações de valores promovidos por grupos identitários e às exigências de respeito ao meio ambiente.

Poderemos assim mudar de rumo, salvar a democracia e recuperar a esperança.

segunda-feira, 15 de março de 2021

ANIMAIS POLÍTICOS

“Não há nada mais político do que afirmar que a religião nada tem a ver com a política”, disse o bispo sul‑africano Des­mond Tutu. Na América Latina, não se pode separar fé, polí­tica e ideologia, assim como não seria possível fazê‑lo na Palestina do século I. Na terra de Jesus, quem detinha o poder político detinha também o poder religioso. E vice‑versa.

Talvez soasse estranho hoje a certos ouvidos religiosos introduzir a leitura do Evangelho falando de Trump, Macron ou Putin. No entanto, ao introduzir‑nos nos relatos da prática de Jesus, Lucas primeiro nos situa no contexto político, informando‑nos que “já fazia quinze anos que Tibério era imperador romano. Pôncio Pilatos era governador da Judéia, Herodes governava a Galileia e seu irmão Filipe, a região da Ituréia e Traconites. Lisânias era governador de Abilene. Anãs e Caifás eram os presidentes dos sacerdotes” (3, 1‑2).

Foi sob o símbolo da cruz que a colonização ibérica na América Latina promoveu o genocídio indígena e o saque das riquezas naturais. Sob a silenciosa cumplicidade da Igreja Cató­lica, mais de 10 milhões de negros foram levados da África como escravos para o Continente. Com a conivência de nossas Igrejas cristãs, instalou‑se, em nossos países, o sistema burguês de dominação capitalista.

Portanto, não se trata de vincular fé e política somente quando nos referimos aos atuais processos de libertação. Isso seria ideológico, no primeiro sentido que Marx atribuiu a este termo, ou seja, uma tentativa de camuflar os fatos com uma racionalização que separa, em nível da linguagem, o que se encontra unido em nível da realidade. O fato de fé, política e ideologia estarem sempre vinculados em nossas vidas concretas, como seres sociais que somos ‑ ou animais políticos, na expressão de Aristóteles ‑ não deve constituir uma novidade senão para aqueles que se deixam iludir por uma leitura fundamentalista da Bíblia, que pretende desencarnar o que Deus quis encarnado.

A fé é um dom do Pai a nós que vivemos neste mundo. Na vida após a morte, nossa fé será vã, pois veremos a Deus face a face. Portanto, a fé é um dom politicamente encarnado, que tem razão de ser nesta conflitividade histórica, na qual somos chamados, pela graça, a distinguir o projeto salvífico de Deus. Nesse sentido, nem mesmo em Jesus é pos­sível ignorar a íntima relação entre fé, política e ideologia, ainda que para alguns cristãos pareça estranho aplicar certas cate­gorias Àquele que nos assegura, por sua ressurreição, a vitória, em última instância, da vida sobre a morte e da justiça sobre a injustiça.

Que Jesus tinha fé o sabemos pelos textos que nos falam dos longos momentos que ele passava em oração (Lucas 4, 16; 5, 16; 6, 12). Ora, só quem necessita aprofundar sua fé entrega‑se ao encontro orante com o Pai. A oração é para a fé o que o adubo é para a terra ou o gesto de carinho para o casal que se ama. O Evangelho nos fala até mesmo das crises de fé de Jesus, como as tentações no deserto (Mateus 4, 1‑11; Marcos 1, 12‑13; Lucas 4, 1‑13) e o abandono que ele sentiu na agonia no horto das oliveiras (Mateus 26, 36‑36; Marcos 14, 32‑42; Lucas 22, 39‑46).

Há quem insista que Jesus, motivado por sua fé, restrin­giu‑se a comunicar‑nos uma mensagem religiosa que nada tinha de política ou de ideológica. Tal leitura só é possível se redu­zimos a exegese bíblica à pescaria de versículos, arrancando os textos de seus contextos. Ora, não só o texto nos revela a Palavra de Deus, mas também o contexto social, político, econômico e ideológico, no qual se desenrola a prática liber­tadora de Jesus.

Todos nós cristãos somos inelutavelmente dis­cípulos de um prisioneiro político. Mesmo que na consciência de Jesus houvesse apenas motivações religiosas, sua aliança com os oprimidos, seu projeto de vida para todos (João 10, 10), tiveram objetivas implicações políticas.

