quarta-feira, 26 de abril de 2023

QUAL É A IDADE DO SEU AMOR?

Nesses tempos de isolamento, distanciamento, onde os encontros são marcados pela dúvida; “abraço, ou não? Aperto a mão, ou não? Beijo, ou não”; quando os gestos, toques, ficam restritos, quando a espontaneidade é mascarada, como os rostos, falamos muito com o olhar, carinho, mesmo no silêncio.

Toda noite, quando faço o Exame do Dia, minha prece silenciosa vê desfilar o rosto de pessoas que moram nos meus afetos. Até o desconhecido que cruzou meu caminho e, por um acaso qualquer, me inundou de sentimentos. Rezo por elas e com elas. Mesmo na distância, meu coração continua em sintonia, em especial com aqueles e aquelas que fazem a travessia de alguma dor. Eles e elas sabem quem são. Ou não…

A dor é, para mim, um mistério. Desde menino tenho lembranças de momentos de dor. No meu caso, as alegrias foram muito maiores, mas a dor é uma ferida que, mesmo cicatrizada, de vez em quando insiste em sangrar.

Movido, o Espírito me pergunta: qual é, hoje, a idade da sua dor, Rui?

Explico.

Há dores infantis, aquelas que vem com a insegurança diante do desconhecido, as que estão na fronteira entre a novidade e o susto. O parto é um bom exemplo. Assim, num de repente, a tranquilidade amniótica é roubada, aperta daqui, puxa dali, luzes, sons, braços agitados em busca de um ninho que parece ter sido perdido para sempre.

Não. Logo virão colo, carinho e a dor passará.

Dores adolescentes costumam vir acompanhadas de revolta, palavras, gestos e reações intempestivas que, explosivas, não medem consequências. Podem machucar e deixar sequelas difíceis da vida curar.

A juventude da dor é enfrentada com a atrevida certeza de que se é indestrutível. “Não vem que não tem. Comigo ninguém pode”!

Pode…

É uma descoberta dolorosa perceber que a dor conhece nossas fraquezas e é lá que ela nos atinge e, dolorosamente, dói.

Chegamos à maturidade e a dor está lá, fiel e paciente, a nos esperar.

A necessidade de garantir sustento para si e para outros, os desafios do trabalho, do amor, as perdas, decepções, os fracassos. Marido, esposa, filhos, amigos, agregados, patrões e empregados, o desafio imenso do con-viver. Assim como mistérios, dores “não hão de faltar por aí”…

Mas, na maturidade, já aprendemos (ou deveríamos ter aprendido) que, exceto o motorista e o trocador, tudo é passageiro. Até a dor.

Chegamos, enfim, à última idade. Alguns dizem que é a melhor. Há controvérsias…

Minha caixinha de remédios leva ao exercício diário da humildade. O que era força, vigor, agora é fragilidade. E prece. Vestir uma bermuda sem se apoiar em algo ou alguém é esporte radical de alto risco.

O day after dos prazeres da mesa, mostra que uma boa digestão já não é mais uma certeza. Aqueles passos, lépidos, desenvoltos, cobram seu preço que se manifesta no certeiro dedo do médico que pergunta: “dói aqui”?

– Vai faltar dedo, doutor…

Exagero, mas nem tanto. Que o digam os meus joelhos.

Mas, para além das dores físicas, a dor maior de todas, em qualquer idade ou lugar, é a solidão…

Fomos criados para o encontro, a relação, o convívio. O outro traz o que me falta; o olhar diferente, o conhecimento ampliado, o sentimento afetado, aguçado.

O ser humano não quer solidão. O solidário, então…

Volto ao início desta crônica…

Em mim mora o desejo do outro.

Hoje à noite, vou rezar com meus queridos. Talvez você, que lê este texto, esteja lá e nem saiba. Não importa. Minha prece chegará aonde deve chegar.

Não sei o que vou dizer na minha oração, não há ensaio possível para essas palavras. Frases feitas, nessas horas, soam inúteis, vazias. Talvez eu reze a modo de Renato Teixeira, em Romaria: “Como eu não sei rezar, só queria mostrar meu olhar…”

Por hora, ao longo do dia, vou estocando ternura no meu olhar. Ver tudo e todos com os olhos de Deus.

Então, no silêncio da noite, suavemente, virá a certeza de que a resposta ao poeta que perguntava: “pra quê rimar amor e dor”, sempre será: porque Esperança é outro nome do Amor.

