quinta-feira, 29 de junho de 2017

FESTA DE SÃO JOÃO.

João, santo cuja festa se celebrou no sábado passado, era primo de Jesus, filho de Zacarias, sacerdote do Templo de Jerusalém, e de Isabel, prima de Maria. Por ter nascido seis meses depois de seu primo Jesus, João tem a sua festa natalícia a 24 de junho.

As duas festas decorrem das festividades pagãs, apropriadas pela Igreja, dos solstícios de verão e inverno no hemisfério norte. Solstício vem do latim sol + sistere, “que não se mexe”. É quando o sol, medida a sua latitude a partir da linha do equador, se encontra em sua maior declinação em relação à Terra. Então, neste dia, no hemisfério norte o dia é o mais longo do ano e, a noite, a mais curta. No hemisfério sul ocorre o contrário.

Os solstícios variam conforme o ano. Mas quase sempre entre os dias 20 e 25 de junho e de dezembro. Por isso, os dias 21 de junho e 21 de dezembro marcam mudanças de estações. No hemisfério sul, do outono para o inverno, em junho; e da primavera para o verão, em dezembro.

Há indícios de que João, decidido a não seguir a carreira sacerdotal do pai no Templo de Jerusalém, preferiu unir-se aos monges essênios de Qumran, junto ao Mar Morto. Talvez por discordar do elitismo espiritual dos essênios, que se consideravam os prediletos de Deus, João trocou a vida monástica pela pregação ambulante às margens do rio Jordão. Ali formou a sua própria comunidade, selada pelo batismo cuja espiritualidade se centrava na prática da justiça. Daí passou a ser conhecido como João Batista (aquele que batiza). Jesus aderiu à comunidade de seu primo e foi por ele batizado nas águas do Jordão.

João denunciou a vida corrupta e devassa do governador da Galileia, Herodes Antipas, que se juntara à mulher de seu irmão, Felipe. Preso, foi degolado a pedido de Salomé, enteada do governador, orientada pelo ódio vingativo de sua mãe, Herodíades. Em plena festa palaciana, a cabeça de João foi exibida em uma bandeja.

A atuação de Jesus só teve início após o martírio de João. É como se o primo firmasse posição para demonstrar a Herodes Antipas, a quem chamava de “raposa”, que a luta continua... Seus primeiros discípulos, André e Simão, o cananeu, vieram do grupo de João.

Da comunidade dos doze apóstolos, o mais jovem também se chamava João, autor do quarto evangelho. Ele abre o seu relato em homenagem ao xará, a quem chama de “enviado de Deus para ser testemunha da luz.”

A festa de São João é marcada, no hemisfério sul, pela fogueira e os fogos de artifício, que simbolizam a “luz do mundo”, e o fato de a luz (Jesus) vencer as trevas (da noite mais longa do ano).

Desde o século XVIII, a festa é comemorada no Brasil com adereços que os portugueses trouxeram da Ásia, especialmente da China, como balões, bandeirinhas e fogos de artifício.

Neste ano, todos nós, devotos de São João, devemos pedir muita luz para o Brasil, onde felizmente muitas cabeças vêm sendo degoladas pela corrupção e pelos desmandos administrativos, enquanto outras mantêm indisfarçável cumplicidade com os responsáveis pelo nosso desgoverno.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

DESEJO, JÁ NÃO SOU.

Já se definiu o homem de muitas formas. “O homem é um animal racional” (Aristóteles). “O homem é um bípede implume (Platão). O homem é o lobo do próprio homem (Hobbes). “O homem é aquilo que come” (Feuerbach) “O homem é a imagem de Deus” (Bíblia). O homem é um ser cuja existência precede a essência (Heidegger). O homem é um caniço pensante (Pascal) etc. Eu gosto de uma outra definição, sem autoria, mas que todo intelectual que se preze, utiliza: “o homem é um animal que deseja o desejo”

Ninguém expressou melhor a natureza do desejo do que Platão, no livro o Banquete. O Banquete é um livro em forma de diálogo e os personagens dialogantes, cada um a seu modo, fazem discursos e elogios ao Amor (Eros). Dois desses discursos são paradigmáticos para entender o desejo e, por tabela, compreender o ser humano. O primeiro é o discurso do poeta satírico Aristófanes, e o segundo, é o discurso do filósofo Sócrates.

Aristófanes, para falar do amor, conta um mito, o mito do andrógino. Sempre que se conta mitos pretende-se remontar às origens, num tempo imemorável do início das coisas. No caso do mito do andrógino, trata-se do início da humanidade. Aristófanes diz que no começo, lá no início, bem no início, nós éramos de três gêneros, o masculino o feminino e o andrógino. O terceiro ser, o andrógino, era um ser redondinho, duplo, perfeito, nada faltava e nada sobrava. Tudo duplo: duas cabeças, quatro pernas, quatro braços, quatro olhos, quatro orelhas e de duplo sexo. Se movimentava rapidamente como uma bola com pernas. Os deuses olharam para esse ser e perceberam que havia na terra um concorrente à altura aos deuses do céu. E ficaram assustados...