Já na introdução de seu Evangelho, Marcos mostra como as curas operadas por Jesus ‑ o homem de espírito mau, a sogra de Pedro, os possessos, o leproso, o paralítico, o homem de mão aleijada ‑ desestabilizaram tanto o sistema ideológico e os interesses políticos vigentes, que levaram dois partidos inimigos ‑ o dos fariseus e o dos herodianos ‑ a fazerem aliança para conspirar em torno de “planos para matar Jesus” (3, 6). Assim, vê‑se que as implicações políticas da ação salvífica de Jesus tornaram‑se tão graves e ameaçadoras que induziram Caifás, em nome do Siné­drio, a expressar que era “melhor que morra apenas um homem pelo povo do que deixar que o país todo seja destruído” (João 11, 50).

sábado, 13 de março de 2021

UM FUTURO DIGNO DE SEU VALOR


E qual será a razão de minhas lágrimas? Assistia à cerimônia de “inauguration” de Joseph Biden como presidente dos Estados Unidos. Havia emoção, alegria discreta, uma liturgia cívica belamente preparada. E a presença das 400 mil vítimas da Covid-19 no país simbolizadas por bandeiras, que tremulavam na manhã luminosamente ensolarada e ventosa.

A realidade vivida por mim no passado não impede que me indignem certas tendências históricas e políticas internas e externas do país. Critico seu imperialismo linguístico, uma certa arrogância que crê poder se apossar de tudo e de todos os ambientes como se seus fossem. No entanto, aprendi a perceber que as feridas maiores da sociedade estadunidense são sentidas com dor por parte dos próprios cidadãos. E quando se comprometem na luta contra elas, o fazem de corpo inteiro. É assim com o racismo, a pena de morte, a questão das migrações e outros problemas maiores.

Com a eleição de Trump, o país se fraturou de maneira extremamente negativa. A política agressiva e violenta do ex-presidente afetou a convivência interna do país, mas também e talvez principalmente, sua imagem externa. Respirava-se um ambiente conflitivo e hostil com relação ao que sempre fora o perfil dos Estados Unidos como terra da acolhida e da liberdade. As crianças migrantes, separadas dos pais, habitando jaulas foi uma imagem que marcou o mundo inteiro.

Trump foi eleito em 2016. E, em 2018, o Brasil deixou perplexos muitos que vimos a ascensão à presidência de um líder que apresentava perfil semelhante. A pandemia escancarou ainda mais a semelhança do estilo de governar. A tragédia de milhares de vítimas repetiu-se lá e cá.

Diante desta realidade, a eleição presidencial nos Estados Unidos, em outubro, era esperada com ansiedade também aqui, ao sul do Equador. Por isso, a cerimônia  tocou certamente a afetividade de muitos brasileiros, que viram ali a esperança de algo semelhante para um futuro próximo.

A palavra de ordem que vigorou ao longo da cerimônia foi “união”. Unir um país fraturado, curar as feridas provocadas pelos radicalismos e ódios. O novo presidente fez seu juramento sobre uma Bíblia antiga, pertencente a sua família há 127 anos.

E, então, de repente senti as lágrimas. Ali cabia emoção de gratidão e esperança. Foi superado um momento difícil e doloroso para todo um povo. A democracia e a liberdade, mesmo ameaçadas até o último minuto, com tentativas de questionar a legitimidade da eleição e com a terrível invasão do Capitólio, venceram. Ali estava o presidente legitimamente eleito iniciando seu mandato.

Mas há esperança e alegria. Há um futuro possível. Joe Biden teve que superar várias vezes o luto de seres queridos em sua própria vida. Esse aprendizado deverá servir-lhe. Kamala Harris, sendo mulher, negra e de ascendência asiática, já nasceu devendo buscar a vida em cada passo de sua vitoriosa trajetória. Certamente isso fará a diferença em seu trabalho.

As lágrimas me trouxeram a esperança de que o Brasil também possa em breve viver um momento assim. Nosso povo vergado pelas muitas adversidades dos últimos tempos merece acreditar que é possível, continuar lutando, e esperando, e construindo um futuro digno de seu valor.

sexta-feira, 12 de março de 2021

MEU LADO MULHER

 

Hoje faço minhas as palavras de Frei Betto:

"Meu lado mulher incomoda-se de receber homenagens em um único dia do ano – 8 de março –, enquanto meu lado homem se farta com 364 dias. Porque vive-se em uma sociedade machista: matrimônio – o cuidado do lar; patrimônio – o domínio dos bens.

À mulher, exige-se que seja polivalente, cabe o dever de cuidar da casa, dos filhos, das compras e do bom-humor do marido, que nem sempre se lembra de cuidar dela. E trabalhar fora para ajudar no sustento da família.

