sexta-feira, 30 de abril de 2021

MODERAÇÃO E CONCILIAÇÃO.

O Brasil parece não ter cura. Vai ladeira abaixo de crise em crise. Mas sempre acha uma saída provisória, que não é a solução ou a remissão dos sintomas. É um arranjo, com pequenas variações ao longo do tempo, entre os poderosos de sempre. O nome disso é conciliação.

É uma coisa das elites: empresários, banqueiros, latifundiários, banqueiros-latifundiários, industriais do agronegócio, grileiros, burocratas corruptos que amealharam fortuna, militares com poder de barganha, políticos que servem a essas frações, bancadas da bíblia, do boi e da bala, e – não se pode esquecer – boa parte da mídia, que altera informações, edita debates políticos, tudo em nome da “moderação nacional”.

O hábito de “conciliar” e de “moderar” vem de longe, desde o Império, culminando na atual fase de decadência da Nova República, invenção conciliatória para não acabar definitivamente com os restos da Ditadura. O acordo é para acomodar os interesses das classes dominantes, de modo a evitar uma ruptura no sistema de equilíbrio que trouxesse os “de baixo”, com seus interesses divergentes, para o “alto” do comando da sociedade.

Não é por acaso que o tema político do momento é “como evitar a polarização” em 2022. Os conflitos existem desde sempre, como luta de classes, disputas entre facções políticas, lutas entre escravocratas e liberais, conservadores e reformistas, esquerda e direita, mas o importante é varrer esses conflitos para debaixo do tapete e obter o acordo pelo alto, entre os próprios poderosos. A isso chamam de “centro político”, que , na verdade, é uma fórmula para manter tudo como está na hierarquia social.

A chamada “polarização” revela as diferenças entre interesses de classe e esclarece algo que precisa ficar opaco para o Sistema prosseguir operando às cambalhotas. A direita nacional costuma ser ruim de voto e fracassou na tarefa atual de fazer a economia crescer e manejar a crise sanitária provocada pela pandemia. Então, precisa achar uma saída pelo centro-direita que possa tamponar seu fracasso e evitar a ascensão do PT, comprometido em trazer de volta à cena os interesses dos trabalhadores, dos pobres e dos excluídos em geral.

Para isso, a direita conta com a ideologia da moderação e da conciliação, espargida pela classe média branca e até por setores das massas mais pobres, voltadas para o alívio imediato da crise e perdidas na alienação da desinformação programada. As classe médias são as que mais defendem, a serviço dos setores dominantes, a ideologia da conciliação de raça e de classes inaugurada lá atrás por Gylberto Freire e – é preciso dizer – também por Sérgio Buarque de Holanda, que criou o mito do “homem cordial”.

A chamada polarização foi uma criação da mídia conservadora e do governo Bolsonaro, cuja exposição óbvia dos objetivos antipopulares de seu governo e da defesa escancarada dos interesses das classes dominantes, com o arrocho sobre a população trabalhadora, o roubo de seus direitos, o desemprego em massa e a violência genocida de seu presidente.

Agora, as elites tentam achar um candidato que seja seu, sem os “excessos” do neofascismo e capaz de enfrentar a candidatura da esquerda mais se destacada, que é a de Lula. A direita nacional está desesperada. Seu modelo neoliberal de governar afunda evidentemente, não há plano B e, talvez, nem tempo para recuperar prestígio popular antes das eleições de 2022.

O apelo à moderação e à conciliação começa a falhar. Talvez essa seja a sua última chance de vigorar no Brasil, pois não se trata de um pacto que resolva as crises, como ocorreu no Uruguai, na Espanha e em Portugal.

A conciliação é causa de crise, pois inclui poucos setores da vida nacional e não permite um consenso em que as próprias classes trabalhadoras participem do bloco democrático. A estratégia das classes dominantes brasileiras é paradoxal, uma vez que propõe pacificar os conflitos e, ao mesmo tempo, os gera, excluindo o povo e os pobres.

Para uma democracia ser legítima e rotinizar seus efeitos curativos sobre as crises, é preciso haver consenso não apenas entre uma facção ou poucas facções da vida social e política, mas entre a maior parte dos atores da vida nacional, sobretudo os que sustentam a vida do país. Como dizia o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, para existir democracia de verdade é necessário que o povo se reconheça e faça parte dela.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

COMER O MUNDO.

 

Um doa maiores estudiosos do assunto: Leonardo Boff, lembra que: “Comer o mundo” ou “salvaguardar o mundo” representam uma metáfora, frequente na boca de lideranças indígenas, questionando o paradigma de nossa civilização, cuja violência os fez quase desaparecer. Agora ele foi posto em xeque pelo Covid-19. O vírus caiu como um raio sobre o paradigma do “comer o mundo”, vale dizer, explorar ilimitadamente tudo que existe na natureza na perspectiva de um crescimento/enriquecimento sem fim. O vírus destruiu os mantras que o sustentam: centralidade do lucro, alcançado pela concorrência o mais feroz possível, acumulado privadamente, à custa da super exploração dos recursos naturais. A obedecer estes mantras, estaríamos seguramente em maus lençóis. O que nos está salvando é o ocultado e feito invisível no paradigma do “comer o mundo”: a vida, a solidariedade, a interdependência entre todos e o cuidado da natureza e de uns para com os outros. É o paradigma imperioso do “salvaguardar o mundo”.

Este paradigma do “comer o mundo” tem alta ancestralidade. Vem de Atenas do século V aC quando irrompeu o espírito crítico, abandonando os mitos, que permitiu perceber a dinâmica intrínseca do espírito que é a ruptura de todos os limites e a busca do infinito. Tal propósito foi pensado pelos grandes filósofos, pelos artistas, aparecendo também nas tragédias de Sófocles, Ésquilo e e Eurípides e praticado pelos políticos. Não é mais “medén ágan” do templo de Delfos: “nada em excesso” mas agora é a expansão espacial ilimitada (criação de colônicas e de um império) e a expansão temporal abrir-se ao futuro sem fim (perspectiva ilimitada para a frente).

Tal projeto de “comer o mundo” ganhou corpo na própria Grécia pela criação do império de Alexandre, o Grande (356-323) que com a idade de apenas 23 anos fundou um império que se expandia do Adriático até o rio Indo na Índia.

O “comer o mundo” se aprofundou no vasto império romano, se reforçou na idade moderna colonial e industrial e culminou no mundo contemporâneo com a globalização da tecno-ciência ocidental, expandida para todos os rincões do planeta. É o império do ilimitado, traduzida no propósito (ilusório) do capitalismo/neoliberalismo do crescimento sem limites em direção ao futuro. Basta dar como exemplo desta busca do crescimento ilimitado, o fato de que na última geração se queimou mais recursos energéticos do que todas as gerações anteriores da humanidade. Não há lugar que não tenha sido explorado, visando a acumulação de bens.

Mas eis que irrompeu um limite intransponível: a Terra limitada como planeta, pequena, superpovoada, com bens e serviços limitados não suporta um projeto ilimitado. Tudo tem limites. No dia 22 de setembro de 2020 as ciências da Terra e da vida identificaram a Sobrecarga da Terra (The Earth Overhoot). Quer dizer, o limite dos bens e serviços naturais renováveis, básicos para a sustentação da vida. Eles se esgotaram. O consumismo, ao não aceitar limites, leva a fazer violência, arrancando da Mãe Terra aquilo que ela já não pode mais dar. Estamos consumindo o equivalente a uma Terra e meia. As consequências desta extorsão se mostram na reação da Mãe Terra exausta: o aumento do aquecimento global, a erosão da biodiversidade (cerca de cem mil espécies eliminadas por ano e um milhão sob risco), a perda da fertilidade dos solos e a desertificação crescente entre outros eventos extremos.

