terça-feira, 17 de janeiro de 2023

ECOLOGIA.

 


Quem acompanha as notícias da imprensa sabe que o desafio maior é como conciliar as resoluções necessárias para salvar a biodiversidade com os interesses de lucro das empresas e dos governos que continuam considerando a natureza como matéria prima e como mercadoria. 
Representantes de grandes empresas multinacionais enviaram ao grupo reunido em Kuning uma carta na qual afirmavam: “Devemos reconhecer a amplidão da crise ligada à destruição da natureza. A natureza é essencial na luta contra as mudanças climáticas. Não pode haver comércio nem lucro em um planeta morto”.

Cada vez mais, fica mais claro para a humanidade que em um sistema social e econômico que coloca o lucro em primeiro lugar não existe possibilidade nem de biodiversidade, nem de civilização ecológica. Desde anos, o povo pobre que se reúne junto com as pastorais e movimentos sociais no Grito dos Excluídos tem como palavra de ordem: A vida em primeiro lugar.
Só é possível ver a terra como “casa comum” se a prioridade máxima de toda atividade humana passa a ser a vida. Quanto mais nos inserimos nesse caminho mais percebemos que não é possível salvar a biodiversidade em um mundo de injustiças sociais. Por isso, o melhor é falarmos em sociobiodiversidade, ou seja, um olhar que reúne os ecossistemas da natureza com a luta pacífica pela justiça social e o respeito às diversidades de gêneros, raças, culturas e religiões, além da justiça construída a partir dos direitos da classe trabalhadora e do povo excluído.

Nos Andes, a cultura ketchua mantém até hoje a noção do Pachacuti. Conforme essa visão, a colonização colocou o mundo de cabeça para baixo. É preciso reinverter a ordem do mundo de modo que se recomponha a harmonia entre os seres humanos e a natureza e os Espíritos das montanhas. Isso é o Pachacuti.

A Carta da Terra, documento aprovado pela Unesco, como uma carta dos direitos da Terra, “O destino comum nos obriga a procurar um novo início. Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar de uma nova reverência face à vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida”.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

A DOR.

 


Movido, o Espírito me pergunta: qual é, hoje, a idade da sua dor, Rui?

Explico.

Há dores infantis, aquelas que vem com a insegurança diante do desconhecido, as que estão na fronteira entre a novidade e o susto. O parto é um bom exemplo. Assim, num de repente, a tranquilidade amniótica é roubada, aperta daqui, puxa dali, luzes, sons, braços agitados em busca de um ninho que parece ter sido perdido para sempre.

Não. Logo virão colo, carinho e a dor passará.

Dores adolescentes costumam vir acompanhadas de revolta, palavras, gestos e reações intempestivas que, explosivas, não medem consequências. Podem machucar e deixar sequelas difíceis da vida curar.

A juventude da dor é enfrentada com a atrevida certeza de que se é indestrutível. “Não vem que não tem. Comigo ninguém pode”!

Pode…

É uma descoberta dolorosa perceber que a dor conhece nossas fraquezas e é lá que ela nos atinge e, dolorosamente, dói.

Chegamos à maturidade e a dor está lá, fiel e paciente, a nos esperar.

A necessidade de garantir sustento para si e para outros, os desafios do trabalho, do amor, as perdas, decepções, os fracassos. Marido, esposa, filhos, amigos, agregados, patrões e empregados, o desafio imenso do con-viver. Assim como mistérios, dores “não hão de faltar por aí”…

Mas, na maturidade, já aprendemos (ou deveríamos ter aprendido) que, exceto o motorista e o trocador, tudo é passageiro. Até a dor.

Chegamos, enfim, à última idade. Alguns dizem que é a melhor. Há controvérsias…

Minha caixinha de remédios leva ao exercício diário da humildade. O que era força, vigor, agora é fragilidade. E prece. Vestir uma bermuda sem se apoiar em algo ou alguém é esporte radical de alto risco.

O day after dos prazeres da mesa, mostra que uma boa digestão já não é mais uma certeza. Aqueles passos, lépidos, desenvoltos, cobram seu preço que se manifesta no certeiro dedo do médico que pergunta: “dói aqui”?

– Vai faltar dedo, doutor…

Exagero, mas nem tanto. Que o diga meu velho coração.

Mas, para além das dores físicas, a dor maior de todas, em qualquer idade ou lugar, é a solidão…

Fomos criados para o encontro, a relação, o convívio. O outro traz o que me falta; o olhar diferente, o conhecimento ampliado, o sentimento afetado, aguçado.

O ser humano não quer solidão. O solidário, então…

Volto ao início desta crônica…

Em mim mora o desejo do outro.

Hoje à noite, vou rezar com meus queridos. Talvez você, que lê este texto, esteja lá e nem saiba. Não importa. Minha prece chegará aonde deve chegar.

Não sei o que vou dizer na minha oração, não há ensaio possível para essas palavras. Frases feitas, nessas horas, soam inúteis, vazias. Talvez eu reze a modo de Renato Teixeira, em Romaria: “Como eu não sei rezar, só queria mostrar meu olhar…”

Por hora, ao longo do dia, vou estocando ternura no meu olhar. Ver tudo e todos com os olhos de Deus.

Então, no silêncio da noite, suavemente, virá a certeza de que a resposta ao poeta que perguntava: “pra quê rimar amor e dor”, sempre será: porque Esperança é outro nome do Amor.

