sábado, 29 de dezembro de 2018

A TODOS, FELIZ ANO NOVO.


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Por que desejar Feliz Ano-Novo se há tanta infelicidade à nossa volta? Será feliz o próximo ano para sírios e iraquianos, e os soldados usamericanos sob ordens de um presidente que qualifica de “justas” guerras de ocupações genocidas? Serão felizes as crianças africanas reduzidas a esqueletos de olhos perplexos pela tortura da fome? Seremos todos felizes, conscientes dos fracassos da conferência do clima em Paris por empresas e governos que salvam a lucratividade e comprometem a sustentabilidade?


 O que é felicidade? Segundo Aristóteles, é o bem maior que todos almejamos. E alertou Tomás de Aquino: mesmo ao praticarmos o mal. De Hitler a madre Teresa de Calcutá, todos buscam, em tudo que fazem, a própria felicidade.
 A diferença reside na equação egoísmo/altruísmo. Hitler pensava em suas hediondas ambições de poder. Madre Teresa, na felicidade daqueles que Frantz Fanon denominou “condenados da Terra”.

 A felicidade, o bem mais ambicionado, não figura nas ofertas do mercado. Não se pode comprá-la, há que conquistá-la. A publicidade empenha-se em nos convencer de que resulta da soma dos prazeres. Para Roland Barthes, o prazer é “a grande aventura do desejo”. 

 Estimulado pela propaganda, nosso desejo exila-se nos objetos de consumo. Vestir esta grife, possuir aquele carro, morar neste condomínio de luxo – reza a publicidade – nos fará felizes.


 Desejar Feliz Ano-Novo é esperar que o outro seja feliz. E desejar que também faça os outros felizes. O pecuarista que não banca assistência médico-hospitalar para seus peões e gasta fortunas com veterinários para tratar de seu rebanho espera que o próximo tenha também um Feliz Ano-Novo? 

 Na contramão do consumismo, Jung dava razão a são João da Cruz: o desejo busca, sim, a felicidade, “a vida em plenitude” manifestada por Jesus, mas ela não se encontra nos bens finitos ofertados pelo mercado. Como enfatizava o professor Milton Santos, acha-se nos bens infinitos.

A arte da verdadeira felicidade consiste em canalizar o desejo para dentro de si e, a partir da subjetividade impregnada de valores, imprimir sentido à existência. Assim, consegue-se ser feliz mesmo quando há sofrimento. Trata-se de uma aventura espiritual. Ser capaz de garimpar as várias camadas que encobrem o nosso ego.


 Porém, ao mergulhar nas obscuras sendas da vida interior, guiados pela fé e/ou pela meditação, tropeçamos nas próprias emoções, em especial naquelas que traem a nossa razão: somos ofensivos com quem amamos; rudes com quem nos trata com delicadeza; egoístas com quem é generoso conosco; prepotentes com quem nos acolhe em solícita gratuidade. 

 Se logramos mergulhar mais fundo, além da razão egótica e dos sentimentos possessivos, então nos aproximamos da fonte da felicidade, escondida atrás do ego. Ao percorrer as veredas abissais que nos conduzem a ela, os momentos de alegria se consubstanciam em estado de espírito. Como no amor.



 Feliz Ano-Novo é, portanto, um voto de emulação espiritual. Claro, muitas outras conquistas podem nos dar prazer e alegre sensação de vitória. Mas não são o suficiente para nos fazer felizes. Melhor seria um mundo sem miséria, desigualdade, degradação ambiental, políticos corruptos!



 Essa infeliz realidade que nos circunda, e da qual somos responsáveis por opção ou omissão, constitui um gritante apelo para nos engajarmos na busca de “um outro mundo possível”. Contudo, ainda não será o Feliz Ano-Novo.



O ano será novo se, em nós e à nossa volta, superarmos o velho. E velho é tudo aquilo que já não contribui para tornar a felicidade um direito de todos. À luz de um novo marco civilizatório há que superar o modelo produtivista-consumista e introduzir, no lugar do PIB, a FIB (Felicidade Interna Bruta), fundada em uma economia solidária.



 Se o novo se fizer advento em nossa vida espiritual, então com certeza teremos, sem milagres ou mágicas, um Feliz Ano-Novo, ainda que o mundo prossiga conflitivo; a crueldade, travestida de doces princípios; o ódio, disfarçado de discurso amoroso.


A diferença é que estaremos conscientes de que, para se ter um Feliz Ano-Novo, é preciso abraçar um processo ressurrecional: engravidar de si mesmo, virar-se pelo avesso e deixar o pessimismo para dias melhores.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

TCHAU 2018.

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Chego ao fim do ano e constato que, entre mortos e feridos, cascatas de pedras a atulhar esperanças, e o grito alucinado frente à enxurrada de mazelas, estou vivo.

Estar vivo é milagre constante. Por muito pouco a vida se esvai: um coágulo de sangue no cérebro, um tropeção, o vírus, o tiro, o acidente de trânsito, um acaso, o esgarçamento ético, a desprovisão moral.

A cada manhã se repete o renascer. Agora sei por que o bebê faz manha à hora em que o sono começa a vencer-lhe a resistência. Teme a morte, a segregação do aconchego, o retorno às cavernas uterinas. O sono apaga-lhe os sentidos, a consciência, o (con)tato com mãos e olhares afetuosos.

Crescer é dormir sem medo. Confiante de que se vai acordar no dia seguinte. Agora, sei que acordei em 2018. Espero que não apenas do sono pós-réveillon. Também dessa letargia que me acossa, desse propósito de inconsistência que me assalta, dessa lúgubre angústia de viajeiro que, além de perder o mapa, perdeu-se no mapa.

Adeus 2018. No ano que esta findando, por vezes me julguei um idiota dostoievskiano, entre crime e castigo, porém como se tudo dependesse da destreza semântica do jogador. Como em ”Tom Jones“, de Fielding, meu idealismo factício se descosturou em realidade. Desabou o céu e me vi pisando o chão de estrelas, cujas pontas ferinas em nada evocavam a canção de Orestes Barbosa. E comunguei a dor, essa dor inconsútil que dilacera silenciosamente, um por um, os fios que, em nossa subjetividade, tecem a certeza de que o sonho é o prenúncio inconsciente de que todo real é vulnerável.

Contudo, não sucumbi. Feito bambu, envergo mas não quebro. De minhas ranhuras brota delicado som de flauta. Não sou dado ao absinto e sei que a vida é uma aposta. Todas as minhas fichas estão colocadas no tabuleiro dos deserdados. Jogo ao lado dos perdedores. É apenas isto que me interessa: ao faminto, o pão e a paz. De que valem todos os poderes do mundo se não enchem um prato de comida? De que valem todos os reinos se não plenificam a alma do gosto de uva?

Não sou empalhador de pássaros. Quero-os vivos, livres, o voo arisco enrugando ventos. Quero-os saltitantes entre as flores que cultivo em meu canteiro íntimo. Quero-os gorjeando melodias todas as manhãs. Quero-os agora em 2019, sem contudo me provocarem a vertigem das alturas.

Bem sei que teremos ano novo de rinhas eleitorais, disputas políticas, juras de campanhas. Prefiro assim à ordem canhestra das ditaduras e ao genocídio da guerra que supõe impor democracia por força das armas. Só não sei quando o meu povo se erguerá da desolação, os jovens deixarão de ser meros espectadores, de novo ruas e praças serão ocupadas, desalojando a política de seus palácios e de seus redutos parlamentares e tornando-a, de fato, o que sempre deveria ter sido, esse exercício coletivo de imprimir futuro ao futuro, por mais que a expressão pareça apenas uma redundância.

Chega de golpes! Quero a vida despontando na cidadania inelutável, na teimosia dos inconformados, na ociosidade intemporal dos mendigos, nas mulheres condenadas a bordar dores incolores, na despossuída humilhação dos que clamam por um pedaço de terra, de chão, de casa, de direito. Tenhamos todos acesso à vida, distribuída à farta como pão quente pela manhã, sem jamais temer as intermitências da morte.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

NO NOVO ANO TROCAR O LAMENTO PELA AÇÃO.

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Estamos Chegando a 2019! Estamos a nos aproximar mais perto de nós mesmos?

Há uma abissal distância entre o que somos e o que queremos ser. Um apetite de Absoluto e a consciência aguda de nossa finitude. Olhamos para trás: a infância que resta na memória com sabor de paraíso perdido; a adolescência tecida em sonhos e utopias; os propósitos altruístas.