A ultrapassagem de algumas das nove fronteiras planetárias (mudanças climáticas, extinção de espécies, acidificação dos oceanos e outras) podem provocar um efeito sistêmico, derrubando todas as nove e assim induzir a um colapso da nossa civilização. A intrusão do Covid-19 pôs de joelhos todas as potências militaristas, tornando inúteis e ridículas as armas de destruição em massa. A gama de vírus preanunciados, caso não mudarmos a nossa relação destruidora da natureza, poderá sacrificar vários milhões de pessoas e afinar a biosfera, essencial para todas as formas de vida.

Presentemente a humanidade está sendo tomada pelo terror metafísico face aos limites intransponíveis e à possibilidade do fim da espécie. É ilusório o pretendido Great Reset do sistema do capital. A Terra o fará fracassar.

 “salvaguardar o mundo”. O propósito comum é garantir a condições físico-químico-ecológicas que sustentam e perpetuam a vida em todas as suas formas, especialmente, a humana. Já estamos dentro da sexta extinção em massa e pelo antropoceno a aprofundamos. Se não lermos emocionalmente, com o coração, os dados da ciência sobre as ameaças que pesam sobre nossa sobrevivência, dificilmente nos engajaremos para “salvaguardar o mundo”

segunda-feira, 26 de abril de 2021

A CLASSE TRABALHADORA E A PANDEMIA,

A tragédia da pandemia escancara para todo mundo ver que a divisão de classes é cada vez mais forte. Não é por acaso que, no Brasil, a partir de março de 2020, o desemprego atingiu 14 milhões de brasileiros/as e 19 milhões se situam abaixo da linha da pobreza. No entanto, na mesma época, o lucro da elite mais rica do país triplicou.

Na Europa, no início dos anos 80, analistas sociais escreviam que se a taxa de desemprego chegasse a 8%, a sociedade não aceitaria e haveria uma convulsão social grave. Hoje há países como a Grécia, a Espanha e mesmo a Itália, onde a parcela de desocupados chega a quase 30% e não acontece nada. Na sociedade atual, quem perde o emprego sabe que não se trata de uma situação passageira. Quase certamente, não conseguirá outro emprego em algumas semanas ou meses. O desemprego é estrutural. As empresas são consideradas sadias e lucrativas quanto menos empregados contratarem. E o mais grave de tudo isso é que essa situação é vista por muitos como normal ou ao menos como inevitável. A maioria dos meios de comunicação apregoa o neoliberalismo como um dogma e a exclusão social da imensa maioria das pessoas como um sacrifício inevitável e positivo do progresso. O objetivo é o lucro das empresas a qualquer custo e o progresso material. Os patrões se protegem da pandemia, mas as empregadas domésticas e todas as pessoas que trabalham têm de assumir os riscos de viajar em coletivos superlotados e garantir o comércio e o lucro dos patrões.

Atualmente, diante da crise estrutural do desemprego, às vezes, os próprios coletivos de trabalhadores se sentem obrigados a propor redução das horas de trabalho para evitar demissões em massa. O capitalismo continua em seu afã de manter os organismos do Estado a seu serviço, de considerar a natureza como mercadoria a ser explorada e encontrar sempre formas novas de explorar o trabalho dos outros.

Nestes dias em que a educação e muitas atividades são obrigatoriamente reduzidas ao trabalho virtual, as empresas de educação exploram o trabalho dos/as professores/as até a última gota de sangue e nem sempre pagando horas extras. Quem assessora grupos sabe que as pessoas simplesmente pedem lives e videoconferências, muitas vezes, sem se darem conta de que isso é um trabalho que exige mais de quem o faz do que os encontros presenciais. Nestes tempos de pandemia, o trabalho virtual começa a tomar, em alguns casos, a configuração quase de trabalho escravo não remunerado, mais exigente e pesado do que as formas clássicas de emprego.

É verdade que em um mundo de trabalho virtual e no qual todas as profissões sofrem a ameaça de ceder espaço para a revolução digital, o 1º de maio tem de ser celebrado de modo diferente do que era nas décadas de grandes passeatas e concentrações. É mais importante do que nunca mostrar que não existe a alternativa entre salvar a vida das pessoas ou salvar o comércio. Além do fato de que, a longo prazo, isso é falso, ao assumir abertamente a cara desumana do sistema que põe o lucro acima da vida, a sociedade dominante se revela mais assassina do que o próprio vírus da pandemia.

Infelizmente, a ideologia neoliberal penetrou até nos ambientes das Igrejas e religiões. Na encíclica sobre a fraternidade universal, o papa Francisco propõe que se passe do mundo dos sócios ao mundo de irmãos e irmãs (FT 101). Neste contexto, o 1º de maio não pode ser apenas o dia do trabalho, como se fosse uma data para acentuar o valor do trabalho. É a pessoa dos/das trabalhadores/as que deve merecer atenção e cuidado e não só como pessoas individuais e sim como categorias e coletivos.

Como os profetas e profetizas da justiça e da paz são sempre minorias, mas nunca deixam de atuar, o 1º de maio continua sendo uma data simbólica que nos convoca para cuidarmos da vida, da segurança e da saúde das pessoas. Quem é cristão recorda que o evangelho chama Jesus de carpinteiro ou artesão, termo usado na época para qualquer trabalhador braçal. Assim, os homens e mulheres que hoje assumem a missão de participar da caminhada coletiva do mundo do trabalho sabem que ao lutar pacificamente para transformar esse mundo estão sendo testemunhas de que o reinado divino está vindo e Deus está presente na luta do povo pela justiça e pela paz.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

AGRICULTURA REGENERATIVA

O mercado de produtos biológicos e naturais cresce aceleradamente no Brasil. E a prática de produção sustentável tem sido fortemente implementada pelos produtores rurais empreendedores e inovadores. Basta verificar o espetacular aumento do plantio direto na palha (processo que revolucionou o preparo do solo, evitando a aração do terreno) e a ampla adoção de bactérias fixadoras de nitrogênio no solo a partir de inoculantes misturados às sementes de grãos na hora do plantio. Isso economiza bilhões de dólares em fertilizantes nitrogenados.

Trata-se de algumas mudanças de enfoque. Os saltos de produtividade dos últimos 35 anos se deveram à genética de melhoramento, fertilização do solo e mecanização. Agora, o mundo rural avalia ações ligadas à biologia.

São práticas que se inserem na chamada agricultura regenerativa, conceito criado há 40 anos nos Estados Unidos pelo pesquisador Robert Rodale, com a visão de associar a saúde do solo à saúde humana a partir da produção agrícola sustentável.

O conceito assim colocado está fundamentado na eficiência produtiva, promovendo a reabilitação e a manutenção das culturas e do sistema de produção agropecuária, atuando a favor da biodiversidade, da preservação de matas nativas e do armazenamento de recursos hídricos.

Parece complicado, mas não é tanto. O que se busca, em última instância, é: produzir alimentos com alta densidade nutricional e livre de contaminantes, a não contaminação de lençóis freáticos com resíduos químicos e a alta da taxa de sequestro de carbono da atmosfera pelo solo.

Mas, se não é tão complicado, tampouco é trivial: a atividade precisa ser lucrativa e isso demanda muita tecnologia e ciência, conhecimento da microbiologia, da física e da química do solo, das condições de clima, de fisiologia vegetal, adaptabilidade de cultivos, para dizer o mínimo.

O que realmente importa é o uso de boas práticas agrícolas, objetivando segurança alimentar com sustentabilidade.

O Brasil vem tendo um papel protagônico nesse movimento.

Considerando o uso dos inoculantes em soja e em outras culturas, mais de 30 milhões de hectares já são explorados com o uso de produtos biológicos.