Meu lado mulher nunca viu o marido gritar com o carro, ameaçá-lo ou agredi-lo. Nem sempre, entretanto, ela é tratada com o mesmo respeito. Esquece que marido e mulher não são parentes, são amantes. Ou deveriam ser.

Na Igreja Católica, os homens têm acesso aos sete sacramentos. As mulheres, consideradas pela teologia vaticana um ser naturalmente inferior, só têm acesso a seis sacramentos. Não podem receber a ordenação sacerdotal, embora tenham merecido de Jesus o útero que o gerou; o seguimento de Joana, de Susana e da mãe dos filhos de Zebedeu; a amizade de Madalena, primeira testemunha de sua ressurreição.

Meu lado mulher tem pavor da violência doméstica; do imbecil que diz bobagens quando a garota passa; do pai que assedia a filha, jogando-a nas garras da prostituição; do patrão que exige préstimos sexuais da funcionária; do marido que ergue a mão para profanar o ser que deu à luz seus filhos.

Diante da TV ou de uma banca de revistas, meu lado mulher estremece: ela é a burra, a idiota que rebola no fundo do palco, expõe-se na casa dos brothers, associa-se à publicidade de cervejas e carros, como um adereço a mais de consumo.

Meu lado mulher tenta resistir ao implacável jogo da desconstrução do feminino: tortura do corpo em academias de ginástica; anorexia para manter-se esbelta; vergonha das gorduras, das rugas e da velhice; entrega ao bisturi que amolda a carne segundo o gosto da clientela do açougue virtual; o silicone a estufar protuberâncias. E manter a boca fechada, até que haja no mercado um chip transmissor automático de cultura e inteligência, a ser enxertado no cérebro. E engolir antidepressivos para tentar encobrir o buraco no espírito, vazio de sentido, ideais e utopia.

Meu lado mulher esforça-se por livrar-se do modelo emancipatório que adota, como paradigma, meu lado homem. Serei ela se ousar não querer ser como ele. Sereia em mares nunca dantes navegados, rumo ao continente feminino, onde as relações de gênero serão de alteridade, porque o diferente não se fará divergente.

Aquilo que é só alcançará plenitude em interação com o seu contrário. Como ocorre em todo verdadeiro amor."

quinta-feira, 11 de março de 2021

VER O CIRCO PEGAR FOGO.

 

 “A história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos”. Mais adiante, o papa aponta para a existência de um fenômeno, “uma espécie de desconstrucionismo, em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero”. Para isso, vale-se até mesmo do caos. Entre as vítimas desse processo estão as instituições. Perversas dinâmicas tentam enfraquecê-las, ameaçando fazê-las desaparecer. O objetivo é garantir “caminho livre” para a disseminação de absurdos.

Trata-se de um processo suicida, com ataques que buscam convencer a população de que é possível viver sem as instituições. Esses ataques são promovidos por quem conhece as forças e fraquezas de contextos institucionais. Os resultados nefastos levam a uma espécie de anarquia e de descrédito, solapando raízes importantes e intocáveis que asseguram o Estado democrático de direito. Esses ataques também enfraquecem fundamentos bimilenares que sustentam serviços educativos e culturais decisivos para avanços na humanidade. Curiosamente, aqueles que combatem as instituições se autoproclamam avessos a ideologias nefastas e inaceitáveis, mas apenas se revestem de uma fachada para iludir, pois empunham “bandeiras” da irracionalidade.

A força perversa do desconstrucionismo é velada, com propriedades para arrebanhar muitas pessoas – naturalmente os incautos e os pouco conscientes a respeito de um mundo fechado em suas sombras. Em razão da incapacidade para discernir, aqueles que se propõem a defender valores e princípios inegociáveis de suas instituições promovem o inverso. Prejudicam seus contextos institucionais. Servem de estopim e provocam explosões na instituição em que estão vinculados. Estão sempre nos fronts de ataques com seus posicionamentos. Em vez de defenderem seus contextos institucionais, acabam por contribuir com aqueles desejam destruí-los. Não são bastiões da verdade, dos valores e dos princípios que anunciam defender. Ao contrário, alimentam rupturas, distanciando-se de suas instituições, fragilizando-as e, consequentemente, enfraquecendo-se.

Nas fileiras dos que atacam as instituições estão os que abraçam radicalismos e extremismos, fortemente presentes nas redes sociais. Em nome da defesa de uma perspectiva, radicais e extremistas acham-se no direito de promover ataques e destruições. Propõem-se a demolir imagens, reputações e funcionamentos institucionais. Distanciam-se do objetivo de promover ajustes ou recomposições. Acham que suas considerações são profecias, mas, na verdade, constituem alimento para rupturas anarquistas.