Agora, nas atuais circunstâncias, a ameaça de desemprego; o salário exíguo em um país tão caro; o (des)governo sem rumo; a sombra de Trump.

Em volta, a violência da paisagem urbana e a nossa dificuldade de conectar efeitos e causas. Como se moradores de rua fossem cogumelos espontâneos e não frutos do darwinismo econômico que segrega a maioria pobre e favorece a minoria abastada. O mesmo executivo que teme sequestro e brada contra bandidos, abastece o crime ao consumir drogas e corromper o poder público.

Ano novo, vida nova. No fundo da garganta, o travo. Vontade de remar contra a corrente e, enquanto tantos celebram a pós-modernidade, pedir colo a Deus e resgatar boas coisas: a oração em família, o amor sem pressa, a leitura dos místicos, o diálogo amigável com os filhos, a solidão entre matas, o gesto solidário capaz de amenizar a dor de um enfermo.

Reencontrar, no ano que se inicia, a própria humanidade. Despir-se do lobo voraz que, na arena competitiva do mercado, nos faz estranhos a nós mesmos.

Ano novo de incertezas. Olhemos a cidade, o estado, o país. As obras que beneficiam empreiteiras trazem proveito à maioria da população? Melhoram o transporte público, o serviço de saúde, a rede educacional, o saneamento? Nosso bairro tem bom sistema sanitário, as ruas são limpas, há áreas de lazer? Participamos do debate sobre o orçamento municipal? Os políticos em quem votamos têm desempenho satisfatório? No combate à violência, eles remetem às áreas de conflito policiais ou professores?

Em política, tolerância é cumplicidade com maracutaias. Voto é delegação e, na verdadeira democracia, governa o povo através de seus representantes e de mobilizações diretas junto ao poder público. Quanto mais cidadania, mais democracia.

Ano de nova qualidade de vida. De menos ansiedade e mais profundidade. Aceitar a proposta de Jesus a Nicodemos: nascer de novo. Mergulhar em si, abrir espaço à presença do Inefável. Braços e corações abertos também ao semelhante. Recriar-se e apropriar-se da realidade circundante, livre da pasteurização que nos massifica na mediocridade bovina de quem rumina hábitos mesquinhos, como se a vida fosse uma janela da qual contemplamos, noite após noite, a realidade desfilar nos ilusórios devaneios de uma telenovela.

Feliz ano novo a quem se propõe a trocar o lamento pela ação, a queixa pela pressão, o protesto pela proposta. E está disposto a sair de si para organizar a esperança.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

VEM MUITO MAIS PORRADAS POR AÍ!

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Quando a gente fala que o estilo Bolsonaro estimula o ódio, a violência e o preconceito, os seus seguidores nos chamam de esquerdistas, de mimizentos, nos mandam ir para Cuba ou falam que o Lula está preso. Não necessariamente nessa ordem, mas com a mesma dissonância de argumentos. Aliás, soar diferente, é das características dos adoradores do futuro presidente e de sua equipe de governo. Ainda que se comportem como um nota fora da escala, que provoca uma sensação angustiante no ouvinte que possui um pouco mais de sensibilidade.

As cerimônias de diplomação dos deputados e senadores, em São Paulo e em Minas Gerais, teve a marca do novo presidente da república e dos futuros parlamentares que ele ajudou a eleger. Foi porrada e bomba. Só não teve tiro, porque o porte de armas ainda não foi liberado. Em Minas, o que motivou a reação raivosa dos parlamentares bolsonaristas, foi a exibição de uma placa em homenagem a vereadora Marielle Franco, assassinada a tiros no Rio de Janeiro e um cartaz que pedia a liberdade do presidente Lula. Devemos concluir então, que o assassinato bárbaro de uma mulher que lutava por uma sociedade mais justa e a prisão política de um ex-presidente, que em seu governo tentou diminuir a injustiça social, é algo justo e natural para essa gente.

Além das vaias dos bolsonaristas à deputada Áurea Carolina, eleita pelo Psol, que relembrou a morte Marielle, um deputado eleito pelo PSL, partido de Bolsonaro, partiu para as vias de fato contra o deputado Rogério Correia, do PT, que adentrou o palco empunhando um cartaz "Lula livre". Em São Paulo, o ultimate fighter teve como protagonista, Alexandre Frota, eleito deputado federal também pelo PSL. Ele desferiu sutis joelhadas contra um deputado do Psol, que também relembrou o caso Marielle e cerrou os punhos ao estilo "panteras negras", convidando o povo à resistência.

Questionado sobre sua atitude violenta, Frota disse que fez o certo e que o deputado do Psol (que foi chamado de "preto vagabundo", por alguns fascistas presentes ao local) deu sorte de não ter sido jogado na platéia. Ele ainda associou militantes de esquerda, à bandidagem e não demonstrou preocupação com o seu comportamento pouco diplomático, numa cerimônia de diplomação de parlamentares. "Quero que o ritual do cargo de deputado vá para a casa do c...." , disse ele, pontuando a atitude que daqui a quatro anos, deverá ser lembrada como a de maior destaque no seu mandato.

Não tenho lembranças ou sequer tinha ouvido falar, que fatos como estes tenham ocorrido em outras cerimônias de diplomação de parlamentares. Não há dúvidas de que isso é reflexo do comportamento e da ideologia, daquele que assumirá o cargo de chefe maior do estado brasileiro. A ele, juntaram-se seres que compartilham do seu mesmo sentimento de ódio às diferenças e desprezam o estado democrático de direito. O próprio, ainda em campanha, havia dito que as minorias deveriam se curvar ou desaparecer. Ele também prometeu acabar com todo o tipo de ativismo. Lógico, que ele estava referindo-se aos que são opositores de sua política de extermínio social.

Quem não possui argumentos convincentes, tenta se impor através da força e da truculência. Isso deverá ser uma constante, tanto nas tomadas de decisão do governo Bolsonaro, quanto na postura dos parlamentares que ele ajudou a eleger. Eles ressurgiram das cavernas do obscurantismo, com a missão de devolver aos "dinossauros" do sistema, tudo aquilo que os governos progressistas tentaram-lhes tirar. O totalitarismo, tentando disfarçar a sua essência ultrapassada e cafona, agora veste prada e tenta passar-se por honesto e neoliberal. Um disfarce que só durou, até o primeira laranja, digo, o motorista cair do pé e desaparecer por entre as nuvens. Talvez levado à lua pelo futuro ministro astronauta.

Temos muito com o que nos preocuparmos. Essa turma jogou sujo para chegar ao poder. Uma prova de que a democracia agonizará, sob os cuidados desses valentões da direita. A cada kit gay, a cada mamadeira com bico de piroca e a cada fake news por eles produzidos e compartilhado nos zaps zaps da vida, eles foram construindo o seu castelo. A estrutura parece sólida, mas quem acompanhou atentamente a sua construção, sabe que a base é frágil e pode desmoronar a qualquer momento. O problema, é que o estrago causado na sociedade pode ser grande demais.
Preste a atenção:

Vem muito mais porrada por aí!