Zeus, então, pensou em matar esse ser, concorrente na perfeição com os deuses. Mas, matar, significaria eliminar alguém que os adorariam. E o que são os deuses sem alguém que os adorem? Pensando melhor, Zeus, o chefão dos deuses, decidiu enfraquecer o andrógino, cortando ao meio. Zeus corta-o e Apolo, o deus da ciência e da medicina, costura-o, ajuntando e ajustando a pele até o último ponto onde se forma o umbigo. Como o ser tinha os olhos virados para fora, então Apolo vira a cabeça e os olhos para o lado do umbigo, para nunca esquecer que somos seres cortados. Se lá no início o ser duplo era duplo masculino, então agora o homem busca sua outra metade em outro homem. Se o duplo era masculino e feminino, então a relação agora será heterossexual. Se o ser duplo era duplo feminino, então a mulher desejará outra mulher. O que o mito uniu, não desuna o homem...!

Dito isto, Aristófanes tiras as conclusões dizendo que o Amor é o encontro com a outra metade. O amor é o encontro com alma gêmea, que um dia foi uma coisa só, mas agora separada, vive vagando pelo mundo com saudade do abraço da outra metade. Quando acontece o reencontro, aí o amor acontece no grau pleno e de pura satisfação, felicidade e êxtase. O objeto do amor é a outra metade e quando se encontra o objeto do amor, o amor acontece e cessa a busca.

Sócrates, por sua vez, ao falar do Amor, também conta um mito e tira as conclusões. Quando Afrodite, deusa da beleza, nasceu, diz Sócrates, os deuses fizeram uma grande festa nos céus. Convidaram todos os deuses para a festa, menos a deusa Pênia. Quando a festa acaba, Pênia entra de penetra na festa, come os restos de comida e toma os restos de bebida e, quando satisfeita, dá uma passeada entre os festejantes e vê Poros, deitado e embriagado. Pênia se sentiu atraída por Poros, deita ao seu lado, se conhecem sexualmente e dessa relação nasce Eros, o Amor. Eros é, pois, filho de Pênia e Poros. Pênia significa, carência, falta, pobreza, daí advém a palavra penúria que significa exatamente sofrimento por conta da falta de condições materiais da vida. Poros significa astúcia, engenho e completude. Eros, diz Sócrates, herda da mãe a falta, a carência e herda do pai a astúcia para suprir a falta e a carência. Por conta disso quem ama vive maquinando jeitos de conquistar o objeto amado, mas também por conta disso o amor é sempre carente, porque amor daquilo que nos falta. Ora, aquilo que nos falta nós desejamos e só desejamos e amamos porque não possuímos, pois se possuíssemos já não desejaríamos e desejaríamos outra coisa.

Moral da história. Diferentemente de Aristófanes que diz que o amor é satisfação no encontro com o objeto amado, Sócrates diz que o amor é desejo e desejo é desejo de algo que nos falta. Acontece que não há objeto que satisfaça o desejo, e o próprio Sócrates diz que há uma escalada de desejos passando de um corpo belo físico e particular, ascendendo para os belos corpos, avançando para as ciências do belo e para o Belo em si...! Amar é, pois, adiar constantemente a satisfação, porque na medida em que se alcança o objeto amado, deseja-se outra coisa e outra coisa e outra coisa, sem fim...

Disso advém todas as violências por desejos miméticos, pois sempre que desejamos o mesmo objeto do outro, entramos em rivalidade que leva a violências sem fim. Mas não só. O mais profundo é que não somente desejamos o objeto do desejo do outro, mas desejamos o desejo do outro que deseja objetos, enredando-nos numa espiral sem fim de insatisfações e ilusões vindas dos mercados do desejo que o capitalismo muito bem sabe organizar.