Essas pessoas têm pouco tecido humanístico e objetivam promover absurdos. Pautam suas palavras e posicionamentos para causar desmoralização, cooptando a opinião pública. Assim, ganham visibilidade pelo viés de uma perversão. Aparentam ser defensores do que é incontestável, especialmente nos ambientes religioso e político, mas suas atitudes fundamentam-se em um autoritarismo fecundado por exacerbado subjetivismo e narcisismo. Conseguem iludir muitos. Contribuem para promover a decomposição social, prejudicando a sociedade no enfrentamento de tarefas urgentes, a exemplo da busca pela superação de muitas crises, da pandemia com seus números assustadores de mortos e infectados, da desigualdade cruel que acentua a pobreza. No lugar de soluções para problemas urgentes, os que se dedicam a extremismos e radicalismos querem mesmo é ver “o circo pegar fogo”.


terça-feira, 9 de março de 2021

A FOME, A LIBERDADE E O SONHO.

Ontem, Dia Internacional da Mulher, não posso deixar de registrar minha emoção ao ler a notícia de que no último dia 25 de fevereiro de 2021 Carolina Maria de Jesus recebeu o Doutorado Honoris Causa pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Em meio a todo o caos que o Brasil vive, com a aceleração exponencial da pandemia, a escassez de vacinas, as decisões e hesitações chocantes do governo e o drama do aumento da pobreza, enfim uma novidade luminosa.

Com sua impressionante imaginação e talento literário, Carolina atribui até mesmo uma cor à fome: o amarelo. Ao mesmo tempo, o amarelo em seu livro é a cor da vida. Todos os dias a escritora abria a janela, olhava para o céu e lá estava o sol, amarelo e luminoso. Essa luz, a cada manhã era mensagem de esperança de uma vida melhor, onde as trevas da fome e da miséria seriam vencidas e suplantadas.

Carolina é uma mulher livre, que por prezar tanto sua liberdade jamais se casou. Vê a vida que levam suas vizinhas oprimidas pelo machismo dos companheiros e se regozija de sua escolha de vida. As mulheres que moram na favela como ela e vivem com seus homens devem “mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. À noite, enquanto elas pedem socorro, eu tranquilamente, no meu barracão, ouço valsas vienenses… Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas.”

Que mulher é essa que identifica o gênero musical das valsas para expressar sua tranquilidade de mãe sozinha e sem companheiro? É a mesma que transcende a miséria através da escrita e envia inclusive mensagens a Deus, em quem pensa e com quem dialoga, olhando em volta e sentindo sua dura e injusta realidade. “Será que Deus sabe que existem as favelas, que os favelados passam fome?”. “Só Deus para ter dó de nós”. “Deus é sombrio. É o advogado dos humildes. Os pobres são criaturas de Deus”. “Deus precisa iluminar os brancos para que os pretos sejam felizes.”

Essa poeta era agraciada por Deus com sonhos consoladores e iluminados como os profetas e os patriarcas bíblicos. Ali experimentava a plenitude que sua vida de favelada não lhe permitia tocar no cotidiano. “… Eu durmi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vistido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas organizaram um espetáculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso. Quando despertei, pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num espetáculo, por isso Deus envia-me estes sonhos deslumbrantes para minh´alma dolorida. Ao Deus que me protege, envio os meus agradecimentos.”

Que a doutora Carolina, discípula da fome e do Deus verdadeiro, inspire todas as mulheres para seguir vivas, enfrentando a realidade, lutando pela liberdade e deleitando-nos com os sonhos deslumbrantes que o Deus da vida nos concede generosamente.

segunda-feira, 8 de março de 2021

NOSSA HOMENAGEM AS MULHERES

Ser mulher... É viver mil vezes em apenas uma vida.
É lutar por causas perdidas e
sempre sair vencedora.
É estar antes do ontem e depois do amanhã.
É desconhecer a palavra recompensa
apesar dos seus atos.

Ser mulher...
É caminhar na dúvida cheia de certezas.
É correr atrás das nuvens num dia de sol.
É alcançar o sol num dia de chuva.

Ser mulher...
É chorar de alegria e muitas vezes
sorrir com tristeza.
É acreditar quando ninguém mais acredita.
É cancelar sonhos em prol de terceiros.
É esperar quando ninguém mais espera.

Ser mulher...
É identificar um sorriso triste e uma lágrima falsa.
É ser enganada, e sempre dar mais uma chance.
É cair no fundo do poço, e emergir sem ajuda.