Ninguém imagina que os insumos convencionais, como agroquímicos e fertilizantes, serão eliminados. Mas o crescimento da preocupação global, sobretudo entre a juventude, com a necessidade de produção sustentável de alimentos com a preservação de recursos naturais contribuirá com o maior uso de biológicos, que poderão melhorar a eficiência dos químicos e, por conseguinte, aumentar o patamar de produtividade e rentabilidade das áreas que os utilizarem.

Na verdade, isso implica uma nova visão de mundo, para além da agropecuária. No limite, a agricultura regenerativa pode ser vista como um agente de paz, pelo aumento da oferta de alimentos, e de saúde, pela melhoria da microbiologia do solo.

Em resumo, o conceito geral impõe o reconhecimento de que tão importante quanto definir o QUE produzir será escolher o COMO produzir. E isto combina com a necessidade de redução das emissões de gases de efeito estufa e com temas inovadores como o “green deal” muito discutido na Europa e que não tardará a avançar para outros países, como China e Estados Unidos. Ou como a consideração crescente sobre a importância da pegada de carbono para efeito de barreiras comerciais.

Agricultura regenerativa será assunto relevante nos próximos anos em todo o mundo, e o Brasil já vai marcando uma posição inovadora quanto a ele.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

A TERRA.


Neste ano, o tema da Agenda Latino-americana 2021 é a cura da Mãe Terra. Este tema foi expresso pelo título: “Retorno ou não retorno. É tarde, mas é nossa hora”. Chama-se de “não retorno” o ponto no qual o planeta Terra não pode mais recuperar as mínimas condições de sobrevivência. De fato, desde alguns anos, os cientistas vêm alertando que, se prosseguir neste ritmo, a destruição ecológica pode tornar a Terra um planeta desértico e sem vida

Embora ninguém tem certeza de como o Coronavírus apareceu na sociedade humana, está comprovado que o seu surgimento tem alguma coisa a ver com a destruição da natureza. Este vírus existia há bilhões de anos, adormecido na natureza, sem fazer mal a ninguém. Destruído o ecossistema, ele acorda e se multiplica desordenadamente infligindo a humanidade uma tragédia que parece sem fim.

É preciso abrirmos os olhos para vermos a relação entre uma coisa e outra. No mundo, mais de dois terços das grandes florestas estão destruídas, ou em séria ameaça de destruição. Calculam-se que, a cada ano, 50 mil espécies vivas desaparecem da Terra. Na última década, a temperatura média das águas dos oceanos aumentou em mais de um grau.

Diariamente, se lançam no ar, na terra e na água novos produtos químicos que envenenam os processos da vida. Ainda por muitos anos depois de lançados, continuam causando morte. Por isso, o buraco de ozônio que protege a atmosfera terrestre aumentou e ameaça a vida de populações inteiras e de muitas espécies animais.

As mudanças climáticas que em outras eras geológicas vinham de mutações atmosféricas, agora são provocadas pela própria sociedade humana, especificamente pelo sistema social e econômico dominante que transforma a terra em mercadoria e se preocupa apenas com o seu lucro.

É preciso mudar o sistema de valores subjacente à economia global para torná-la compatível com a dignidade humana e com a sustentabilidade ecológica. O problema não é tecnológico. É cultural, social e político. Por isso, é importante tomarmos consciência da gravidade da situação, aprofundarmos os caminhos de sua superação e nos comprometermos em vivermos um modo novo de nos relacionarmos com a Terra, a água e o conjunto da natureza.

Anualmente, a ONU consagra o 22 de abril como Dia Internacional da Mãe Terra. Por feliz coincidência, para as Igrejas cristãs, esta comemoração sempre ocorre durante o tempo pascal, no qual as comunidades celebram a ressurreição do Cristo para serem testemunhas de que a vida vence a morte e o amor terá a última palavra neste mundo.

No Novo Testamento, o apóstolo Paulo falou do Cristo Ressuscitado como sendo o Cristo Cósmico. Hoje, para nós, a presença do Cristo se dá no outro humano, mas também na vida que pulsa no conjunto do universo e na resistência da Mãe Terra.

No mundo inteiro, a humanidade redescobre a atualidade dos cultos indígenas e afrodescendentes que aprofundam a intimidade com Deus na relação com a Terra, a água e os elementos do universo.

Também religiões inspiradas em livros, como a Bíblia, refazem caminhos de contemplação do Mistério Divino, presente na Terra e em todos os seres vivos. No Novo Testamento, o apóstolo Paulo falou do Cristo Ressuscitado como sendo o Cristo Cósmico.

Ainda na primeira metade do século 20, Theilhard de Chardin, paleontólogo e teólogo, afirmava: “Até aqui os cristãos buscaram Jesus Cristo em sua forma humana e divina. Agora, Ele se apresenta para nós em seu corpo cósmico que é a Terra”.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

CARTA AOS GOVERNANTES

É de conhecimento geral que estamos em um momento decisivo para a sobrevivência humana e da biodiversidade de nosso planeta. Há uma grave crise ambiental e de saúde publica, provocada por crimes cometidos de forma continua pela ganancia do Lucro. As pesquisas e os dados científicos são cada vez mais evidentes, que vocês conhecem e não precisamos citá-los. Enquanto isso, todos os povos do mundo, do campo e da cidade, sentem todos os dias as consequências dessa crise.

Segundo os estudo científicos, mantidos os padrões atuais de uso da terra, do desmatamento, da mineração predatória, do modelo do agronegócio dependente de agrotóxicos que matam a biodiversidade, do monocultivo de transgênicos, da acelerada urbanização, caminhamos para que 4,5 bilhões de pessoas enfrentem problemas com a qualidade e o acesso à água, e na produção de alimentos. As mudanças climáticas afetam a vida das pessoas e a produtividade agrícola.

A questão, portanto, não é mais se existe uma crise ambiental, mas sim de como enfrentá-la.

O capital financeiro e seus bancos e as corporações transnacionais controlam as economias, a exploração da natureza e os governos. Eles são os culpados e jamais oferecerão saídas verdadeiras. Querem apenas um capitalismo verde! E as instituições internacionais do sistema das Nações Unidas fracassaram.

O caminho para preservar a vida, das pessoas e do planeta, prezados senhores e senhoras, está claramente em outro sentido. Será necessário mobilizar a toda sociedade, suas organizações, movimentos populares, cientistas, entidades ambientalistas e formarmos um acordo em torno de medidas urgentes e necessárias:

1. Colocar a vida humana e da natureza acima da propriedade privada. Não é aceitável a apropriação privada de bens comuns essenciais a vida de todos, como a terra, a água, o ar e a biodiversidade. Seu cuidado deve ser atribuído aos povos, como direito e responsabilidade coletiva em benefício do bem estar de todas pessoas.

2. Promover políticas públicas que enfrentem a fome e promovam a soberania alimentar, apoiando o campesinato e os povos tradicionais, com base nos princípios da agroecologia. Realizar um esforço global apoiando com todos recursos necessários uma campanha mundial de plantio de árvores nativas e frutíferas.

3. Garantir o respeito aos saberes tradicionais dos povos, com suas formas de manejos da natureza, que já duram séculos, e os saberes científicos, em busca de garantir a produção e a reprodução humana, a diversidade cultural e biológica, em equilíbrio com a natureza.

4. Criar mecanismos financeiros de apoio a iniciativas e projetos das populações locais para que elas realizem ações concretas de proteção da natureza, das florestas, das aguas, dos alimentos sadios.

5. Penalizar as empresas e projetos que agridam o meio ambiente, as populações indígenas e nativas, expulsando-os do mercado.

6. Mudar a matriz energética em todos países para formas sustentáveis. Realizar mudanças nas grandes cidades, com medidas para evitar a poluição, melhorar a vida de todos, incluindo o transporte coletivo.

7. Tomar ações definitivas para proteger a poluição dos oceanos, lagos e rios, penalizando gravemente a todos agressores como a indústria química, de plastico e poluentes industriais.