Por falar nisso, “qual é a idade do seu amor?…

 

quarta-feira, 12 de abril de 2023

ANTIJUDAÍSMO E LGBT FOBIA




Luiz Corrêa Lima nos conta que: Na missa do Domingo de Ramos foi feito o relato da Paixão de Jesus Cristo contido no Evangelho de Mateus. Conforme o relato, Pilatos lava as mãos diante da multidão e diz que não é responsável pela morte de Jesus. E “o povo todo respondeu: ‘Que o sangue dele caia sobre nós e sobre os nossos filhos’” (Mt 27,25). Assim tem início a suposta culpa coletiva e hereditária do povo judeu pela morte Jesus. Os Evangelhos de Mateus e Lucas consideram a destruição de Jerusalém e de seu templo, nos anos 70, uma punição divina por esta morte.

A tradição cristã consolidou a imagem do judeu como povo deicida, isto é, que matou Deus. Por mais de mil anos, na liturgia latina da Sexta-Feira Santa se rezava pelos “pérfidos judeus”. Ao longo da história, eles foram hostilizados por gente simples, confinados em guetos, massacrados por cruzados, expulsos de reinos e perseguidos pela Inquisição. O antissemitismo moderno, que culminou com o Holocausto, não se fundamenta na religião cristã, mas fez com que a milenar execração ao judeu fosse levada ao extremo. Somente na década de 1960, com o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica reconsiderou a suposta culpa coletiva e hereditária dos judeus pela morte de Jesus. Desde então, ensina-se que este povo não deve ser apresentado na pregação e na catequese da Igreja como amaldiçoado por Deus.

Há semelhanças entre a hostilidade aos judeus e a hostilidade aos LGBT+. O livro do Gênesis diz que Deus criou o ser humano homem e mulher, para se unirem e procriarem. Muitos daí deduzem que a existência de pessoas homossexuais e transgênero é uma aberração. Por muitos séculos, leis civis e eclesiásticas de reinos cristãos trataram as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo como sodomia, um crime horrendo que supostamente provoca a ira de Deus a ponto de destruir cidades inteiras. Ainda hoje, mais de 50 países criminalizam os atos homossexuais e alguns países os punem com a morte.

Inúmeros gestos e as palavras do papa Francisco têm ajudado significativamente no acolhimento de pessoas LGBT e na superação de hostilidades. Desde a célebre pergunta “quem sou eu para julgá-los”, até a recente entrevista posicionando-se contra a criminalização da homossexualidade. A um jovem gay, Francisco disse: “Deus lhe fez e lhe ama assim. Você deve ser feliz como você é”. Um documento da Pontifícia Comissão Bíblica analisa os textos da Bíblia usados para condenar a prática da homossexualidade, incluindo os mencionados no Catecismo, trazendo outras interpretações não condenatórias.

Neste caminho aberto pelo papa, os cardeais Jean-Claude Hollerich, de Luxemburgo, e Blase Cupich, de Chicago, pedem mudanças na doutrina da Igreja a respeito desde tema. Termos como “intrinsecamente desordenados” e qualquer linguagem que fere as pessoas devem ser reexaminados. A Igreja deve expressar seu ensinamento de modo a atrair as pessoas para Jesus. O seu modo de falar deve trazer cura.

A evolução da doutrina é uma realidade que faz parte da história da Igreja. Sem esta evolução, a Boa Nova, verdadeiro sentido do Evangelho, deixa de ser boa e deixa de ser nova. A correta compreensão das Sagradas Escrituras permite superar o ódio milenar contra o povo judeu. Oxalá leve também a superar o ódio contra os LGBT+.

sábado, 8 de abril de 2023

FELIZ PÁSCOA NA PRÁTICA DA POESIA DO VIVER.


Jesus, no ápice das suas orientações aos seus discípulos e às multidões, faz uma evocação que indica a importância da poesia do viver. Ensinamentos densos, reunidos no Sermão da Montanha, Evangelho de Mateus, uma Carta Magna. Os ensinamentos contêm metas existenciais audaciosas e exigentes, como amar os inimigos e perseguidores. Vivências que requerem uma resiliência humana e espiritual a ser alcançada por meio de investimentos: exercícios cujo ponto de partida muito ultrapassa a lógica da simples, e indispensável, racionalidade. O Mestre delineia um percurso discipular que inclui a ternura advinda da poesia do viver. Eis o enorme desafio: não pensar que a valorização da vida significa a defesa cega de certas situações, a partir de medos que levem a atitudes mesquinhas. O egoísmo enjaula corações na disputa fratricida e na insana busca pelo acúmulo, no anseio de ajuntar tudo para si, perpetuando cenários de desigualdades, de manipulações, para se obter fácil enriquecimento. Com essas dinâmicas, agigantam-se as indiferenças, mesmo diante das multidões passando fome no mundo todo.