Ser mulher...
É estar em mil lugares de uma só vez.
É fazer mil papeis ao mesmo tempo.
É ser forte e fingir que é frágil...
Pra ter um carinho.

domingo, 7 de março de 2021

TERRA DOENTE, SER HUMANO DOENTE

A intrusão do coronavírus em 2019 revelou a íntima conexão existente entre Terra e Humanidade. Consoante a nova cosmologia (visão científica do universo) nós humanos formamos uma entidade única com a Terra. Participamos de sua saúde e também de sua doença.

Isaac Asimov, cientista russo, famoso por seus livros de divulgação científica, a pedido da revista New York Times, (do dia 9 de outubro de 1982) por ocasião da celebração dos 25 anos do lançamento do Sputinik que inaugurou a era espacial,escreveu um artigo sobre o legado deste quarto de século espacial.

O primeiro legado, disse ele, é a percepção de que, na perspectiva das naves espaciais, a Terra e a humanidade formam uma única entidade, vale dizer, um único ser, complexo, diverso, contraditório e dotado de grande dinamismo.

O segundo legado é a irrupção da consciência planetária: construir a Terra e não simplesmente as nações é o grande projeto e desafio humano… Terra e Humanidade possuem um destino comum. O que se passa num, se passa também no outro. Adoece a Terra, adoece juntamente o ser humano; adoece o ser humano, adoece também a Terra. Estamos unidos pelo bem e pelo mal.

No atual momento, a Terra inteira e cada pessoa estamos sendo atacados pelo Covid-19, especialmente o Brasil, vítima de um chefe de estado insano que não se preocupa com a vida de seu povo. Todos, de uma forma ou de outra, nos sentimos doentes física, psíquica e espiritualmente.

Por que chegamos a isso? A razão reside no Covid-19. É errôneo vê-lo isoladamente sem seu contexto. O contexto está na forma como organizamos já há três séculos nossa sociedade: na pilhagem ilimitada dos bens e serviços da Terra para proveito e enriquecimento humano. Este propósito levou a ocupar 83% do planeta, desflorestando, poluindo o ar, a água e os solos. Nas palavras do pensador francês Michel Serres, movemos uma guerra total contra Gaia, atacando-a em todas as frentes sem nenhuma chance de vencê-la. A consequência foi a destruição dos habitas das milhares de espécies de vírus. Para sobreviver saltaram para outros animais e destes para nós.

O Covid-19 representa um contra-ataque da Terra contra a sistemática agressão montada contra ela. A Terra adoeceu e repassou sua doença a nós mediante uma gama de vírus como o zika, a chicungunya, o ebola, a gripe aviária e outros. Como formamos uma complexa unidade com a Terra, adoecemos junto com ela. E nós doentes, acabamos também por adoecê-la O coronavírus representa esta simbiose sinistra e letal.

Quanto mais nossas relações para com a natureza forem amigáveis e entre nós cooperativas, mais a Terra se vitaliza. A Terra revitalizada nos faz também saudáveis. Curamo-nos juntos e juntos celebramos a nossa convivência terrenal.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Ô DA JANELA?

 

Falando em Rede Social, lembrei daquela rede da parábola que, jogada ao mar, pega de um tudo. Na praia, cabe aos pescadores separar os peixes bons dos maus.

Penso que na vida, em geral, também é assim. Diante de um tudo de pessoas que cruzam nosso caminho, que caem na nossa rede, temos a trabalhosa tarefa de discernir quem é “nada a ver”, e deve seguir seu próprio caminho, e quem deve ficar, pois que meu coração se faz seu ninho.

Também nas Redes, diante do volume imenso de informações, imagens, opiniões e mensagens que nos chegam, temos a trabalhosa tarefa de discernir entre o descartável e o aproveitável.

Outra imagem me ocorre. É isso que faz o garimpeiro quando mete sua bateia no leito do riacho e a tira, cheia de areia, pedras e cascalho. Então, suas mãos experientes vão lentamente lavando a bateia, em movimentos circulares, os olhos atentos, na expectativa de que, entre aqueles entulhos e pedregulhos, algo brilhe.

Dezenas, centenas de vezes a bateia mergulha no rio. Na maioria delas volta cheia de nada. Mas o garimpeiro não desiste. É sua sina esperançar. “Um dia vou bamburrar”, ele diz, no seu dialeto de mineirador.