8. Proibir o uso de glifosato, o 2,4D e outros agrotóxicos, que matam a biodiversidade, contaminam o meio ambiente e a saude das pessoas.

9. Garantir uma renta básica universal, com os recursos dos capitais escondidos nos paraísos fiscais, para proteção e manutenção das famílias camponesas, povos tradicionais e as que vivem em áreas de risco nas cidades.

10. Criar novos mecanismos internacionais de políticas, controle e fiscalização com a participação de cientistas, governos, entidades da sociedade e movimentos populares de todo mundo.

O capitalismo, senhoras e senhores, caminha a passos largos para a barbárie social. Em sua busca apenas pelo lucro está levando a humanidade e a natureza ao colapso. Estamos em um momento singular da história mundial, onde os valores solidários e ecológicos devem superar os do individualismo e do consumismo, só defendido pelos grandes capitalistas insanos e seus governos.
Defendemos um novo caminho, com nossas plantações e criações agroecológicas, na proteção das aguas e dos bens da natureza, em nossas resistências territoriais, em nossas reconstruções solidárias nas cidades.

Contra o projeto de morte e destruição implementada pelo capital neoliberal, das grandes corporações, nos comprometemos com a vida. É esse o caminho que continuaremos a seguir, construindo um mundo justo, solidário, ecológico e internacionalista.

E a vocês governantes, assumam vossa responsabilidade pública, ainda que tarde!

22 de abril de 2021, Dia da terra!

Assinam as redes internacionais… Ágora dos/das Habitantes da Terra

terça-feira, 20 de abril de 2021

A FOME É QUE MANDA.

Se há uma coisa que mudou drasticamente com a pandemia foi a forma como passamos a lidar com as nossas refeições. Fechados em casa a maior parte do tempo, até esquecemos como é encostar os cotovelos no balcão para abocanhar um pão na chapa e beber um pingado, encontrar os amigos no almoço sem se preocupar com o tira-e-põe de máscaras, tomar um bem executado coquetel depois de um dia exasperante de trabalho.

De repente, nossas cozinhas acumularam todas essas funções e viraram tudo ao mesmo tempo: padaria, cafeteria, restaurante e bar. Tudo aberto (ironia!) 24 horas por dia. Assim, tomamos vinho cada vez mais cedo, deixamos o almoço para mais tarde, trocamos o jantar por um pote de pipoca, sem problema, que mal tem nisso?

O confinamento e as restrições de mobilidade impostas no mundo todo nos ensinaram que a ideia pré-definida que tínhamos sobre café da manhã, almoço ou jantar parece não fazer mais sentido nesses dias que correm depressa demais — e muito menos em uma sociedade que caminha para uma inevitável fluidez do tempo. Essa ideia de que precisamos estar sentados entre 12h e 14h para acabar com um prato de comida aprontado diante vem se tornando tão questionável quanto uma grande sala de reuniões.

Refeições ocasionais

Pensando do ponto de vista cultural e histórico, as refeições bem estabelecidas são herança da era industrial. Foram pensadas para alimentar os trabalhadores por turnos que saíam das fábricas depois de jornadas estafantes de trabalho essencialmente braçal. Era uma forma de organizar a sociedade — daí vieram os horários de trabalho, das escolas: todo mundo ao mesmo tempo. Mas elas já não se encaixam na nova era da criatividade, em que cada um tem suas rotinas, especialmente com a maior normalização do home office. Evoluímos das refeições eventuais (dos tempos dos nossos antepassados longínquos, que tinham que aproveitar e garantir toda a ingestão de calorias quando venciam uma árdua caçada) para as refeições programadas. 

A fome é quem manda

Os hábitos dos tempos de confinamento comprovam que há mais pessoas agindo de acordo com as manifestações de suas fomes — independentemente da hora que se manifestem. No último ano, o iFood, uma das maiores plataformas de delivery da América Latina, notou mudanças no comportamento dos consumidores brasileiros. “Foram observadas novas ocasiões de consumo pelo app em períodos não tradicionais para o delivery, como é o caso da manhã, que teve uma periodicidade em dias de semana com aumento de 260% de março a dezembro de 2020”, informou a empresa a Gama.

Outro período a ser destacado pela plataforma foi o chamado “lanche da madrugada” durante a semana, que saltou 116% nesses mesmos meses. Ainda assim, os horários de pico no almoço e no jantar continuam sendo os mais representativos para os aplicativos. Mas os números têm mudado de forma vertiginosa embalados pela pandemia e pela mudança do senso de tempo que nos acometeu.

Também o fato dos restaurantes terem que se adaptar a horários mais restritos nesse período difícil para o setor também ajudou as pessoas a abrirem suas perspectivas com relação aos horários em que comem. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, a obrigatoriedade dos estabelecimentos terem que fechar as portas até as 20h por alguns períodos obrigou clientes a jantarem bem mais cedo do que estavam habituados. “Tivemos muitos clientes que gostaram da experiência, mas pessoalmente um mundo novo abriu pra nós: agora só queremos jantar às 18h”, diz Janaína Rueda.

“É ótimo, todos deveriam criar esse hábito”, completa Jefferson. Para ele, a experiência que se tem nos jantares antecipados é muito mais completa. “Os lugares estão mais tranquilos, o atendimento é quase exclusivo. E quando você vai dormir, a digestão já está até feita. É muito mais positivo para o corpo” conclui. Para uma parte dos cientistas, cada vez mais dispostos a desvendar os nossos cronotipos, ele deveria ser a nossa prioridade. E nos levar a comer quando a fome surge, não quando o refeitório abre.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

DIA DO ÍNDIO

Para entendermos a data, devemos voltar para 1940. Neste ano, foi realizado no México, o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano. Além de contar com a participação de diversas autoridades governamentais dos países da América, vários líderes indígenas deste continente foram convidados para participarem das reuniões e decisões. Porém, os índios não compareceram nos primeiros dias do evento, pois estavam preocupados e temerosos. Este comportamento era compreensível, pois os índios há séculos estavam sendo perseguidos, agredidos e dizimados pelos “homens brancos”.
No entanto, após algumas reuniões e reflexões, diversos líderes indígenas resolveram participar, após entenderem a importância daquele momento histórico. Esta participação ocorreu no dia 19 de abril, que depois foi escolhido, no continente americano, como o Dia do Índio.

Em 1500, quando os portugueses chegaram ao Brasil, estimava-se que havia por aqui cerca de 6 milhões de índios.
Nos anos 50, segundo o antropólogo Darcy Ribeiro, a população indígena brasileira estava entre 68.000 e 100.000 habitantes.
Passados os tempos de matança, escravismo e catequização forçada, atualmente há cerca de 280.000 índios no Brasil.
Contando os que vivem em centros urbanos, a população indígena ultrapassa os 300.000. No total, quase 12% do território nacional pertence aos índios.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, havia em torno de 1.300 línguas indígenas. Atualmente existem apenas 180. O pior é que cerca de 35% dos 210 povos com culturas diferentes têm menos de 200 pessoas..
Hoje em dia, o que parecia impossível está acontecendo: o número de índios no Brasil e na Amazônia está aumentando cada vez mais. A taxa de crescimento da população indígena é de 3,5% ao ano, superando a média nacional, que é de 1,3%.
Em melhores condições de vida, alguns índios recuperaram a sua auto-estima, reintroduziram os antigos rituais e aprenderam novas técnicas, como pescar com anzol.
Muitos já voltaram para a mata fechada, com uma grande quantidade de crianças indígenas. "O fenômeno é semelhante ao baby boom do pós-guerra, em que as populações, depois da matança geral, tendem a recuperar as perdas reproduzindo-se mais rapidamente", diz a antropóloga Marta Azevedo, responsável por uma pesquisa feita pelo Núcleo de Estudos em População da Universidade de Campinas.