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

FOI ASSIM QUE NASCEU JESUS

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Samuel se arrasta até a entrada e levanta a lamparina de azeite à altura do rosto do forasteiro.
- José! - admira-se Samuel.
- Shalom, Samuel! Acabo de chegar de Nazaré. Foram quatro dias de viagem.
Volta o braço direito para trás e puxa a mulher para junto de si.
- Esta é Maria.
A moça recolhe os olhos ao chão.
- Carecemos de pouso. Esperamos um filho para esses dias.
Samuel abaixa a lamparina e alisa os cabelos fartos como se apalpasse a mente em busca de palavras para expressar os sentimentos.
- José, perdoa-me. Somos irmãos, mas não posso receber-vos em minha estalagem. Já não me resta nenhum quarto. Tu sabes, nesta semana haverá o recenseamento ordenado pelo Imperador.
José vira o rosto em direção a Maria. Ela se livra do braço do marido. Sente-se decepcionada por tantas portas que não se abrem.
- Podemos ao menos lavar os pés e as mãos, e encher as ânforas? - pergunta José.
- Entrem, diz Samuel.
- Tu conheces a casa.
Enquanto Maria se refaz, os irmãos se acomodam em torno da mesa. Samuel estende uma copa de vinho a José e também se serve.
- José, estamos todos preocupados contigo. Será que só tu ignoras que és motivo de chacota da Galileia à Judeia?
- E por quê? O que há de errado em minha vida?
- Tudo, José. És o único da família que ainda rasteja os pés na pobreza. Não consegues manter-te dignamente com o teu trabalho. Nem sequer possui tua própria oficina.
- Ora, Samuel, tu bem sabes que desde que comecei a ver com olhos críticos os escribas de Belém e os saduceus de Jerusalém, sou tratado como um samaritano.
Os olhos de Samuel chispam em fagulhas.
- És orgulhoso, José! Não vês que, de toda a família, só tu não progrediste?
Enquanto os dois discutem, Maria termina de lavar-se. Sentada a um canto, faz correr os dedos delicados sobre o ventre inchado. As primeiras contrações se anunciam.
- És tão ingênuo, José. Não sabes que és motivo de riso em toda a Judeia? Todos sabem que essa moça traz no seio um filho que não é teu.
José levanta-se ríspido.
- És tão peçonhento quanto a mais perigosa das serpentes, Samuel! Maria e eu fomos agraciados por Javé, que nela gera Seu próprio filho. Um anjo assegurou-nos que assim é.
- Anjo? Ora, anjo! - exclama Samuel animado pelo vinho.
Maria, que se aproxima, cessa o passo ao escutar o tom de escárnio.
- José, se essa criança vier ao mundo nesses dias, que dirás aos recenseadores? Mentirás que és o pai?
Na madrugada de Belém, José e Maria ingressam por um pasto além dos limites da cidade. Maria sente aumentarem as contrações. Julga que é efeito das diatribes de Samuel. José encontra um cocho forrado de palha de trigo. Vacas, carneiros e cabras vagueiam em volta. Com mantas, José cobre o chão e deita Maria. Acende o lume, lava as mãos e ajeita em torno de si uma gamela de madeira e tiras de pano preparadas para a ocasião. Desembrulha do linho uma lâmina de cobre e deixa que o corte seja lambido pela chama do fogo. A mulher geme com as mãos presas ao ventre. O marido não consegue distinguir-lhe as palavras, sem a certeza de que ela sussurra José ou Javé.
Pouco depois, José termina o trabalho de parto. As primeiras luzes da manhã permitem ao casal contemplar a face morena do menino. Maria aperta o bebê em seu seio, que ele suga ávido, enquanto os pezinhos resvalam agitados no ventre da mãe, em busca de apoio. José besunta a mão calosa de azeite e passa suavemente sobre a pele de Jesus.

domingo, 23 de dezembro de 2018

AOS LEITORES O MEU CARTÃO DE NATAL.


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Feliz Natal a quem cultiva ninhos de pássaros no beiral da utopia e coleciona no espírito as aquarelas do arco-íris. E a todos que trafegam pelas vias interiores e não temem as curvas abissais da oração.

Feliz Natal aos que reverenciam o silêncio como matéria-prima do amor e arrancam das cordas da dor melódicas esperanças. Também aos que se recostam em leitos de hortênsias e bordam, com os delicados fios dos sentimentos, alfombras de ternura.

Feliz Natal aos que trazem às costas aljavas repletas de relâmpagos, aspiram o perfume da rosa dos ventos e levam no peito a saudade do futuro. Também aos que semeiam indignações, mergulham todas as manhãs nas fontes da verdade e, no labirinto da vida, identificam a porta que os sentidos não veem e a razão não alcança.

Feliz Natal aos que dançam embalados pelos próprios sonhos e nunca dizem sim às artimanhas do desejo. Aos que ignoram o alfabeto da vingança e jamais pisam na armadilha do desamor, pois sabem que o ódio destrói primeiro a quem odeia.

Feliz Natal a quem acorda, todas as manhãs, a criança adormecida em si. E aos artífices da alegria que, no calor da dúvida, dão linha à manivela da fé.

Feliz Natal a quem recolhe cacos de mágoas pelas ruas a fim de atirá-los no lixo do olvido e guardam recatados os seus olhos no recanto da sobriedade. A quem, diante do espelho, descobre-se belo na face do próximo.

Feliz Natal a todos que pulam corda com a linha do horizonte e riem à sobeja dos que apregoam o fim da história. E aos que suprimem a letra erre do verbo armar e se recusam a ser reféns do pessimismo.

Feliz Natal aos que fazem do estrume adubo de seu canteiro de lírios. Também aos poetas sem poemas, aos músicos sem melodias, aos pintores sem cores e aos escritores sem palavras. E a todos que jamais encontraram a pessoa a quem declarar todo o amor que os fecunda em gravidez inefável.

Feliz Natal aos ébrios de transcendência e aos filhos da misericórdia que dormem acobertados pela compaixão. E a quem não se deixa seduzir pelo perfume das alturas e nem escala os picos em que os abutres chocam ovos.

Feliz Natal a quem, no leito de núpcias, promove despudorada liturgia eucarística, transubstanciando o corpo em copo inundado do vinho embriagador da perda de si no outro. E a quem corrige o equívoco do poeta e sabe que o amor não é eterno enquanto dura, mas dura enquanto é terno.

Feliz Natal aos que repartem Deus em fatias de pão e convocam os famélicos à mesa feita com as tábuas da justiça e coberta com a toalha bordada de cumplicidades.

Feliz Natal aos que secam lágrimas no consolo da fé e plantam no chão da vida as sementes do porvir. E aos que criam hipocampos em aquários de mistério se embebedam de chocolate na esbórnia pascal da lucidez crítica. E a todos que, com o rosto lavado das maquiagens de Narciso, dobram os joelhos à dignidade dos carvoeiros.

sábado, 22 de dezembro de 2018

BRASIL PATRIMÔNIO DA ELITE


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Duas pesquisas acabam de nos informar que a situação social do Brasil sofreu considerável piora nos dois últimos anos do governo Temer. A pesquisa extraoficial, feita pela Oxfam Brasil e intitulada “País estagnado, um retrato das desigualdades brasileiras”, foi divulgada em 26/11. A oficial, tornada pública em 5/12, é a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE.

A redução da desigualdade estagnou entre 2016 e 2017. Hoje, a renda média da metade mais pobre da população é de R$ 787,69 por mês, inferior ao valor do salário mínimo (R$ 954). Sessenta por cento dos brasileiros sobrevivem com menos de um salário mínimo por mês.

O Brasil recuou cinco anos na questão social. Voltou ao patamar de 2012. A população em situação de extrema pobreza, com renda inferior a R$ 8 por dia, passou de 13,5 milhões de pessoas, em 2016, para 15,2 milhões de pessoas, em 2017. Em um ano foram condenados à miséria 1,7 milhão de brasileiros.

Ampliou-se o número dos que sobrevivem abaixo da linha da pobreza, com renda diária inferior a R$ 22. Em 2016, eram 52,8 milhões de pessoas. Em 2017, 54,8 milhões sobreviviam com menos de US$ 5,50 por dia (R$ 406 por mês), patamar que, segundo o Banco Mundial, designa o nível de pobreza. Três vezes a população do Chile.

Em 2016, os pobres tinham renda média de R$ 217,63. No ano seguinte, R$ 198,03. Perda de 9%. Já os 10% mais ricos tiveram 2,09% de aumento na renda, que chegou a R$ 9.519,10 por mês. Desses 10%, 12 milhões ganharam até R$ 17,8 mil de renda tributável. E a parcela de 1% mais rico, que abrange 1,2 milhão de brasileiros, teve rendimento médio superior a R$ 55 mil por mês.

Para que todo esse contingente populacional deixe a pobreza é preciso investir R$ 10,2 bilhões por mês ou R$ 187 mensais por pessoa! O governo prevê destinar ao Bolsa Família, em 2019, R$ 30 bilhões. Erradicar a extrema pobreza no Brasil significa canalizar à área social quatro Bolsas Famílias.

Para reduzir a desigualdade não bastam medidas conjunturais. São necessárias atitudes estruturantes, como a reforma tributária. Quem ganha mais deve pagar mais impostos. O sistema fiscal precisa ser progressivo, como em muitos países. Não adiantam ajustes fiscais sem políticas sociais. Nem cortar gastos da administração pública sem promover a reforma tributária com novas alíquotas de imposto de renda para os mais ricos. É preciso reduzir a tributação sobre bens e serviços e aumentá-la sobre rendimentos e patrimônios. De que vale salvar as contas do governo e jogar a maior parte da nação no desamparo?