De vez em quando, muito raramente, acontece… Em meio às pedras e ao cascalho há um pontinho que brilha. Uma faísca de luz que acende outras luminescências no coração do garimpeiro. Uma pepita de ouro, uma pedra preciosa que, se ainda não mudam a vida, ajudam a levá-la, por mais um tempo…

Meu olhar orante me ensina que navegar nas Redes Sociais é fazer a experiência do pescador, do garimpeiro. Jogar a rede ou mergulhar a bateia dos olhos nesse rio virtual e fazer aflorar de lá pessoas, experiências, lembranças, palavras, frases, imagens e textos a modo de cascas de coco, sabugos de milho, cascalho, pedras e areia. No movimento circular, cotidiano, agitar os sentimentos e perceber o que vêm à tona. E aí, deixar-se afetar…

Por experiência própria, sei que a vida, no mistério imenso da sua liberdade, impõe a todos nós dificuldades e sofrimentos os mais variados. E não adianta ficar fazendo campeonato de desgraça (tem gente que adora), pois a dor mais doída é a que dói em cada um de nós, por uma razão bem simples: é a nossa dor.

O mesmo cotidiano que nos traz alegrias gratuitas tem, também, sua cota de perdas dolorosas, decepções, conflitos na vida pessoal e familiar, fracassos no trabalho, nos afetos.

Todos enfrentamos em alguma medida, em algum momento, essa dualidade. A vida, com frequência, insiste em rimar Amor e Dor. Nesses tempos de pandemia, então, quanto sofrimento…

Sem resvalar para um maniqueismo ingênuo, percebo dualidade também na forma de lidar com essas situações. Há quem encare a dor (todas as dores) como uma PORTA enquanto outros a veem como uma JANELA. Eu explico.

Numa determinada circunstância, contra meus planos e expectativas, a vida me diz NÃO. Eu posso entender e acolher esse NÃO como uma ‘porta’ pela qual tenho que passar. É inevitável. Quem se dispõe a encarar a vida em todas as suas possibilidades vai descobrir que, mais que viver, somos chamados a con-viver, o que supõe correr riscos, assumi-los, enfrentá-los. Afinal, “viver é perigoso” e por mais estreita que seja a porta é preciso passar por ela. Pode ser difícil, constrangedor, até humilhante. Mas, por portas, a gente passa…

Há também um outro modo de olhar. São os que veem a dor como uma janela. A janela é, na casa, o lugar de onde vemos a paisagem à nossa volta. Janelas, ao contrário de portas, tem parapeitos onde podemos nos recostar e, muitas vezes, melancolicamente, ficar olhando. Veja que isso é diferente de contemplar. A contemplação traz inspiração. Eu mesmo sou privilegiado e tenho da minha janela, uma belíssima vista que contemplo na paz, admirando a beleza e alimentando o desejo de sair da mesmice, do comodismo, de descobrir o que há além daquele horizonte.

Transformar a dor numa janela por onde apenas vemos a vida passar é condenar-se à prisão perpétua do sofrimento. Junto com a dor vem a mágoa e logo a seguir o rancor. O resultado amargo é que nos tornamos péssimas companhias, até para nós mesmos. O sofrimento é uma porta, por vezes inevitável, mas é uma porta. Porta de saída, não de entrada. É lugar de passagem.
Passagem… Páscoa!

Para lá caminhamos! O Tempo da Quaresma nos lembra isso. A vida está repleta de histórias de dor, mas não fomos feitos para ela. Gente é pra brilhar, garantiu São Caetano.

Passando pela porta da dor, do fracasso, da perda, nosso horizonte é o Tempo Pascal, é a Vida Nova.

No entanto, há quem se conforme em permane-Ser como Carolina, irmã da Januária, cantada por São Francisco Buarque de Holanda, que “nos seus olhos fundos, guardava tanta dor, a dor de todo esse mundo”…

Ô da janela, o que você guarda no seu coração?

quinta-feira, 4 de março de 2021

SABEDORIA

 

Dias de muita transpiração e inspiração moderada, dias de lembrança de antigos sempre novos ditados e reflexões, que enfeixam a sabedoria de muitos há muito:

Ciclo de provérbios árabes:

Não diga tudo quanto sabes
não faças tudo quanto podes
não creias em tudo quanto ouves
não gastes tudo quanto tens
porque
quem diz tudo quanto sabe
quem faz tudo quanto pode
quem crê em tudo quanto ouve
quem gasta tudo quanto tem
muitas vezes
diz o que não convém
faz o que não deve
julga o que não vê
gasta o que não pode

Sua função é viver sua vida de forma que faça sentido para você, não para eles.

Inicie um projeto enorme e insensato, como Noé… Não faz absolutamente nenhuma diferença o que as pessoas pensam de você.

NUNCA DESISTA DE SI MESMO.

Quando você passar por um período difícil, quando tudo parecer se opor a você… Quando você sentir que não pode sequer suportar mais um minuto, não desista! Porque esse será o momento e lugar que o curso irá desviar!