Com terras garantidas e população crescente, pode parecer que a situação dos índios se encontra agora sob controle. Mas não! O maior desafio da atualidade é manter viva sua riqueza cultural.
Organização e Sobrevivência do Grupo
Os índios brasileiros sobrevivem utilizando os recursos naturais oferecidos pelo meio ambiente com a ajuda de processos rudimentares. Eles caçam, plantam, pescam, coletam e produzem os instrumentos necessários a essas atividades.
A terra pertence a todos os membros do grupo e cada um tira dela seu próprio sustento. Existe uma divisão de tarefa por idade e por sexo: em geral, cabe à mulher o cuidado com a casa, as crianças e a roça; o homem é responsável pela defesa, pela caça (que pode ser individual ou coletiva) e pela colheita de alimentos na floresta.
Os mais velhos - homens e mulheres - adquirem grande respeito por parte de todos. A experiência conseguida por muitos anos de vida os transforma em símbolos de tradições da tribo. O pajé é uma espécie de curandeiro e conselheiro espiritual.

domingo, 18 de abril de 2021

FÉ ADULTA.




No mundo todo, a realidade da pandemia revela que este modelo de sociedade não funciona mais. Isso se tornou ainda mais evidente no Brasil que se transforma em um grande cemitério. Entre nós, a Covid teve como principais aliados a sociedade baseada nas injustiças sociais e um governo que parece feliz em facilitar o trabalho do vírus assassino. Em tudo isso, um dos elementos mais escandalosos é o apoio por parte de amplos setores do Cristianismo católico e evangélico a essa política que ama a violência, prega discriminações sociais e se proclama inimigo da Amazônia e da natureza.

Diante dessa realidade, no mês de abril recordamos a vida de dois mártires cristãos, ambos vindos de Igrejas evangélicas. No dia 4 de abril de 1968, nos Estados Unidos, era assassinado o pastor batista Martin Luther King Jr. por sua luta em defesa dos direitos civis da população negra. No dia 9 de abril de 1945, no campo de concentração de Flossemburg, na Alemanha, foi enforcado o pastor Dietrich Bonhoeffer por ter se colocado contra o Nazismo e pregar que a Igreja só é cristã se opuser-se a qualquer política totalitária de ódio e se assumir a defesa de negros, judeus e quaisquer minorias oprimidas.

Martin-Luther King afirmava: “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons. Mais do que a violência de poucos, me assusta a omissão de muitos”.

Quando em 1933, na Alemanha, Hitler chegou ao poder, muitos bispos, padres e pastores acolheram favoravelmente o advento do Nazismo. Em particular, o grupo dos chamados “cristãos-alemães” tornou-se porta-voz da ideologia nazista dentro da Igreja. Eles chegaram a pedir que as Igrejas eliminassem de suas Bíblias o Antigo Testamento, por ter sido escrito por judeus. Na Igreja Luterana, os pastores aceitaram fazer um acordo com o governo. Por este acordo, concordavam em não ordenar padre ou pastor que não fosse branco, de raça ariana. Bonhoeffer foi o primeiro a se opor a isso e a defender publicamente que a Igreja tinha o dever de se opor à injustiça política. Ele passou a organizar a resistência política dentro das Igrejas.

A Igreja se dividiu em duas e a maioria dos ministros e comunidades era favorável ao regime. A minoria de pastores e comunidades que se opunham ao Nazismo se chamava Igreja Confessante. Eram os que se pronunciavam claramente contrários à prisão e assassinato de judeus, comunistas e homossexuais perseguidos pelo sistema. Em 1943, Bonhoeffer foi preso, acusado de ajudar um grupo de judeus a fugirem da Alemanha. Na prisão e depois no campo de concentração, Bonhoeffer escreveu livros e uma coleção de cartas. Ali ele afirmava: “Ninguém que tenha fé cristã tem o direito de fugir para a dimensão religiosa e não assumir posição crítica frente ao que está acontecendo”. Conseguiu ser libertado, mas, em julho de 1944, foi preso novamente, desta vez por ter participado de um atentado contra Hitler. Desta vez, foi condenado à morte e acabou executado.

Bonhoeffer é considerado um dos maiores teólogos cristãos do século XX. Ele viveu a fé engajada no mundo em uma ação social crítica e libertadora. Essa espiritualidade o levou a dar a sua vida como mártir contra a política assassina. Denunciou um modelo de Igreja ligado ao poder político opressor. Ele rejeitava um deus tapa-buraco das necessidades humanas, ao qual recorremos quando não conseguimos resolver nossos problemas. Pregava contra uma piedade que nos tira do mundo. Propunha “viver na intimidade de Deus, mas como se Deus não existisse”. Isso significava assumir uma responsabilidade humana de adultos que não precisam de Deus para ser pessoas justas, dignas e solidárias.

A celebração da Páscoa pode nos ajudar a viver isso. Conforme a fé cristã, a partir da ressurreição, o Cristo não está nos templos. Está em nós para nos tornar mais humanos(as) e capazes de amar.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

A SABEDORIA QUE VEM DO AMOR.

O sol radiante brilha no horizonte de um mundo encoberto pelas sombras de uma grande tristeza. No início da tradição cristã, o sol, artisticamente retratado nos túmulos ou nas igrejas primitivas, se tornara o símbolo de Cristo Ressuscitado, o redentor vencedor da morte com a vida, do ódio com o amor. Este sol radiante – Cristo Ressuscitado – brilha luminoso no horizonte cristão deste tempo pascal. Um percurso litúrgico de cinquenta dias para oferecer o exercício da alegria aos que creem. As consequências humanitárias e existenciais do momento atual, com tantas injunções e pesadas consequências, particularmente aquelas que levam ao luto, ao agravamento de crises econômicas e políticas, estão pedindo uma ação terapêutica. Um tratamento para colocar, como canta o profeta Isaías, a alegria no lugar do luto, e no lugar das cinzas, o bálsamo da consolação. Não se busca algo paliativo, alívio passageiro, mas um revigoramento das forças, pois os pés estão cansados, os braços, enfraquecidos. E os corações padecem com sofrimentos, enfermidades e obscuridades. A humanidade precisa do pão e do remédio da alegria.

Muitas providências precisam ser efetivadas – mais celeridade no processo de vacinação, esperança para se vencer a pandemia, adequadas políticas públicas capazes de garantir a seguridade alimentar, pois é espantoso o número dos que hoje sofrem com a fome. São necessárias eficazes estratégias de organização socioeconômica e política que levem a um desenvolvimento integral, na contramão da atual lógica perversa do mercado. As urgências são muitas, demandam inteligência e olhar compassivo para provocar uma grande virada civilizatória. A gestação de um novo tempo depende também da dedicação para se procurar experimentar a genuína alegria, com o seu tônus vivificante. Obviamente, não pode ser uma alegria que combata a tristeza por meio da fuga da realidade. Não se trata ainda de simples sensação que é fruto da mesquinhez, do egoísmo e da indiferença em relação aos que clamam por socorro – os vulneráveis da Terra. E jamais deve ser uma alegria alienante, alcançada por meio do conforto que produz cegueira, medo de lutar ou pouca disponibilidade para produzir respostas proféticas – capazes de efetivar novas lógicas com sabor do Evangelho de Jesus Cristo.

A alegria indispensável existe para inundar e fecundar o coração humano, de todos os que se deixam iluminar por este Sol cuja luz é eternamente incandescente, aquece corações para a compaixão, brilha na inteligência orientada para o bem, emoldurada pelo princípio inegociável de que a vida está em primeiro lugar. A alegria oferecida vai além dos limites próprios de decretos. Gera discernimento, permite reconhecer sempre que a vida está em primeiro lugar, o que leva equilíbrio a procedimentos e gestos, escolhas e ações. Sem essa sabedoria que nasce da alegria autêntica, a humanidade fica sem rumo. Produz uma nuvem escura de tristeza que prejudica a lucidez e o exercício da solidariedade.