Se em 20 anos o nosso país reduziu pela metade a mortalidade infantil, ampliou de cinco para oito os anos de escolaridade e diminuiu o número de famílias na miséria, isso não resultou apenas da austeridade fiscal. Foi sobretudo fruto de políticas sociais. Porém, nada indica que estamos na direção certa. O Judiciário reajusta seus gordos salários e os royalties do pré-sal destinados à educação são reduzidos pela metade! A renda do 1% de brasileiros mais ricos é 36 vezes superior à media do que ganham os mais pobres. O Brasil é o segundo país que mais concentra renda no topo da pirâmide social. Só perde para o Qatar.

Em 2017, 28% da população eram crianças de 6 a 14 anos fora de escola, pessoas com mais de 14 anos analfabetas e acima de 15 anos sem o ensino fundamental completo. Sem investimento em educação não haverá redução do desemprego.

Fala-se muito que tudo será melhor se for aprovada a reforma da Previdência. Mas afetará os privilégios do funcionalismo público? Estudo do Ministério da Fazenda, divulgado no último dia 5, demonstra que a Previdência paga 12 vezes mais para os ricos do que para os mais pobres. De todos os benefícios previdenciários, apenas 3,3% vão para os mais pobres. O que equivale a R$ 17,8 bilhões. Os mais ricos embolsam 40,6% do bolo, ou seja, R$ 243,1 bilhões – 12 vezes mais.

Enquanto não for dado um basta ao patrimonialismo – a ideia de que o Estado é patrimônio da elite – não haverá erradicação da pobreza e, portanto, redução da violência e da exclusão social.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

FALANDO UM POUCO DE PRESÉPIO.

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O final do ano se aproxima e com ele celebramos 795 anos do primeiro presépio vivo da história. Em 29 de novembro de 1223, ao receber a aprovação da sua ordem em Roma, Francisco pediu ao Pontífice a autorização para representar a Natividade, considerando o Natal que se aproximava. O local escolhido pelo Santo para a representação foi a cidadezinha de Greccio, perto de Assis. Francisco era muito ligado a este local pela sua pobreza e simplicidade, mas também porque em nenhum outro lugar, dizia ele, tantas almas tinham acolhido a fé. Hoje, quase oitocentos anos depois, a tradição de montar o presépio está presente nos quatro cantos do mundo, mas o que mais impressiona é pensar que os pobres nazarenos, como na Greccio medieval, estão nas grandes cidades do mundo, nas fronteiras fechadas aos que buscam refúgio, nas periferias caídas novamente na miséria, e nós não os percebemos.

Eram pessoas brancas numa Europa predominantemente branca e isso surpreendia quem, vindo de um continente de tráfico de escravos como o nosso, conhecia principalmente a pobreza de negros, pobres e mulatos. A imigração europeia entre nós tem sabor de vitória sobre a fome, alimenta a ideia de que tudo é possível e não raramente nos leva a esquecer a miséria europeia dos nossos antepassados. Pelo contrário, o sucesso em toda feira do interior do Brasil são os falsos brasões de família, por meio dos quais tentamos enganar a história e o nosso sofrimento ancestral.

Também eram eslavos os miseráveis da Europa medieval. A palavra escravo, em italiano “schiavo” e em inglês “slave”, vem do termo “eslavo”. Por volta do século X, o termo escravo era diretamente associado a eslavo, pois das regiões eslavas provinha a maior parte dos “escravos brancos”: soldados capturados e por vezes familiares caídos na mesma desgraça, endividados ou em outras situações, muitas vezes econômicas, que os levavam a essa condição. Esses escravos não chegaram a se transformar em produtos de mercado na escala que mais tarde atingiu as populações provenientes da África, mas o fenômeno deixou marcas na cultura. Um exemplo é a palavra “ciao” em italiano, da qual deriva o nosso “tchau”. Usada como saudação, no passado significava “seu servo” ou “seu escravo”. “Ciao” deriva da palavra “schiavo”, mas hoje é uma saudação informal, equivalente ao nosso “oi”. É possível que os falantes, ao usarem essa palavra todos os dias, tenham esquecido ou desconheçam que ela está associada historicamente à escravidão e que se transformou em demonstração de deferência na rica Veneza de séculos atrás, na qual eslavos foram escravos e onde saudar uma pessoa usando a expressão “seu escravo” representava o máximo respeito.

Falei de São Francisco, dos pobres de Greccio, dos escravos eslavos e dos imigrantes brancos da Europa porque o Brasil não me sai da cabeça. Eu procuro pensar em outros temas, mas tudo me leva ao nosso país: que voltou a incrementar a pobreza e a jogar os pobres na miséria, sem direitos, sem médicos, sem projetos sociais. Que nação é esta que esquece os lotes dados a imigrantes europeus e aprova a usurpação das terras indígenas? Que população é esta que esquece a falta de um estatuto para regulamentar e ressarcir as vítimas de escravidão por mais de um século e considera qualquer programa de inclusão para os negros uma afronta àquilo que outros grupos sociais receberam? Que país é este que pensa que pessoas sem nenhuma oportunidade na vida podem ter as mesmas chances de quem tudo teve na vida? Que sociedade é esta que enfeita as ruas com luzes, enche a mesa de comida e não vê os pobres que fazem das suas vidas um presépio vivo e permanente?

Espero, como há quase oitocentos anos, que haja uma gruta e um senhor de boa vontade para preparar uma manjedoura, e muitos pobres com os corações cheios de esperança para lá se refugiarem. Se eu encontrar este lugar e estas pessoas terei encontrado o melhor Natal do mundo. É um lugar especial, percebe-se por tudo o que disse até aqui: está exatamente no espaço entre as pessoas, que pode se tornar abrigo, quando colocamos na relação e no diálogo com os demais a nossa sensibilidade e a nossa empatia. É lá que se encontra o melhor de nós e é de lá que retomaremos o caminho para enfrentar e vencer as dificuldades que o próximo ano nos reserva.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

QUE BOM: FRACASSAMOS!

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Este foi um ano de grandes fracassos. A pobreza aumentou. O desemprego aumentou. O dólar aumentou. A gasolina aumentou. A mentira aumentou. O ódio aumentou. As demonizações aumentaram. O crime aumentou. A fome aumentou. A luz aumentou. As despesas aumentaram. A ignorância aumentou. O fanatismo aumentou. O desespero aumentou. Está ótimo, a maioria venceu.

De minha parte, só tenho a festejar as minhas derrotas, que são: acreditar no amor, na construção cotidiana da democracia, no arrependimento, na justiça, na inocência. Também acredito na flor e na borboleta livre. Acredito no rio que corre e nas crianças indígenas. Acredito na mutação das nuvens. Acredito nas palavras. Acredito no conhecimento. Acredito nas dificuldades. Acredito na tristeza. Acredito nos sorrisos. Acredito na dignidade. Acredito nos pobres. Acredito na luz da lua e no movimento das ondas. Acredito na risada das crianças. Acredito nos sonhos. Acredito nas ideias. Acredito na agricultura dos campesinos. Acredito nas mães sem marido. Acredito nos que buscam uma casa. Acredito no samba. Acredito na dança. E, por isso, sou um fracassado.

Que bom, eu digo. Nada como o reconhecimento de um fracasso para abalar a crença na segurança financeira, nos círculos bem frequentados, na estabilidade da vida, na esperteza, no jeitinho, na maldade, na indiferença, no sucesso, no fascínio, no poder. O fracassado é antes de tudo um forte, capaz de desafiar o que aos olhos e à evidência dos fatos, não pode ser vencido. E apesar de tudo, o fracassado continua ali, como se a sua própria existência fosse a certeza de que nenhuma teoria jamais será a verdade. Os fracassados lutam contra o absoluto, contrariam todas as probabilidades.

Que mundo seria, se os fracassados não dessem sentido a palavras como persistência, responsabilidade, coragem, força? O que seria da palavra destemido, se um fracassado não mostrasse com a sua presença a injustiça das lutas desiguais? O que seria das palavras trégua e paz, se os fracassados não sofressem as perdas?

Mas, como tudo na vida, há um lado ruim em ser fracassado: é ser inerme diante da soberba, da vingança, da irrisão dos vencedores. Perder muitas vezes significa ficar à mercê da prepotência. Quando os vencedores exibem os músculos, os dentes e a arrogância, mais fracassados ficam os derrotados. Quando os vencedores desprezam e aniquilam, mais mostram que o fracasso é também a tentativa de eliminação, é a sanha dos que não suportam a existência do outro, ainda que fracassado. Não existe um grande fracasso sem um vencedor implacável, incapaz de perdoar, ávido por satisfazer o seu rancor.