Rumi, místico, teólogo e poeta sufi persa do século 13.

Começa cada dia por dizer a ti próprio: Hoje vou deparar com a intromissão, a ingratidão, a insolência, a deslealdade, a má vontade e o egoísmo – todos devidos à ignorância por parte do ofensor sobre o que é o bem e o mal. Mas, pela minha parte, já há muito percebi a natureza do bem e a sua nobreza, a natureza do mal e a sua mesquinhez, e também a natureza do próprio culpado, que é meu irmão (não no sentido físico, mas como meu semelhante, igualmente dotado de razão e de uma parcela do divino); portanto nenhuma destas coisas me ofende, porque ninguém pode envolver-me naquilo que é degradante.

Marco Aurélio, imperador-filósofo romano. Sábio à borda do precipício. Fragmento extraído de suas Meditações.

Nada nos negócios humanos julgamos mais iníquo do que serem as cousas justas pervertidas por maledicências, que alguém receba a infâmia de um crime quando mais mereceria uma honra. Muitas cousas se fazem de modo puro e com um só olho; a mão esquerda não se alia à destra, nenhum fermento corrompe a massa, nem se tece veste de linho e lã. Contudo, pelas prestidigitações dos perversos, a obra piedosa é mentirosamente transformada num monstro. Não admira: essa é a reprovável condição da natureza pecadora, que não apenas em fatos moralmente dúbios sentencia a favor da pior parte, como também muitas vezes de forma com maliciosa subversão aquela que tem aparência de retidão.

quarta-feira, 3 de março de 2021

REENCONTRAR A ALEGRIA.

 

Até hoje, em alguns lugares, um dos jogos mais comuns entre grupos de amigos que se encontram é uma espécie de campeonato de mímica. O grupo se divide em duas equipes. Os(as) companheiros de uma equipe combinam entre si algum tema ou assunto e chamam alguém da equipe adversária e lhe encarrega de transmitir uma palavra ou assunto através de gestos e mímicas para os seus/suas companheiros(as) de equipe para que tentem decifrar o que a mímica quer dizer.

Há grupos que jogam horas e horas interpretando com mímicas canções da MPB. Outras vezes, são títulos de filmes ou novelas. Outras vezes podem ser atitudes de vida.

Em um desses jogos, alguém começou a dançar e a se mover com muita expressão de alegria. O pessoal da equipe tentou adivinhar. Um companheiro gritou:

– Festa.

A moça que fazia a mímica fez sinal de que não era isso. O jogo continuou. Outra pessoa interpretou:

– Quadrilha de São João

Não era. Um menino se aventurou:

– Eu sei: Carnaval!

Não era também e a equipe perdeu. O certo teria sido: “culto afro” ou “Candomblé”. Alguém protestou:

– Assim não vale. Como a gente poderia imaginar que dança e alegria tivesse a ver com religião e com culto a Deus?

Para aquele grupo e para muita gente no mundo, se alguém quiser interpretar em gestos de mímica um culto ou oração teria de tomar atitudes de recolhimento, olhos fechados, cabeça baixa, mãos unidas em atitude de súplica.

No entanto, na maioria das tradições indígenas e afrodescendentes, o culto se faz em roda de dança, com som de tambores, atabaques ou maracás. E as pessoas acreditam que o Espírito vem brincar de roda e dançar com seus filhos e filhas na alegria do amor.

A tradição cristã não nos ajudou a ligar Deus com alegria. Na música que se chama Partido Alto, Chico Buarque canta:

Deus é um cara gozador, adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro
Mas achou muito engraçado me botar cabreiro
Na barriga da miséria, eu nasci brasileiro

Hoje em dia, no meio de todos os sofrimentos e problemas pelos quais passamos, um dos mais importantes sinais de que assumimos a espiritualidade libertadora é cultivar em nós a opção da alegria, mesmo em meio aos conflitos e às dores de cada dia.

As pessoas podem ser de temperamento naturalmente mais alegre ou podem já ter mais dificuldade em achar graça das coisas simples da vida. O importante é que, seja como for, todos(as) podem ter a alegria como opção de fé. Este tipo de alegria não pode ser confundida com prazer ou otimismo fácil. É simplesmente opção de vida, motivada pela confiança de que, mesmo no meio da dor e da luta, se temos amor, temos alegria.

A alegria não é só para quando se está bem. Quem já foi a algum país dos mais pobres da África sabe que até quando as pessoas vão à rua protestar, fazem isso dançando e brincando. Para as culturas originárias, a alegria é dom divino como força de resistência.