 Importante recordar o apóstolo Paulo que, ao viver esse encontro, desceu do pedestal de sua soberba, redimensionou a sua importância, mesmo possuindo diferentes cidadanias, e fecundou a sua compreensão de modo construtivo. Transformado pelo encontro com Jesus, o apóstolo Paulo reconfigurou culturas e povos com a força do seu testemunho, mesmo em meio a perseguições e martírio.

Paulo sempre compreendeu a fé cristã como experiência da alegria. Dos 326 verbetes que designam alegria no Novo Testamento, 131 referências estão nas suas dez cartas. A alegria por estar em Cristo capacita para suportar a luta da vida, com suas adversidades em diferentes circunstâncias. É fruto do Espírito que produz alegre liberdade, com propriedade para enfrentar o sofrimento. Alimento da esperança – pão que sustenta o peregrino. A alegria devolve serenidade aos corações, perspicácia à mente humana na busca de soluções humanitárias, disposição para o exercício da solidariedade, acalma espíritos belicosos, fecunda a cidadania e garante a sabedoria que vem do amor.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

UM VÍRUS AINDA MAIS LETAL

Está havendo em todo mundo um grande debate sobre que mundo virá na pós-pandemia. São muitas as projeções, algumas otimistas, no pressuposto de que a humanidade tenha aprendido a lição do Covid-19: desenvolver uma relação amigável para com a natureza; as sociedades deverão superar as profundas desigualdades atuais, para que todos se sintam irmãos e irmãs, também com os seres da natureza, e não seus donos e senhores, caso contrário ninguém se salvará.

O que entretanto causa grave preocupação é a assim chamada “A Grande Reinicialização”(Great Reset),em nosso dialeto, “A Grande Retomada” da ordem capitalista mundial. Essa expressão foi sugerida pelo príncipe Charles juntamente com o Coordenador do Forum Econômico Mundial, Klaus Schwab. Esta ordem é urdida por aqueles que o relatório da OXFAM “Tempo de Cuidar”, (ONG inglesa que mede os níveis de riqueza e de pobreza no mundo), aponta, os poucos miliardários. Segundo aquela fonte, em 2019 havia cerca de 2.153 indivíduos que detinham mais riqueza que 4,6 bilhões de pessoas. O 1% deste grupo detém mais que o dobro da riqueza de 6.9 bilhões de pessoas. Com a pandemia ficaram ainda mais ricos. Só estes dados revelam uma economia gravemente doente e nada saudável, um vírus letal para milhões e milhões.

Este grupo de miliardários, como aparece claramente nas sugestões do Forum Econômico Mundial de 21-24 de janeiro de 2020 (o próximo será em agosto de 2021 em Singapura) projeta uma Nova Ordem Mundial. Klaus Schwab, o fundador e coordenador do FEM, junto com o economista Terry Malleret diz em seu livro Covid-19 the Grat Reset:”A pandemia representa uma rara janela de oportunidade para refletir, reimaginar e resetar o mundo”.

Se bem reparamos, temos a ver com uma proposta corporativista, um capitalismo dos grupos de interesse (Stakeholder Capitalism) que não contempla as grandes maiorias da humanidade. Elas estão fora de seu radar. Serão participantes somente os que se encontram dentro da bolha da ordem do capital. As sete temáticas são até auspiciosas: como salvar o planeta, economias mais justas, tecnologias para o bem entre outras. Entretanto quando se elencam os riscos globais, citam-se a guerra acidental, levante anárquico, exploração das mentes, controle neuroquímico e armas nucleares de pequeno porte e outros.

Aparentam até sensibilidade social como estabelecer a sonhada “renda mínima universal”, garantir a assistência médica global, assegurar um futuro resiliente, igualitário e sustentável e buscar um novo contrato social mundial. Mas, por outro lado, tomados de medo das reações pelo mundo afora contra um novo despotismo cibernético imposto por eles, sugerem o Score Social uma estratégia centralizada de policiamento comportamental dos indivíduos e de todas as sociedades através do uso intensivo da inteligência artificial. Seria o capitalismo de vigilância.

São belas palavras,mas apenas palavras. Não se fala nunca de mudar o paradigma devastador dos bens e serviços da natureza, esse que provou a intrusão de uma gama de vírus e agora o letal Covid-19; não se questiona o DNA do capital que sempre quer crescer e lucrar por todos os meios possíveis. Não refere a Sobrecarga da Terra (The Earth Overshoot),vale dizer, o esgotamento dos “recursos” naturais para a nossa subsistência. Da mesma forma, não tomam consciência das nove fronteiras planetárias que de forma nenhuma podem ser ultrapassadas ao risco de colapsar nossa civilização.

Coisa perigosíssima: a Grande Retomada não exclui a guerra como meio econômico, geoestratégico e de enfrentamento violento, sabendo-se que uma guerra hoje em dia pode pôr fim à espécie humana, especialmente se for a partir da Ucrânia, o ponto hoje mais sensível de enfrentamento com a Rússia. Esta pode destruir a Europa em poucos minutos. O Fórum apenas visa a limar os dentes do leão mas não tirar-lhe a voracidade. No máximo chega a um capitalismo verde, onde o verde disfarça a dinâmica acumuladora e excludente do sistema do capital que fica intocável.

Somos da opinião de que essa Grande Reinicialização (Great Reset) não vai prosperar pelo simples fato de que a Terra-Gaia chegou aos limites de sua sustentabilidade; não aguenta mais a rapinagem da ordem do capital em benefício de uns poucos jogando bilhões na miséria e na fome. Como epidemiologistas já aventaram: se não mudarmos nosso tipo de relação devastadora para com a natureza, esta nos enviará vírus ainda mais letais que poderão dizimar grande parte da humanidade.


quinta-feira, 8 de abril de 2021

UMA REFLEXÃO SOBRE A PÁSCOA.


A Páscoa que vivemos há  poucos dias é a principal festa das Igrejas cristãs: celebra a ressurreição de Jesus. Em sua origem, comemora a libertação dos hebreus da escravidão no Egito, em 1250 a.C., sob o reinado do faraó Ramsés II.

É fato histórico que Moisés conduziu o processo que levou os hebreus a se livrarem do jugo em que viviam. Hoje, raros historiadores negam a existência histórica de Jesus, atestada por especialistas não cristãos que lhe foram contemporâneos, como Flávio Josefo e Tácito.

Aliás, há mais provas da existência de Jesus que de Sócrates, que só conhecemos via Platão. O que ultrapassa a historiografia é a crença em sua ressurreição, que pertence à esfera da(o) (a)fé(to).

Os Evangelhos registram a presença de Jesus em Jerusalém por ocasião das festas pascais. Foi numa delas, a do ano 30, que ele, preso por blasfêmia e subversão, recebeu a pena capital e morreu crucificado. Tinha 36 ou 37 anos de idade, pois hoje sabemos que o monge Dionísio se equivocou, no século 6, ao calcular o início de nossa era. Dionísio não conhecia o zero e está comprovado que, ao morrer Herodes no ano 4 antes de nossa era, Jesus já havia nascido.

A visão do tempo como processo histórico marca profundamente a nossa cultura. A Bíblia herdou-a dos persas e, assim, quebrou a circularidade grega. Três grandes pilares de nossos atuais paradigmas o demonstram: Jesus, Marx e Freud. Todos três judeus.

Para Jesus, a nossa felicidade (salvação) depende de nossa capacidade de amar no terreno da história. O Reino de Deus não é algo “lá em cima”, mas sim “lá na frente”, no futuro onde a história atinge a sua plenitude, em um mundo livre de opressões, e também pela irrupção da presença divina entre nós.