Ah, foi um ano ruim, foi um ano péssimo. Este foi o ano em que muitos fracassados viram-se, de repente, com a força de suportar o peso do mundo. Foi um ano em que pessoas foram jogadas no fracasso e não perceberam ainda os obstáculos que o próximo ano reserva. Foi um ano em que alguns aceitaram o fracasso com a responsabilidade dos que existem para construir o futuro. Foi um ano ruim, mas os fracassados foram os melhores. O fracasso ensina a ter sonhos, ensina a abraçar, ensina a sentir a dor do outro. Fracassamos, amigos. Nós vencemos.


terça-feira, 18 de dezembro de 2018

COMO DEVERIA SER O NOSSO NATAL

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Natal é tempo de desconforto. Premidos pela publicidade que troca Jesus Cristo por Papai Noel, somos desdenhados como cidadãos e aliciados como consumidores.

Ainda que com dinheiro no bolso, instala-se um oco em nosso coração. Aquece-se a temperatura de nossa febre consumista e, discípulos fundamentalistas de esdrúxula seita, adentramos em procissão motorizada nas catedrais de Mamon: os shopping centers.

Nessas construções imponentes, falsos brilhantes da cenografia cosmopolita, aguardam-nos as oferendas da salvação, premissas e promessas de felicidade. Exibidas em requintados nichos, vitrines reluzentes, acolitadas por belas ninfas, as mercadorias são como imagens sagradas dotadas do miraculoso poder de nos fazer ingressar no reino celestial dos que tudo fazem para morrer ricos.

Livres de profanas figuras que poluem o exterior, como as crianças que transmutam as janelas de nossos carros em molduras do pavor, percorremos silentes as naves góticas, enlevados pela música asséptica e o aroma achocolatado de supimpas iguarias.

Olhos ávidos, flexionamos o espírito de capela em capela, atendidos por solícitas sacerdotisas que, se não podem ofertar de graça o manjar dos deuses, ao menos nos brindam com seus trajes de vestais romanas, condenadas à beleza compulsória.

Eis ali, no altar de nossos sonhos, o Céu antecipado na Terra na forma de joias, aparelhos eletrônicos, roupas e importados, sacramentos que nos redimem do pecado de viver neste país cuja miséria estraga a paisagem.

Com certeza o Natal papainoélico é a única festa em que a ressaca se antecipa à comemoração. Tomem-se vinhos e castanhas, panetones e perus, e um punhado de presentes, eis a receita para disfarçar uma data. E sonegar emoções e sentimentos. Mas não é Natal.

Para se fazer festa de Natal é preciso aquecer afetos e servir, à mesa, carinho e solidariedade, destampando a alma e convertendo o espírito em presépio, onde renasça o Amor. Dar-se em vez de dar, estreitando laços de família e vínculos de amizade.

Urge abrir o dicionário gravado nas dobras de nossa subjetividade e substituir competição por comunidade, inveja por reconhecimento, ressentimento por humildade, eu por nós.

Melhor que nozes nesses trópicos calientes, convém saciar a língua de prudência, privando-se de falar mal da vida alheia.

Um pouco de silêncio, uma oração, a retração do ego, favorecem o encontro consigo mesmo, sobretudo a quem se reconhece alienado de Deus, dos outros e da natureza. Não custa pisar no freio dessa destrambelhada corrida de quem, no afã de ultrapassar o ritmo do tempo, corre o risco de ter a vida abreviada pela exaustão do corpo e a confusão da mente.


Antes dos copos, recomenda-se encher o coração de ternura até transbordar pelos olhos e derramar-se em afagos e beijos.

Pois de que vale o Natal se não temos coragem de nos dar de presente a decisão de nascer de novo?


segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

EU, O TERRORISTA

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É fácil criticar os terroristas do Estado Islâmico, que não respeitam nada nem ninguém. Difícil é derrotar o terrorista que me habita e se manifesta quando encontro quem não pensa como eu. Como ousa defender outro partido?, indago, aos gritos, com raiva, deixando vazar o ódio que guardo no peito. Saio falando mal do partido e do amigo que tem a desfaçatez de ainda justificar políticos e políticas que só contribuíram para o atraso deste país.

Se eu pudesse me despir dessa pele de cordeiro que encobre o lobo que sou, calava o meu amigo, cortava-lhe a língua, libertava o seu cérebro dessa lavagem cerebral a que foi submetido. Será que todos não se dão conta de que eu tenho sempre razão? E depois reclamam quando detono as bombas que trago nas entranhas e, inflamado, vocifero contra os estúpidos que insistem em me convencer de suas opiniões insensatas.

O terrorista que me povoa usa armas ferinas: difama e calunia, sem dar ao outro o benefício da dúvida, e muito menos o direito de defesa. É um fanático religioso. Na fase ateia, defende a não existência de Deus, considera todos os crentes imbecis, alienados, dopados pelo ópio do povo, movidos pela ilusão de que há transcendência e vida após a morte. Na fase religiosa, não admite a convivência de todas as religiões. Há um só Deus, o dele! Um só Credo, o que ele professa! Todos que não creem como ele crê merecem a perseguição, a morte, o inferno, pois são todos infiéis, heréticos, idólatras!

O terrorista que há em mim fala em democracia para o público externo. No íntimo, advoga uma sociedade autoritária, na qual todos pensem e ajam como ele, numa demonstração inquestionável de que fora do pensamento único não há salvação. Também fala de ética e proclama que é pecado roubar, mas embolsa o dinheiro dos fiéis, constrói mansões para o conforto de seu ego, tem horror de pobres, finge milagres para reforçar a aura divina de seu poder.

O terrorista que ocupa o meu coração é homofóbico, machista, racista, intolerante com aqueles que não se comportam segundo padrões moralistas de decência. É arrogante, prega certezas irrefutáveis. Mal-educado e grosseiro, não se levanta para dar lugar ao idoso e à mulher grávida. Desconfia da faxineira se um objeto sem valor desaparece da casa; irrita-se quando preso no engarrafamento ou se vê obrigado a enfrentar fila; usa a política para alcançar seus propósitos escusos.

O terrorista que comanda minhas emoções não é muçulmano, mas também pertence ao EI – Estado da Intolerância, que se impõe no almoço em família, no papo da roda de amigos, no local de trabalho. Ainda que dê ouvidos a um boçal para fingir educação, o que gostaria mesmo é calá-lo com um soco na cara e quebrar-lhe os dentes.

Esse terrorista que, em sociedade, me usa como disfarce, não grita Allahu Akbar (Deus é grande!). Grita: Eu sou o cara! Dobrem-se à minha opinião! E degola virtualmente todos que discordam. Estes são queimados vivos nas brasas aquecidas pelo ódio. Divulga na internet tudo que possa ridicularizar os desafetos, adicionando mais lenha na fogueira da inquisição cibernética.

Esse terrorista fundamentalista jamais dirá ao outro “a tua fé te salvou”, como fez Jesus. Dirá “eu te salvei”. Isso se o outro comungar a fé que ele professa, ao contrário de Jesus que ousou, em supremo gesto de liberdade religiosa, dizer “a tua fé te salvou” ao centurião romano, que professava o paganismo, e à mulher cananeia, que pertencia a um povo politeísta.

sábado, 15 de dezembro de 2018

CONSTRUINDO O INIMIGO


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Quem tem acompanhado as manifestações de violência, atribuídas a “questões políticas”, atualmente, pode ver que muitas delas vêm acompanhadas não de gestos fortuitos, em lances de investidas momentâneas e fugazes. Pode parecer que sim, à primeira vista. Mas, se procedermos a uma análise da conjuntura política atual, retrocedendo um pouco no tempo, veremos que não! Há, na subjacência dos atos violentos, uma arquitetura cuidadosamente organizada que leva esses “instrumentos” (pessoas comuns que, de repente, se tornam violentas porque alguém se posicionou a favor de outro candidato, que não o seu, ou disse algo que o levou a pensar isso ...) – leva esses “instrumentos” a perpetrarem mesmo crimes de morte. Mas por que, exatamente? Haverá apenas uma divergência política?