Jesus conhece o tamanho do desafio existencial de seus discípulos na obediência das suas lições. Não basta a importante disciplina na obediência às leis ou normas, ancoradas na fidelidade moral, para que seja reconhecida a dignidade maior do ser humano. Jesus convida, então, aqueles que lhe seguem a buscar a poesia do viver. Assim, podem se capacitar, no dia a dia, para se tornarem instrumento a serviço da construção e promoção da vida plena, em todas as suas etapas. Veja o simbolismo poético da contemplação proposta, quando o Mestre convida: “Olhai os pássaros do céu, não semeiam, não colhem, nem guardam em celeiros… olhai como crescem os lírios do campo. Não trabalham, nem fiam. No entanto, nem Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um só dentre eles”.

O conhecedor mais credenciado do coração humano, Jesus Mestre, ensina: a sabedoria própria da poesia do viver nasce de uma contemplação que antecede números, manuseio de instrumentos ou dados. Essa contemplação unge mentes e corações com lições e sensibilidades essenciais a cada pessoa. A poesia do viver não é uma simples brisa para amenizar a dureza destes tempos. É uma fonte de sabedoria que pode alavancar percepções qualificadas, corrigir lógicas distorcidas, apontar o rumo para que sejam encontradas soluções urgentes, respeitando a vida humana na sua dignidade. Eis, assim, o desafio: recuperar a poesia do viver, para se dar conta de caminhar sem perder a direção, neste tempo em que a humanidade vive o processo de grandes transformações culturais, com incidências sociopolíticas, econômicas, educacionais e religiosas.

Uma grande movimentação antropológica-cultural está em curso, como placas tectônicas que se deslocam provocando instabilidades, reconfigurando territórios. Diante dos processos de transformação que incidem na civilização contemporânea, não podem ser perdidos valores e princípios essenciais. Vive-se a dinâmica de êxodo, mas a migração da humanidade não pode representar o abandono de certos tesouros, sob pena de o ser humano chegar mais empobrecido no tempo novo em construção. E não basta salvar a própria “bagagem” durante a travessia. A prioridade é o bem comum e todos estão convocados a contribuir com a sua edificação. Nessa perspectiva, a poesia do viver pode garantir percepções que curam destemperos e desequilíbrios – ameaças que levam a fracassos humanitários e ecológicos, mas que, cada vez mais, lamentavelmente, contaminam muitos processos da vida em sociedade. A viragem em curso, para fazer jus às conquistas científicas e tecnológicas, patrimônios da inteligência humana, não pode balizar a sociedade contemporânea em estreitamentos que comprometam o dom da vida e a beleza do viver.

A urgência de se enfrentar lógicas perversas, na política e na economia, na cultura e até mesmo na religião, pede o indispensável resgate da poesia do viver. Sem a poesia do viver crescerá, cada vez mais assustadoramente, o número daqueles que desistem da própria vida, de segmentos que buscam apenas a própria proteção sem se dedicar ao bem comum, de atitudes frias que segregam os pobres. Crescerá a tendência de se perseguir vitórias a qualquer preço, inclusive com artimanhas e operações perversas, de se buscar o próprio bem pela via da manipulação, sem sensibilidade humanística. Nesse cenário obscuro, o coração humano, mesmo diante de eventuais bens acumulados, lugares conquistados, títulos obtidos, será incapaz de exercer adequadamente a regência da própria vida.

É hora de investir e exercitar-se na poesia do viver para fazer brotar uma sabedoria espiritual que permita reconhecer o sentido da vida, conduzindo o ser humano ao cultivo da fraternidade. Assim, pode-se recuperar o genuíno sentido de pátria – lugar de todos os irmãos e irmãs, iguais nas diferenças. Com a poesia do viver, consegue-se reconhecer que a vida é vivida melhor quando há simplicidade, e que se ganha muito com a generosidade solidária. Ajuda a cultivar a poesia do viver a indicação da escritora Cora Coralina: “Não te deixes destruir… ajuntando novas pedras e construindo novos poemas. Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. Faz de tua vida mesquinha um poema. E viverás no coração dos jovens e na memória de gerações que hão de vir. Esta fonte é para uso de todos os sedentos. Toma a tua parte. Vem a estas páginas e não entraves seu uso aos que têm sede.” Que a vida se ancore na poesia do viver.