Marx analisa o capitalismo a partir das formações sociais que o precedem e vislumbra, após a sua superação, um futuro de partilha e harmonia. Freud, nas mesmas águas da historicidade, vai buscar no inconsciente, marcado por nossas experiências mais primárias, a explicação para o nosso atual perfil psicológico, tendo em vista o resgate da saúde mental.

Ora, um dos efeitos mais nefastos do neoliberalismo está condensado no famoso vaticínio de Fukuyama: “A história acabou”. É claro que o nipo-americano, funcionário do Departamento de Estado, sabe muito bem que as empresas transnacionais não pensam em deter seu ganancioso processo de acumulação do capital e, portanto, sua história de cobiça e espoliação. O que ele pretende sugerir é que nós, pobres mortais, devemos, como diria Dante hoje, abandonar, à porta do Mercado, toda esperança.

A Páscoa cristã sinaliza que, malgrado tanta miséria e desesperança, e o genocídio que afeta o povo brasileiro, em Cristo temos a certeza da vitória da justiça sobre a injustiça e da vida sobre a morte.

domingo, 4 de abril de 2021

DESEMBALE MENOS, DESCASQUE MAIS

 

“A natureza levou milhares de anos para criar a embalagem perfeita para as frutas, mas, paradoxalmente, estamos substituindo-a por plásticos que, em vez de proteger, destroem nosso meio ambiente”.

Cada dia está mais ficando comum encontrarmos bananas embaladas individualmente, tangerinas descascadas e apresentadas em bandejas plásticas, abacates cortados vendidos ao meio envolto em filme, etc.

Os alertas estão por toda parte, precisamos começar a agir AGORA se quisermos que o meio ambiente seja salvo, a situação é séria, a vida marinha, inclusive, vem sendo a mais prejudicada de tantos plásticos e lixos que acabam sendo descarregados nos oceanos.

Autossustentável

sábado, 3 de abril de 2021

A FOLINHA NA PAREDE

A folhinha pendurada na parede me avisa: estamos em abril.

Os primeiros dias de cada mês trazem sempre novidades, além das contas a pagar. Para mim, mais que uma troca no calendário, essa passagem frenética, inexorável, do tempo, é convite à oração. Ainda mais na semana, circunstâncias e estação que vivemos.

Já flori em primaveras, saboreei verões, enfrentei invernos, hoje sou outono, a estação do ano que mais se parece comigo. Coisas da idade madura. Maduríssima!

Agora, nesta semana que se quer santa, rezo minhas perplexidades.

Olho para a folhinha, minha companheira fiel, pendurada o ano inteiro naquele mesmo lugar até o dia 31 de dezembro, quando será descartada em nome de um ano que se quer novo, e que trará consigo uma nova folhinha.

Olho aquela fila de dias encadeados, formando semanas que compõem meses contando a história do ano que se arrastou no marasmo trágico da pandemia.

Dou um suspiro profundo e penso: vivemos no tempo e buscamos eternidades. Complicado, isso. Estarmos dentro de limites palpáveis, de espaços geograficamente delimitados e cronologicamente datados e, ao mesmo tempo, estendermos nosso olhar para além de tudo o que nos cerca e confina.

Lembro os que perdi. Lembro o que todos temos perdido. Penso nas lágrimas solitárias correndo dentro e fora de UTIs, quartos e enfermarias. Penso nos sepultamentos sem despedida. No abraço vazio, no beijo que ficou travado na boca ressequida.

O real me deprime, o coração pede uma prece que me anime.

Algo em mim sussurra; somos mais, somos humanos, mas transcendemos. É nossa pulsão e desejo. Buscar o Mais vivendo no menos, ou, frequentemente, no mais ou menos. Mas o Mais virá…

É madrugada e a oração me espera. Folheio minha Bíblia até encontrar o que procuro. Um dos mais belos textos que conheço. O salmo 139.

Reflito que só mesmo o pressentir da eternidade é capaz de fazer o coração humano encontrar palavras capazes de atravessar os séculos, os milênios, sem perder o frescor do momento em que nasceram.

O texto me faz menino… e imagino:

Uma lamparina de óleo ilumina toscamente uma pequena e solitária tenda, num pequeno oásis, no deserto. Ao redor dela um rebanho de ovelhas dorme. O mesmo céu que vemos hoje coberto pela fuligem do aquecimento global estende, naquela escuridão ainda límpida e virgem, seu tapete de estrelas.

O pastor das ovelhas, sentado à porta da tenda, contempla o cenário à sua volta. As brasas sobreviventes de uma pequena fogueira criam também estrelas que sobem em fagulhas, da terra, para se encontrar com as do céu.

Um outro cenário, no seu interior, vai sendo tocado e movido. Seu coração segue o itinerário das estrelas e se mistura às constelações, lá no alto. Sentimentos cruzam seu espírito como o tremeluzir rápido e surpreendente de uma estrela cadente ou da brasa incandescente. Os pequenos pontos de luz vão se diluindo, aos poucos, na ainda escuridão. Um brilho de alvorada surge em seus olhos.

Suas mãos trêmulas pegam um rolo de pergaminho e vão gravando, lentamente, as palavras que transbordam de sua luminescência interior:

“Senhor, meu Deus, me conheces como ninguém. Olhas o meu coração e sabes tudo o que se passa nele. De longe penetrais no meu pensamento. Quando caminho, quando paro, se sento ou se levanto, estás sempre ao meu lado. Não sou, de forma nenhuma, um estranho para ti. Antes que eu diga qualquer coisa já conheces meu pensamento. Estou envolvido por ti como se estivesse na palma da tua mão. Não consigo compreender este maravilhoso mistério, mas como ignorar a tua presença? Se eu subir aos céus, lá te encontrarei. Se mergulhar no abismo mais profundo, também lá estás.

Se eu conseguisse voar nas asas da aurora e atravessasse o horizonte mais longínquo, a tua mão estaria ao meu lado, amiga e companheira. Se me perdesse na escuridão, se a luz se transformasse em trevas à minha volta, teu olhar me encontraria, pois, para ti, a noite é clara como o dia. No silêncio do ventre de minha mãe, tu me teceste, célula por célula. Como tudo à minha volta, sou fruto do teu Amor. Eu te agradeço tanta ternura e tanto carinho. Só uma coisa preciso pedir, Senhor: olha o fundo do meu coração. Experimenta os meus sentimentos. Toca a minha alma. Vê se há algum sinal de egoísmo em minha vida. Toma-me em tuas mãos com doçura e mostra-me o caminho do teu Amor, pela vida afora, através do cotidiano até a Eternidade.

Assim seja”.

Fecho os olhos e vejo.
À minha frente a folhinha continua muda, silenciosa.
Em meu coração, ressoam ainda, num murmúrio, as palavras do salmo, derramadas da noite dos tempos.
Tempo e lugar se diluem.
Amanhece em mim.
Deus é e está.

PÁSCOA DEVERÁ SER DE RESISTÊNCIA,,,



Neste ano, novamente, as comunidades cristãs terão de celebrar a Semana Santa ainda sob o peso da pandemia que, no Brasil, se torna cada vez mais ameaçadora. A orientação justa é celebrar em casa e nos unirmos à nossa comunidade por televisão ou internet. É pena não podermos celebrar o memorial da ceia de Jesus, da sua cruz e da sua ressurreição na comunhão concreta dos irmãos e irmãs de fé. No entanto, nossa reflexão tem de ir além das contingências e a melhor celebração desta Páscoa será a resistência e o testemunho de solidariedade às pessoas mais fragilizadas.