Sabemos que, na Alemanha nazista, por exemplo, antes mesmo que Hitler acedesse ao poder, caricaturas da figura perniciosa do “judeu” já circulavam há muito tempo. Essa tentativa de canalização da angústia sobre um inimigo bem identificável já é uma forma de responder a uma população inteira, ou parte significativa dela, que se encontra de algum modo fragilizada ou dividida e sem rumo: explica-se de onde vem ou pode vir uma ameaça. A partir da construção desse “medo”, por intermédio de uma figura hostil desenvolve-se o ódio contra esse outro, pernicioso e inaceitável. O ódio não é, neste caso, ingrediente de base, que definiria previamente as relações entre os grupos. É, antes, uma paixão construída, produzida, ao mesmo tempo por uma ação voluntária de pessoas extremosas a partir dos proponentes e por circunstâncias que favorecem sua propagação. No final, esse percurso – da angústia ao ódio – vai contribuir, inevitavelmente para o surgimento do desejo de destruir o que lhe foi designado como causa do medo. Naturalmente, em nível mais amplo, permanece no imaginário, tratando-se de um “desejo”. Mas é um desejo de morte. Vivemos, por exemplo, aqui no Brasil, durante os anos 1960 e 1970 o medo do “comunismo”. O medo do “marxismo”. Esse “medo” foi institucionalizado a partir da figura do “comunista” e do “marxista”. Coloco entre aspas porque é muito possível que a maioria da população desconhecesse, na época, o verdadeiro significado de tais palavras. O inimigo tinha sido criado. E assim por diante.

O perigo parece concentrar-se na igual construção de uns “nós” triunfante e vitorioso que regenera tudo e todos por meio da destruição do “eles” (o “inimigo”, agora no plural). A destruição pode se dar de várias formas: desde uma marca cortada na pele de uma jovem, passando por declarações públicas de homofobia, de incentivo ao uso de armas de fogo pela população, de incentivo à tortura, até uma briga de bar, que resulta em homicídio. Neste sentido, o “inimigo”, construído e identificado, se torna alvo fácil desse “nós” ensandecido e sedento de firmar-se, passando do imaginário para a ação com relativa facilidade.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

DEUS ABAIXO DE TODOS.

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Dilma Rousseff foi a última presidente eleita no Brasil sem a interferência das religiões. Os representantes dos cargos políticos públicos após a era Dilma serão eleitos pelas comunidades religiosas, sobretudo das igrejas pentecostais. O presidente, muitos governadores, deputados e senadores que vão assumir os cargos públicos em janeiro de 2019 são a prova da dependência política da religião. Diga-se de um grande mal para a religião e principalmente para a política.

O atrelamento das eleições à religião no Brasil é fruto de um processo histórico mal resolvido da separação Estado e Igreja. A separação do espaço laico do religioso, e do público do privado não existe na realidade. Desde a colonização do Brasil a política fortificou seus laços com a religião. Atualmente, essa unidade é legitimada por políticos que ocupam os saguões do Congresso Nacional. Nos fastidiosos discursos políticos Deus é invocado. Lamentavelmente, é invocado como elemento de barganha da confiança das comunidades religiosas. Nesta unidade perde a política que deixa de ser a ciência do debate democrático coletivo. E, perde a fé cristã, porque Cristo nunca se submeteu aos interesses da classe dominante.

O Congresso Nacional é a caracterização da não separação entre Estado e Igreja. Para os cientistas políticos o Congresso Nacional é constituído por três grupos, os chamados BBB: o grupo do boi, o da bala e o da Bíblia. Precisamente são latifundiários, agropecuaristas e pastores. Nos interesses destes grupos pautas de debate do Congresso Nacional avançam ou ficam trancadas. Isto significa a morte da política como ciência do prover o bem comum dos cidadãos. Os debates de questões fundamentais não avançam porque esbarram nos interesses do agronegócio, das mineradoras, dos pastores.

Em se tratando de religião não faltam no Brasil adeptos do fundamentalismo e fanatismo. No fundamentalismo e fanatismo religioso existe algo perigoso tanto para os crentes como para os cidadãos brasileiros: a violência, a intolerância, o ódio. No pleito eleitoral de outubro de 2018 foi eleita a maior bancada de políticos conservadores da história do Brasil, e destes, muitos pastores. A bancada é definida por alguns cientistas como sendo de extra direita. Isto é, são políticos adeptos ao uso da força, violência, armas, até ao extermínio dos adversários. Ademais, a venda de armas chegou ao crescimento de 400%. Lamentavelmente, tudo isto com aval de líderes religiosos que com seus interesses pessoais fortalecem a subordinação da política às suas igrejas. Certamente, uma prática abominável para Jesus Cristo.

Ademais, basta reportar-se ao slogan do presidente eleito que prega: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Esse bordão é o retrato fiel que a política precisa libertar-se da religião e vice-versa. Em tal slogan há engodos de natureza política e teológica. O de natureza teológica diz respeito ao conceito de “Deus acima de todos”. Essa afirmação não tem fundamento bíblico. Na história da revelação Deus nunca se colocou acima do ser humano. O slogan é uma manipulação da fé das pessoas.

Os textos bíblicos tanto da Antiga e Nova Aliança descrevem outra ideia de Deus. Toma-se um texto do Antigo Testamento que narra a revelação de Deus a Moisés: “Deus disse: Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor por causas dos seus opressores; pois eu conheço suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel. Também, recorrer ao texto do Novo Testamento da encarnação do Filho de Deus, assim narrado: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e o chamarão com o nome de Emanuel, que traduzido significa: Deus está conosco. Mesmo Jesus de Nazaré demonstra que o lugar de Deus é abaixo de todos ao lavar os pés dos discípulos.

Quanto à inverdade de natureza política no bordão “Brasil acima de tudo” ressoa autoritarismo e tirania. Em tempo da política de diálogo e respeito às demais nações, colocar um país superior ao outro corre o risco de romper relações exteriores e caminhos diplomáticos. Ademais, o Brasil não está acima de seus cidadãos. O maior valor do país são seus cidadãos. Logicamente, quando respeitados em suas ideias.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

NOSSA VIDA É EM TRÊS TEMPOS.


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"Eu digo a vocês: não andem ansiosos pela vida... Não fiquem inquietos e perturbados por causa do dia de amanhã, pois o amanhã trará consigo seus próprios problemas e necessidades; o dia de hoje já é pesado o suficiente para que se antecipe as preocupações do amanhã." Jesus (Mt 6:25,34)

Todos nós vivemos a vida em três tempos: passado, presente e futuro. Por isso, em certo sentido, o nosso ser é formado pelo nosso eu-passado(quem eu fui), eu-presente(quem eu sou) e eu-futuro(quem eu idealizo que serei). Apesar de viver no presente somos constantemente influenciados pelas sombras do passado e excitados pelas fantasias e preocupações do futuro. Daí nascem as raízes mais profundas da nossa infelicidade: a nossa incapacidade de ser e viver no presente sem precisar recorrer ao passado e ao futuro. Mas também, nasce dessa incapacidade de nos manter no presente, a nossa ansiedade.

A ansiedade, um dos mais terríveis sentimentos a assolar o coração humano, acontece quando o nosso eu-futuro cresce tanto ao ponto de anular o nosso eu-presente. Sendo assim, tudo quanto ainda não aconteceu ocupa toda minha atenção e canaliza toda minha energia. O meu interior é totalmente habitado por ocupações prévias, pré-ocupações, desencadeando uma adrenalina e uma tensão emocional capaz de roubar a paz, sonhos e a serenidade. A ansiedade mata o presente, faz adormecer o hoje, anestesia o agora e em troca, dá vida ao futuro, acorda o amanhã e centraliza-se no depois.

A ansiedade provoca em nossa vida uma reação emocional em cadeia muito perigosa! A ansiedade gera a necessidade de controlar. O controle gera um forte acúmulo de atividades. O ativismo gera uma tendência à manipulação. A manipulação conduz a tentar dar um jeito para que tudo saia do meu jeito. O resultado final, os elos últimos desta corrente, serão a frustração, o cansaço e o vazio!

Mas essa não é a proposta de Deus para as nossas vidas! Ele nos convida a viver a vida longe da ansiedade(não andem ansiosos); sugere que vivamos unicamente o dia de hoje, pois é ilusão tentar antecipar o amanhã, posto que, o único tempo possível de ser vivido é o hoje, o amanhã quando chegar será transformado no hoje (não fiquem inquietos); ainda insiste que enfrentemos os muitos problemas e preocupações de hoje, pois o amanhã trará os seus.