Talvez seja oportuno apontar aqui para outra direção, a direção mística e religiosa. Sabendo que os desejos nos essencializam e são infinitos e insatisfeitos, as tradições místicas e religiosas, sabiamente, dizem que há um único objeto do desejo capaz de pacificar a busca incessante por sentido: Deus. Quem encontra a Deus sossega. A questão é, existirá um objeto mais abstrato do que Deus e, portanto, mais instigador do desejo? Será Deus a satisfação dos desejos, ou será ele um outro nome para dizer da insatisfação de todas as satisfações?

domingo, 25 de junho de 2017

A EMPATIA SALVA VIDAS

Os animais não humanos são incapazes de manifestar sentimentos morais (culpa, vergonha e indignação), mas são capazes de empatia. Há exemplos e exemplos de cachorros e cavalos que sofrem a morte dos seus tutores. Os mamíferos, em geral, sentem e sofrem a separação do filhote, como é o caso paradigmático da vaca separada do bezerro nas granjas produtoras de leite. Não raro um animal ajuda o outro nas suas dificuldades. Eu já presenciei uma galinha se transformar em choca para ajudar no cuidado dos pintinhos de uma outra choca (não ria!) A lição da natureza é farta e surpreendente nesse campo, tão seco e devastado pela inflação do eu nas relações humanas.

Quando se pensa na falta de empatia, pensa-se, de imediato, nos psicopatas e corruptos contumazes, que se colocam como umbigo do mundo, instrumentalizando deus e o mundo para o seu fim. Não dá para negar que psicopatas e corruptos sejam bons exemplos da incapacidade de sair de si e de se colocar no lugar do outro. Talvez, um estudo neurológico, comprove que eles são reféns de disfunções cerebrais, mas talvez eles simplesmente sejam reféns da ausência de limites no processo de educação. O debate entre as duas tendências explicativas ainda está em aberto. O que parece não estar em aberto é que a empatia nos humaniza como nenhum outro sentimento, pois ela é a mãe de todo bom sentimento. Até o amor é disparado pelo gatilho da empatia. No princípio era a empatia...

A empatia é a capacidade de se deixar afetar pelo outro, compreendendo e sentindo o seu mundo e estado de vida. Não só seu mundo de sofrimento, pois aí o sentimento disparado em nós seria a compaixão, mas em qualquer estado do seu mundo. Isso é tão verdadeiro que seria oportuno pensarmos o quão difícil é mantermos a empatia quando o outro manifesta suas vitórias e sucessos. Nesse caso, geralmente, somos surpreendidos pela inveja, mais do que pela empatia. Quando alguém nos relata uma vitória e um sucesso, de imediato, nos surpreendemos simpáticos, afáveis, mas, não raro, com um certo ar de hipocrisia e com um contido descontentamento. O bom seria demostrar verdadeiramente empatia também quando o outro se mostra forte, radiante e belo, mas quem nunca se surpreendeu desconfortável diante das conquistas do outro? Se você não, então seria o caso de se habilitar e seofertar para estudos neurológicos como modelo de cérebros propensos somente para o bem....

A questão que incomoda nisso tudo é a relação entre as normas morais, com caráter de universalidade e racionalidade e os sentimentos, como é o caso da empatia. O que dispara quem? Será a razão que me diz que devo considerar o outro tanto quanto a mim e não devo lhe fazer o mal, pois não quero que me faça o mal e devo lhe fazer o bem, pois espero que me faça o bem, ou será a empatia que, de antemão, não me autoriza fazer o mal pois, em fazendo, conseguiríamos dormir em paz, pois corporalmente afetados?

Essa parece ser uma daquelas questões espinhosas e, talvez, sem solução. Na prática, o que importa mesmo é educar e formar tanto o pensamento e a capacidade de raciocínio, quanto educar os sentimentos. Sim, é preciso crer na educação do sentimento. E sobretudo, não ridicularizar, ironizar e desprezar os que ainda são capazes de pequenas e grandes coisas pois se colocam no lugar do outro. Quem de nós não conhece alguém que fica furioso e dispara uma ira santa quando vê alguém maltratar um animal? Eu conheço.

Nas pequenas ou grande atitudes ocorre uma conjugação de sentimento e razão que são o que poderá nos salvar da cultura da indiferença que teima em nos engolir a todos. Não demos demasiado ouvidos aos cínicos e céticos, eles não merecem nossa empatia...!

sábado, 24 de junho de 2017

UMA NOVA REPACTUAÇÃO SOCIAL É URGENTE

Seguramente não estou enganado se disser o que se está passando na cabeça das pessoas e se ouve por todas as partes: assim como está, o Brasil não pode continuar. A corrupção generalizada, porque foi naturalizada, contaminou todas as instâncias públicas e privadas. A política apodreceu. A maioria dos parlamentares não representa o povo, mas os interesses das empresas que finaciaram suas campanhas eleitorais. São velhistas, perpetuando a política tradicional das coligações espúrias, das negociatas e dos conchavos a céu aberto.

O atual presidente não mostra nenhuma grandeza, pois não pensa no povo e nas graves consequências de suas medidas sociais, mas em sua biografia. Entrará seguramente na história. Mas como o presidente das anti-reformas, o presidente ilegítimo do anti-povo que desmantelou os poucos avanços sociais que beneficiavam as grandes maiorias sempre maltratadas.