Nestes dias que a tradição cristã chama de Semana Santa, as Igrejas recordam a última semana de Jesus em Jerusalém para celebrar a Páscoa. Jesus celebrou a Páscoa como todo judeu praticante. No entanto, em sua época, a Páscoa proposta pelo livro do Êxodo tinha se transformado em uma grande festa comercial, centralizada no templo e para fortalecer o poder e a riqueza dos sacerdotes. Por isso, Jesus quis dar a Páscoa um novo sentido que retomasse a espiritualidade libertadora do Êxodo e, ao mesmo tempo, a estendesse a toda a humanidade.

Imbuídos deste espírito, nesta quinta-feira à noite, iniciamos a celebração cristã da Páscoa recordando a última Ceia de Jesus, profecia de partilha e doação de vida, apelo de unidade para toda a humanidade. Na sexta feira santa, celebramos a Páscoa da Cruz. Olhamos a paixão de Jesus, tomando formas novas nas cruzes de todos os oprimidos e oprimidas deste mundo e na dor da nossa mãe Terra. Na noite do sábado e madrugada do domingo, mesmo em casa e, portanto, de forma doméstica e laical, celebremos a vigília, mãe de todas as vigílias.

A celebração desta Semana Santa nos convida a olharmos para fora das Igrejas a tragédia da cruz que continua a ocorrer a cada dia, ao lado da nossa porta. Embora toda dor humana mereça solidariedade, consideramos como prolongamento da cruz de Jesus todo sofrimento físico ou psicológico, decorrente da missão para transformar o mundo. Também as angústias e dores que decorrem de uma sociedade que perdeu o coração.

Assim como um artista esculpe ou desenha uma cruz na parede, podemos ver levantados na cruz, povos inteiros aos quais desde os anos 1980, em El Salvador, o mártir Ignacio Ellacuría chamava de “povos crucificados”. Em cada país da América Latina se contam aos milhares as vítimas do sistema que, para manter o privilégio de uma pequena elite escravagista, provoca dor e morte em milhões de seres humanos. E esta dor e morte de cruz se propaga como pandemia. Em muitos países da América Latina, a cada dia, milhares de pessoas desaparecem, vítimas das milícias policiais e dos grupos de narcotráfico. Em todos os países, mulheres são vítimas do feminicídio e da violência machista. Na maior parte do continente, povos originários têm sua sobrevivência física e suas culturas ameaçadas. No Brasil, aumenta diariamente o número de jovens negros assassinados nas periferias de nossas cidades. Esses são apenas alguns elementos da violência nossa de cada dia.

Se celebrássemos a memória da cruz de Jesus indiferentes a essas crucificações atuais, nossa celebração não passaria de um cínico exercício de hipocrisia religiosa. Em meio ao agravamento desta pandemia, sentindo diariamente a fragilidade da vida, esta Páscoa deve ser profecia que nos dê força de resistência e clareza sobre a nossa missão na realidade atual.

Antigamente, éramos educados a compreender a morte e a ressurreição de Jesus como se fosse um drama em dois atos. Ele foi morto e, no terceiro dia, Deus lhe deu uma vida nova. A espiritualidade libertadora nos ensina que nossa fé será pascal se conseguirmos ver na própria cruz e mesmo na morte do Cristo e do povo, os sinais da força divina que vence a morte e aponta para a ressurreição como vitória da vida.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

VACINA: A ESPERANÇA.

 

Acho bonito as pessoas tirando foto do momento em que são vacinadas. Comecei a reparar nisso quando a primeira senhora britânica de mais de 90 anos foi vacinada e disse estar “altamente aliviada”. Depois foram idosos de ambos os gêneros e em melhor ou pior estado de saúde. Sempre a foto acompanhando o evento histórico de receber a vacina. Amigos e amigas já próximos de minha idade também documentaram sua experiência.

O que há de tão transcendental nesse ato de imunizar-se e oferecer o braço para receber a espetadela que carrega um líquido impregnado de esperança? Em que essa vacina difere das outras? Por que nos traz essa emoção como se a vida entrasse em nosso corpo com a inoculação do líquido que promete imunizar-nos em boa proporção contra a pandemia que aterroriza toda a humanidade?

Existem vários elementos que me parecem fazer dessa vacina tão ardentemente esperada não apenas um evento sanitário, mas igualmente um evento inspirador e revelador do que é a condição humana.

Somos seres relacionais. Não existimos senão coexistindo e convivendo. Isso é verdade desde que o Criador pronunciou no sexto dia sobre a criatura que formara do barro e em cujas narinas soprara o hálito da vida: “Não é bom que o homem esteja só”. A vocação de Adão é a comunhão e não a solidão. E quando a Adão foi dada a companheira Eva, mãe dos viventes, a comunhão aconteceu. A alteridade a instituiu e isso foi muito bom, disse Deus, antes de descansar ao sétimo dia contemplando sua obra.

É fato que após isso Adão e Eva romperam essa comunhão. E por isso é tão trabalhoso reconstituí-la. Somos todos Adão e Eva que buscamos a vida com dificuldades e dor, mas também a fruímos com gozo e deleite. E todos experimentamos o desejo da comunhão plena em todos os momentos em que ela se fragmenta e é obstaculizada pelas várias investidas diabólicas de tudo que divide e separa.

O vírus vem sendo uma pedagogia dura e fecunda sobre tudo isso. Os gestos de proximidade, afeto, amor nos foram proibidos em nome da saúde coletiva. Foram interditados os abraços e beijos, os encontros, as celebrações festivas. Nos foram impostas máscaras que erguem barreira entre nós e os outros. E o álcool e a água e o sabão nos obrigam a exterminar os rastros dos contatos humanos a cada momento e a cada passo.

Demorou perceber que toda essa separação com relação aos outros, junto aos quais sempre desejamos tanto estar, era na verdade a forma acertada de proceder em benefício deles e delas mesmo. O amor que antes se exprimia com gestos de contato e proximidade agora devia expressar-se por atos de distanciamento em nome do cuidado e do amor.

A vacina é um elemento novo que entra nesse cenário. Anunciando esperança de imunização, baixa de contágio e controle da pandemia, é a única opção que existe no horizonte para vencer essa tão difícil prova que atravessamos já há mais de um ano. Por isso, a alegria tão radiante e um brilho de tal fulgor nos olhos daqueles que após uma longa peregrinação em meio às trevas do medo e do desânimo agora sentiam poder ter novamente esperança.

Essa esperança consiste em voltar a poder realizar os gestos do afeto e da comunhão. Os avós sonham em novamente beijar e abraçar os netos. Os amigos desejam voltar a poder juntar-se, conversar, rir e cantar juntos, sentir a presença cálida e estimulante daqueles que se querem bem. Todos desejam andar livremente pelas ruas, entrar nos cinemas e teatros, ouvir, cantar e dançar em shows musicais, sem medo e sem barreiras.

Os que cremos desejamos ardentemente poder voltar a frequentar nossas igrejas em celebrações com muita gente e poder abraçar os irmãos efusivamente, desejando-lhes a paz. E comungar o corpo e sangue do Senhor, expressão da comunhão vital e verdadeira que realiza e conduz à vida plena.

Tantas vacinas já tomamos: sarampo, tuberculose, poliomielite, antitetânica. Mas apenas a vacina contra a Covid-19 nos acendeu na consciência essa convicção de que oferecendo o braço para a tão desejada espetadela estamos, na verdade, realizando um profundo ato ético.

Esperemos que a pandemia nos tenha ensinado em profundidade que nada do que penso ou faço afeta apenas a mim. Estou conectada com todos os seres vivos e tudo impacta em tudo. E dentro desse tudo, meus irmãos em humanidade agora me pedem esse gesto ético, de fé e esperança na vida, de abertura e amor. A vacina me dá essa oportunidade. Que ela seja o sinal pascal de vitória da vida nesses tempos de tanta paixão e tanta treva que temos vivido. É uma boa motivação para uma celebração mais profunda e esperançosa da Semana Santa que estamos vivendo.