Seguir essa proposta de Jesus é substituir aquela reação emocional em cadeia, por uma reação espiritual: a serenidade, o reverso da ansiedade, nos leva ao equilíbrio de fazer e se ocupar somente do que é possível, este equilíbrio nos conduzirá a aceitar circunstâncias e pessoas, o que nos conduzirá deliciosa descoberta que nem tudo precisa ser do nosso jeito. O resultado final, os elos últimos desta corrente espiritual serão, a paz, o descanso e a presença viva de Jesus no nosso coração!

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

EU SOU ASSIM!


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Eu não sou eu sozinho. Sou sempre um ser habitado por tantos outros seres. Sou na verdade um conjunto de tus que resultaram num eu. Aquilo que eu chamo eu em mim, na verdade é também um pouco do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos, do meu primeiro amor, dos meus amigos e amigas mais cúmplices das minhas aventuras, tenham sido elas boas ou não tão agradáveis de serem lembradas. Sou também alguém resultante das experiências da minha história. Eu sou o que até hoje sinto da minha primeira dor, da minha primeira decepção, da minha primeira alegria, da minha primeira vitória, da minha primeira derrota...Sou assim, alguém fruto de uma porção de experiências que foram deixando em mim marcas, sensações, sentimentos tão determinantes que fazem de mim o que sou. Ainda sou alguém fruto dos lugares vividos. A geografia da minha vida tem muita ver com a formação do meu eu. Não somente pessoas, experiências, mas também lugares estão guardados dentro de mim e me explicam muito de quem sou. Sou um resultado também da praia que gosto, do escurinho do cinema, do cantinho do meu quarto, do lugar onde rolou o primeiro beijo, do meu esconderijo secreto, dos parques e jardins, enfim, de todos os lugares nos quais ri e chorei, sonhei e acordei, amei e foi amado.

Assim sou eu e eu sou assim: um ser de pessoas, experiências e lugares. Ver-me como sendo resultante de tanta coisa fora de mim, me ajuda a perceber a minha radical dependência para com toda minha história. Não existe esse papo de eu sou mais eu, pois eu sempre serei alguém como resultado de outro alguém que me ajudou a ser o que sou, bom ou ruim, bonito ou feio, magro ou gordo, mas eu. Todavia, em meio a tudo isso, eu sou mais do que tudo que me formou. Eu sou eu e apesar de todas as influências formadoras da minha vida, eu ainda sei que sou eu independente de qualquer coisa. Chega um momento na minha vida que o que mais quero é ser eu mesmo. Não quero ser mais ninguém, quero ser eu. Quero saber as dores e as delicias de ser quem sou e ponto final. Quero anoitecer e amanhecer eu mesmo.

Mas espera um pouco. Algo aqui dentro de mim me avisa, que eu não sou o centro de mim mesmo. Eu preciso de um TU maior do que os vocês que me cercam. Há um TU a quem chamo Deus, maior do que tudo e todos. Percebo que quanto mais o meu Eu fica próximo deste grande TU, então tudo em mim se harmoniza. Quando este TU deságua em mim, então, Eu oceano (do verbo oceanar). Sem esse TU eu nunca poderia ser de verdade EU mesmo. Sem o TÚ-DEUS serei sempre uma caricatura dos outros ou das minhas fantasias sobre mim mesmo. Somente este TU pode me ajudar a fazer anoitecer e amanhecer EU mesmo.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

CONSUMISMO DE NATAL


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O Natal se aproxima. Com ele, a ansiosa preocupação com a lista de presentes. Em muitos círculos familiares e corporativos se torna quase uma obrigação dar presentes, até mesmo para quem não se conhece ou se nutre antipatia. Há inclusive quem dá presente para não se fazer presente.

Presente compulsório amarga o Natal. É pagar pedágio para prosseguir na estrada da indiferença. E “amigo oculto” é uma loteria de afetos. Oculto é, por vezes, o desafeto que se tem para com o sorteado.

Transferido o presépio de Belém para o balcão das lojas, substituído Jesus por Papai Noel, a festa perde progressivamente seu caráter. O Menino da manjedoura, que evoca o sentido da existência, cede lugar ao velho barbudo e barrigudo, que simboliza o fetiche da mercadoria.

O olhar desavisado diria que o consumismo hedonista nos afasta da religiosidade. A Missa do Galo, outrora à meia-noite, reduz-se ao galeto das celebrações, às oito ou nove da noite, driblando a madrugada que favorece a violência urbana. O apetite da ceia e a curiosidade em abrir presentes parecem falar mais alto que os bons e velhos costumes: a oração em família, os cânticos litúrgicos, as narrativas bíblicas e a memória dos eventos paradigmáticos de Belém da Judeia.

O Natal nasceu como uma festa religiosa. É a apropriação cristã de ritos pagãos de celebração da mudança de ciclos da natureza. Marca a comemoração do nascimento de Jesus, cuja data exata se desconhece. Porém, fatores meteorológicos conveniaram a data de 25 de dezembro.

A tradição de troca de presentes é atribuída a vários santos que teriam o hábito de distribuir presentes às crianças pobres: são Nicolau, são Basílio de Cesareia etc. Hoje, poucos se lembram dos excluídos na festa de Natal.

São Francisco de Assis criou, no século XIII, o presépio. O nascimento de uma criança em um curral, filha de uma família sem teto, virou um bucólico cenário que encobre o fato histórico – José e Maria, rejeitados em Belém, ocuparam uma cocheira premidos pela proximidade do parto.

Em uma Comunidade Eclesial de Base da periferia de São Paulo, a leitura do relato evangélico levou dona Lídia ao seguinte comentário: “No dia seguinte, o jornal ‘Diário de Belém’ deu a notícia: família de sem teto invade sítio nas proximidades da cidade.”

Hoje a festa religiosa é ofuscada pela figura lendária de Papai Noel. O velho gorducho foi popularizado, a partir de 1822, pelo poema “Uma visita de São Nicolau”, que Clemente Clark Moore escreveu, em Nova York, para seus filhos. Os trajes e o gorro eram verdes. Em 1863, o cartunista Thomas Nast, da “Harper’s Weeklys”, o desenhou em traje vermelho, incorporado, a partir do início do século XX, à propaganda de bebidas não alcoólicas, como a Coca-Cola.

O sentido cristão do Natal é escanteado pela apropriação consumista de Papai Noel. A presença cede lugar ao presente; a Missa do Galo à mesa na qual impera o peru; a oração ao espocar das rolhas etílicas.

Na boca do coração, o gosto de mel se transubstancia em fel quando a festa se resume a desatar fitas coloridas, abrir presentes e se empanturrar de comidas e bebidas. De algum modo sabemos que sonegamos o significado mais profundo da festa.

O que sucedeu em Belém supera todas as expectativas: Deus irrompeu na história humana! Não veio como um Messias triunfante cercado pelo cortejo de anjos. Entrou pela porta dos fundos.

Filho de um remediado carpinteiro e uma pobre camponesa, o Menino logo se irmanou às gerações de refugiados ao se exilar no Egito para escapar à sanha repressiva do rei Herodes.

Toda a vida de Jesus consistiu em semear as bases de um novo projeto civilizatório que se resume, nas relações pessoais, à predominância do amor e da compaixão; e nas relações sociais, à partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano. Esta a proposta do Reino de Deus, oposto ao de César.

Tal ousadia subversiva resultou-lhe em prisão, tortura e morte na cruz. No entanto, sua ressurreição atesta que a vida supera a morte. É essa esperança que nos move para que, um dia, a paz prevaleça como fruto da justiça.

Celebrar o Natal é, portanto, partilhar com outras pessoas, em especial as necessitadas, nossos talentos, aptidões, recursos e bens, para que vivam com dignidade. É ousar fazer nascer o novo nessa velha ordem social marcada pelo preconceito e pela exclusão.

domingo, 9 de dezembro de 2018

O PRÓXIMO!



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Sabe quando se está numa destas redes de cafés e vai se aproximando o momento de seu pedido... Quando se terá uma fração de momento de atenção do profissional do caixa demandando que sua escolha seja clara e decidida... Quando qualquer hesitação será recebida com impaciência e inadequação e ao menor sinal de indecisão lhe será roubada a legitimidade comercial levando as pessoas da fila a cassar em olhar seu direito de precedência... Pois é sobre este "próximo" que gostaria de falar.

Hoje o olhar está no "próximo": "Proximo!". O tempo de atenção que nos dispensam é de soslaio, uma breve passagem antes que o protagonista seja "o próximo". Nosso dinheiro, que até então nos comprava a consideração do momento, hoje apenas dá o direito de passagem no encadear de consumidores. Qualquer excentricidade será ameaçada pelo avançar do "próximo".