Por falar nisso, “qual é a idade do seu amor?…

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

LADEIRA ABAIXO

 

A posse de Lula, que pela terceira vez irá ocupar o cargo de presidente da república, simbolicamente, nos dá a exata noção do que seja um governo democrático. Um governo onde o povo tenha participação e poder de decisão, precisa ter diversidade. E ela subiu a rampa junto o presidente eleito, com representatividade de cor, gênero, etnia, condição social, PCD e espécie, num momento emocionante que irá entrar para a história da república brasileira. Algo que se construiu em alternativa ao desrespeito institucional cometido pelo antigo ocupante do cargo, que, numa postura antidemocrática e pouco civilizada, se recusou a cumprir a liturgia de transferência do cargo e passar a faixa presidencial ao novo presidente. A ideia, possivelmente de Janja, a nova primeira dama do país, deixa claro que o atual governo representa socialmente o oposto do anterior, onde as minorias eram tratadas como reféns de uma ideologia que as obrigavam a se renderem à maioria ou desaparecerem do mapa.

Um garoto preto, uma liderança indígena, um influenciador digital homossexual e pessoa com deficiência, uma mulher preta catadora de materiais recicláveis, um professor, um metalúrgico e dois apoiadores da Vigília Lula Livre, além da cadela de estimação da primeira dama, subiram a rampa do Palácio do Planalto ao lado de Lula. O presidente eleito recebeu a faixa presidencial das mãos de Aline Sousa, que é articuladora do Movimento Nacional das Catadoras e uma liderança do movimento de mulheres catadoras do Distrito Federal. Ao convidar as minorias para fazerem parte do seu governo, ressaltando a identidade de cada uma delas, Lula abriu um leque maior no que diz respeito a representatividade. Sobretudo, com relação a uma certa resistência que ainda há no campo progressista, no que diz respeito a pautas consideradas identitárias. Uma possível sinalização de que os anseios dos grupos minoritários não se resumem a luta de classes. Estimular a diversidade, algo que sempre foi visto com maus olhos pelos opositores do progressismo, é promover inclusão e combater privilégios adquiridos em qualquer sociedade estruturalmente racista, machista, homofóbica, capacitista e aporofóbica. Que Lula não fique apenas no discurso, onde frisou por mais de uma vez o seu compromisso prioritário com as minorias representativas, ou no simbolismo da subida da rampa, quando fez renascer a esperança dos grupos quase que institucionalmente excluídos. Uma sociedade mais justa, igualitária e verdadeiramente democrática, se constrói com a participação de todos e todas. “União e reconstrução” é o lema do novo governo. E Lula terá a missão de corrigir os desastres sociais promovidos por s eu antecessor, que o deixou como herança 33 milhões de pessoas passando fome e outras tantas milhões em condição de insegurança alimentar. Um presidente que apostou no retrocesso como futuro, se articulando sob um ufanismo pátrio, religioso e irracional como ideologia. A diversidade sobe a rampa com Lula, num país onde as minorias estavam indo ladeira abaixo com Bolsonaro.

 


domingo, 1 de janeiro de 2023

 

Neste ano que se inicia, deixarei meu corpo flutuar em alturas abissais. Acariciarei uma por uma de minhas rugas, desvelarei histórias, apreenderei, na ponta dos dedos, meu perfil interior.

Não recorrerei ao bisturi das falsas impressões. Nem ao espectro da magreza anoréxica. O tempo prosseguirá massageando meus músculos até torná-los flácidos como as delicadezas do espírito.

Suspenderei todas as flexões, exceto as que aprendo na academia dos místicos. Beberei do próprio poço e abrirei o coração para o anjo da faxina atirar pela janela da compaixão iras, invejas e amarguras.

Pisarei sem sapatos o calor da terra viva. Bailarino ambiental, dançarei abraçado a Gaia ao som ardente de canções primevas. Dela receberei o pão, a ela darei a paz.

Acesas as estrelas, contemplarei na penumbra do mistério esse corpo glorioso que nos funde, eu e Gaia, num único sacramento divino. Seu trigo brotará como alimento para todas as bocas, suas uvas farão correr rios inebriantes de saciedade.

Na mesa cósmica, ofertarei as primícias de meus sonhos. De mãos vazias, acolherei o corpo do Senhor no cálice de minhas carências. Dobrarei os joelhos ao mistério da vida e contemplarei o rosto divino na face daqueles que nunca souberam que cosmo e cosmético são gregas palavras, e deitam raízes na mesma beleza.

Proclamarei o silêncio como ato de profunda subversão. Desconectado do mundo, banirei da alma todos os ruídos que me inquietam e, vazio de mim mesmo, serei plenificado por Aquele que me envolve por dentro e por fora, por cima e por baixo.

Suspenderei da mente a profusão de imagens e represarei no olvido o turbilhão de ideias. Privarei de sentido as palavras. Absorvido pelo silêncio, apurarei os ouvidos para escutar a brisa de Elias e os olhos para admirar o que extasiou Simeão.

Não mais farei de meu corpo mero adereço estranho ao espírito. Serei uma só unidade, onda e partícula, verso e reverso, anima e animus.

Recolherei pelas esquinas todos os corpos indesejados para lavá-los no sangue de Cristo, antes que se soltem de seus casulos para alçar o voo das borboletas.

Curarei da cegueira os que se miram no olhar alheio e besuntarei de cremes bíblicos o rosto de todos que se julgam feios, até que neles transpareça o esplendor da semelhança divina.

Arrancarei do chão de ferro os pés congelados da dessolidariedade e farei vir vento forte aos que temem o peso das próprias asas. Ao alçarem o topo do mundo, verão que todos somos um só corpo e um só espírito.

Farei do meu corpo hóstia viva; do sangue, vinho de alegria. Ébrio de efusões e graças, enlaçarei num amplexo cósmico todos os corpos e, no salão dourado da Via Láctea, valsaremos até que a música sideral tenha esgotado a sinfonia escatológica.

Na concretude da fé, anunciarei aos quatro ventos a certeza de ressurreição então, o que é terno tornar-se-á, nos limites da vida, eterno quando a morte nos transvivenciar.