No Brasil, quem convive ou encontra irmãos e irmãs que moram na rua, sabe que, mesmo em meio a muitas dificuldades, encontram força para sorrir e manter o humor. Intuem que a alegria é força que cura e nos dá energia para nos fortalecer interiormente e nos reanimar uns aos outros.

Conforme a Bíblia, no século 6 antes de Cristo, quando os judeus cativos voltaram da Babilônia, começaram a reconstruir Jerusalém e o templo. Os sacerdotes juntaram a multidão e leram para todos o livro da aliança de Deus. O povo começou a chorar e bater no peito. O governador Neemias, que coordenava aquele encontro, disse às pessoas: “Não chorem. Voltem para casa. Façam uma boa comida e festejem, porque a alegria de Deus é nossa força” (Ne 8, 10).

Mais tarde, conforme o quarto evangelho, durante a última ceia, Jesus disse aos discípulos e discípulas: “Eu vos disse essas coisas para que vocês tenham a minha alegria e esta alegria seja perfeita” (João 15, 11).

terça-feira, 2 de março de 2021

QUARESMA.

 

Entro na Quaresma sem fantasia, disposto às abstinências que resgatam, no mais íntimo de mim mesmo, a minha verdadeira identidade. Calarei a língua ferina e não macularei a fama alheia exposta em público no varal de minhas cordas vocais.

Não darei ouvidos a inconfidências, nem ao ruído ensurdecedor das palavras vãs de quem só escuta a própria voz. Fecharei os olhos para ver melhor e abrirei as janelas à revoada dos anjos. Contemplarei as montanhas ocas de minha terra e derramarei uma lágrima por seus úteros arrancados e sonegados ao meu povo.

Riscarei de meu dicionário o vocábulo competitividade e com aquarelas de utopias gravarei no coração solidariedade. Irei ao encontro de quem ainda luta por direitos animais: comer, beber, educar a cria e abrigar-se das intempéries. Só assim costurarei minha humanidade esgarçada.

Jejuarei da ânsia consumista e ofertarei meu supérfluo tão necessário ao próximo. Abrirei a janela do carro e afagarei as crianças de rua, filhos de minha imobilidade frente a tantas injustiças. Pagarei, com juros, a minha dívida social.

Farei de Jesus parceiro de aventuras e deixarei que o seu Espírito engravide o meu. Buscarei o silêncio orante e meditarei para inebriar-me da espiritualidade do conflito. Adotarei o Sermão da Montanha como estatuto pessoal e acertarei meus passos nas trilhas de Gandhi, Che Guevara e Luther King.

Arrancarei toda erva daninha – ciúme, inveja, ira – do canteiro de meus amores e cultivarei copas frondosas de quaresmeiras coloridas de ternura. Serei perdulário com o bom humor e espalharei alegria como o ar que nos é dado respirar.

Direi não às drogas – as que me consomem horas de vida no cuidado envaidecido do meu corpo e as que me aprisionam no medo de lutar contra as iniquidades. Desfraldarei a bandeira de minha indignidade e revelarei esperanças que, olhos no futuro, me fazem acreditar em um belo horizonte.

Peregrino solitário e solidário, irei às fontes do Transcendente. Ao encontrar meu próprio poço, mergulharei como um menino em suas águas profundas, até que o Pai de Amor me acolha em seus braços, dando-me de beber o vinho pascal do homem novo.

segunda-feira, 1 de março de 2021

" TU ÉS PÓ, E AO PÓ HÁS DE VOLTAR"


Tem um mineiro, Eduardo Machado. Tudo que ele escreve eu leio e gosto. Adoro o estilo dele e hoje republico um pequeno texto, para compartilhar com vocês.

Na última quarta-feira (semana passada) começou o Tempo da Quaresma. Nos próximos dias vou falar um pouco sobre isso.

O início do Tempo Litúrgico é marcado pelo ritual das Cinzas que nos lembra: “Tu és pó, e ao pó hás de voltar”.

Revisitei a memória do tempo…
Deu…
Voltar ao pó, simplesmente.
Desvanecer-se em pó
Sem dó
Nem saudade
O ego diluído
Sem ter em que se apegar
Nem tempo,
Nem eternidade
Simplesmente morrer e acabar
Sem medo, sem culpa
Sem primavera, nem verão
Nem outono ou inverno
Nem céu, nem inferno
Purgatório? Nem pensar!
Sem coros de anjos
Querubins, serafins
Será o fim, apenas, assim.
Sem lamento
Como paina, ao vento
Mergulhar na eterna idade
Livre, leve,
Solto de tudo que sou
Num voo, vou
Um sopro, sou…