Tento entender o que seria hoje "amar o próximo como a ti mesmo". Hoje todos nós disputaríamos ser o próximo - o único a merecer atenção e reconhecimento. O presencial não consegue ser amado como alguém ama a si mesmo, mas tão somente o próximo. Estamos é no tempo pós-interesseiro, porque nem sequer a atenção dos outros se consegue por interesse. Isso porque o interesse sempre estará no próximo interesse. Algo só compreensível pelo mundo dos aplicativos, do que pode ser aplicado. O freguês é passado e a referência tanto do foco como do lucro se encontra no que está por vir, um interesse mais viral do que pessoal.

O próximo é com certeza um efeito colateral do olhar de hoje. Esse olhar que é oblíquo, sempre dividido pela atenção preferencial a uma tela, e que nos oferece o mesmo pálido prestígio disponibilizado pelo profissional do caixa: não somos o foco, mas apenas mais um estímulo não presencial e difuso no encadeamento de inputs que constituem o existir. O olhar está no próximo: no que vai pop-up na vida e que teremos que atender ou deletar. E aí tudo faz sentido porque estamos trocando a existência pela aplicabilidade, e o que está presente é irrelevante diante do que está por vir.

Descobrimos que mais fácil do que dobrar a morte com nossa ciência é usá-la para produzir nossa ausência. Inventamos existir no futuro driblando o Anjo da Morte porque não estamos em nenhum lugar do presente. Como um elétron que está em algum lugar da nuvem, mas não tem lócus, também nossa presença, nosso olhar e nosso existir ganham asas no que virá proximamente. Para os que cismam habitar o momento, o mundo se assemelha a uma realidade de zumbis: de pessoas que não olham nos olhos, cuja atenção está sempre na borda da tela à espera do que vai entrar em cena. Enfim acho que estamos no tempo de "amar o próximo mais do que a si mesmo".

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

VAMOS DAR UMA PAUSA


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Muito além de uma proposta trabalhista, entendemos a pausa como fundamental para a saúde de tudo o que é vivo. A noite é pausa, o inverno é pausa, mesmo a morte é pausa. Onde não há pausa, a vida lentamente se extingue.

Para um mundo no qual funcionar 24 horas por dia parece não ser suficiente, onde o meio ambiente e a terra imploram por uma folga, onde nós mesmos não suportamos mais a falta de tempo, descansar se torna uma necessidade do planeta. Hoje, o tempo de 'pausa' é preenchido por diversão e alienação. Lazer não é feito de descanso, mas de ocupações 'para não nos ocuparmos'. A própria palavra entretenimento indica o desejo de não parar. E a incapacidade de parar é uma forma de depressão. O mundo está deprimido e a indústria do entretenimento cresce nessas condições. Nossas cidades se parecem cada vez mais com a Disneylândia. Longas filas para aproveitar experiências pouco interativas. Fim de dia com gosto de vazio. Um divertido que não é nem bom nem ruim. Dia pronto para ser esquecido, não fossem as fotos e a memória de uma expectativa frustrada que ninguém revela para não dar o gostinho ao próximo.

Entramos no milênio num mundo que é um grande shopping. A Internet e a televisão não dormem. Não há mais insônia solitária; solitário é quem dorme. As bolsas do Ocidente e do Oriente se revezam fazendo do ganhar e perder, das informações e dos rumores, atividade incessante.

Mas as paradas estão por toda a caminhada e por todo o processo. Sem acostamento, a vida parece fluir mais rápida e eficiente, mas ao custo fóbico de uma paisagem que passa. O futuro é tão rápido que se confunde com o presente. As montanhas estão com olheiras, os rios precisam de um bom banho, as cidades de uma cochilada, o mar de umas férias, o domingo de um feriado.

Nossos namorados querem 'ficar', trocando o 'ser' pelo 'estar'. Saímos da escravidão do século XIX para o leasing do século XXI - um dia seremos nossos? Quem tem tempo não é sério, quem não tem tempo é importante. Nunca fizemos tanto e realizamos tão pouco. Nunca tantos fizeram tanto por tão poucos.

Parar não é interromper. Muitas vezes continuar é que é uma interrupção. O dia de não trabalhar não é o dia de se distrair - literalmente, ficar desatento. É um dia de atenção, de ser atencioso consigo e com sua vida. A pergunta que as pessoas se fazem no descanso é 'o que vamos fazer hoje?' - já marcada pela ansiedade. E sonhamos com uma longevidade de 120 anos, quando não sabemos o que fazer numa tarde de domingo.

Quem ganha tempo, por definição, perde. Quem mata tempo, fere-se mortalmente. É este o grande 'radical livre' que envelhece nossa alegria - o sonho de fazer do tempo uma mercadoria. Em tempos de novo milênio, vamos resgatar coisas que são milenares. A pausa é que traz a surpresa e não o que vem depois. A pausa é que dá sentido à caminhada. A prática espiritual deste milênio será viver as pausas. Não haverá maior sábio do que aquele que souber quando algo terminou e quando algo vai começar. Afinal, por que o Criador descansou? Talvez porque, mais difícil do que iniciar um processo do nada, seja dá-lo como concluído.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

PÓS MODERNIDADE


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Nunca a comunicação foi tão ágil, rápida e fácil, embora cara. Sem sair da cama, podemos saber o que ocorre na Ásia, falar ao telefone com um nepalês, entrar em um site de bate-papo e nos enturmar com um bando de jovens do Brooklin. À audição (rádio) somam-se a visão (foto, cine, TV) e a fala (telefone e Internet). Faltam apenas o cheiro e o contato epidérmico, o toque.

Diante de todo esse cipoal comunicativo levanta-se uma questão: e a intercomunicação pessoal, tão valorizada por Habermas? Quantos pais “acessam” os filhos? Como é o diálogo olho no olho? Comunicação que se faz comunhão, interação, e que transmite, não a emoção de imagens e sons, mas algo mais profundo – afeto.

Reféns da tecnologia, sem todos esses aparatos temos dificuldade de dialogar com o próximo. Nosso avós punham as cadeiras na varanda, e até mesmo na calçada, e ficavam horas jogando conversa fora. Hoje, a ansiedade dificulta o diálogo interpessoal. Preferimos a comunicação virtual, mental, mas não a corporal. O corpo transforma-se em território do silêncio das palavras, embora se cubra de adornos que “falam”: a roupa, a esbeltez malhada, os gestos...

Nessa “fala” o corpo simula (faz de conta ser o que não é) e dissimula (esconde o que de fato é). Por isso a comunicação interpessoal é arriscada, pois tende a desmascarar, trair, revelar contradições. O corpo sou eu, e eu não sou tão bom quanto a imagem que projeto de mim mesmo. Como os cavaleiros medievais, visto uma armadura que encobre a minha verdadeira identidade, a armadura pós-moderna da parafernália eletrônica. É ela que me salva. Permite-me ser conhecido por uma imagem mediatizada pela multimídia ou, no contato pessoal, pelos adornos que me imprimem um cheiro de grife.

Pós-modernidade é sinônimo de explosão comunicatória. Estamos cercados da parafernália eletrônica destrinchada pelas análises de Adorno, Hockeimer, MacLuhan, Walter Benjamin e outros. Ela reduz o mundo a uma aldeia que se intercomunica em tempo real. E dentro de uma paisagem cultural hegemônica que Boaventura de Sousa Santos qualifica de monocultura: a espetacularização da notícia e naturalização da imagem midiática, como se o mundo fosse o que vemos na TV ou na Internet.

Tudo isso molda a nossa identidade. Não há como configurá-la de outro modo. Estamos cercados pela multimídia: no mesmo celular temos relógio, calculadora, rádio, e-mail, TV, jogos... e até telefone.

Por isso tendem a ser complicadas as relações familiares, como toda relação que se confina em um mesmo espaço. Não se desfila dentro de casa. No cotidiano, a imagem é atropelada pelas emoções. É o que Buñuel mostrou em “O discreto charme da burguesia”. No espaço doméstico emerge o nosso lado avesso – aquela pessoa que realmente somos, sem maquiagens de bens, funções e adornos.

Para conviver fora de casa vestimos a armadura. Vamos para a guerra, para o reino da competição e do sucesso a qualquer preço. Não podemos, portanto, mostrar a cara. Protegem-nos a parafernália eletrônica e o diálogo virtual. Somos o que não aparentamos e aparentamos o que não somos. Eis o paradoxo que a pós-modernidade nos impõe.