O projeto dos que deram o golpe parlamentar é do mais radical neoliberalismo, em crise no mundo inteiro, que se expressa pelas aceleradas privatizações e pelo atrelamento do Brasil ao projeto-mundo para o qual o povo e os pobres são estorvo e peso morto. Esta maldição eles não merecem. Lutaremos para que haja ainda um mínimo de compaixão e de humanidade que sempre faltou por parte dos herdeiros da Casa Grande.

Estamos num voo cego em um avião sem piloto. Há poucos que ousam apresentar um novo sonho para o Brasil. Mas tenho para mim, que o cientista politico, de sólida formação acadêmica, Luiz Gonzaga de Sousa Lima, o tentou com seu livro A refundação do Brasil: rumo a uma sociedade biocentrada((Rima, São Carlos 2011). Infelizmente até agora não recebeu o reconhecimento que merece. Mas aí se vislumbra uma visão atualizada com o discurso da nova cosmologia, da ecologia e contra o pensamento único, recolhendo as alternativas para um outro mundo possível.

Permito-me resumir seu instigante pensamento que o expus, com mais detalhes, neste Jornal do Brasil em maio de 2012.

O desafio, para ele, consiste em gestar um outro software social que nos seja adequado e que nos desenhe um futuro diferente. A inspiração vem de algo bem nosso: a cultura brasileira. Esta foi elaborada mormente pelos escravos e seus descendentes, pelos indígenas que restaram, pelos mamelucos, pelos filhos e filhas da pobreza e da mestiçagem. Gestaram algo singular, não desejado pelos donos do poder que sempre os desprezaram e nunca os reconheceram como sujeitos de direitos e filhos e filhas de Deus.

O que se trata agora é refundar o Brasil, “construir, pela primeira vez, uma sociedade humana neste território imenso e belo; é habitá-lo, pela primeira vez, por uma sociedade humana de verdade, o que nunca ocorreu em toda a era moderna, desde que o Brasil foi fundado como uma empresa mundializada; fundar uma sociedade é o único objetivo capaz de salvar nosso povo”.Trata-se de passar do Brasil como Estado economicamente globalizado, como querem os atuais governantes depois do golpe parlamentar, para o Brasil como sociedade biocentrada,vale dizer, cujo eixo estruturador é a vida em toda sua diversidade; a ela se ordena tudo mais, mormente a economia e a política.

Ao refundar-se como sociedade humana biocentrada, o povo brasileiro deixará para trás a modernidade, apodrecida pela injustiça e pela ganância, e que está conduzindo a humanidade, por causa da falta de sentido ecológico, a um caminho sem retorno. Não obstante, a modernidade entre nós, bem ou mal, nos concedeu forjar uma infra-estrutura material que pode nos permitir a construção de uma biocivilização que ama a vida humana e a comunidade de vida, que convive pacificamente com as diferenças, dotada de incrível capacidade de integrar e de sintetizar os mais diferentes fatores e valores, estes que estão sendo negados pela onda de ódio e de preconceito surgida nos últimos tempos e que contradiz nossa matriz fundamental.

É neste contexto que Souza Lima associa a refundação do Brasil às promessas de um tipo novo de sociedade, diferente daquela que herdamos do passado, agora com a atual crise, agonizando, incapaz de projetar qualquer horizonte de esperança para o nosso povo. Para este propósito se faz urgente uma reforma política que embasará uma nova repactuação social.

Para esta repactuação dever-se-á colocar a nação como referêrencia básica e não os partidos e contar com a boa-vontade de todos para, finalmente, gestar algo novo e promissor.

Minha esperança não arrefece e se traduz no verso de Thiago de Mello dos tempos sombrios da ditadura militar:”faz escuro, mas eu canto”.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

POR UMA FACULDADE POPULAR

O problema do ensino superior é que esqueceu do bairro, da favela, da periferia, do acampamento, do presídio. Abriu mão do povo! Não há dúvida da quantidade de bons trabalhos, das boas produções e que universidades/faculdades do país realizam; mesmo enfiada na pior crise de toda sua história, ainda assim, bons e atentos professores não abrem mão do rigor científico, da pesquisa séria, das boas análises e leituras e desse quadro de princípios profissionais despontam excelentes produções desde a graduação.

Só entra um detalhe essencial e definitivo em cena: o povo; professores são necessariamente seres políticos; formadores privilegiados de opinião e é preciso educar as massas. Não dá mais para caminharmos em círculos! Não faz o menor sentido dizer as mesmas coisas para as mesmas pessoas. Escrever para o mesmo público, anunciar para o mesmo segmento, palestrar para os mesmos ouvidos.

Ou levamos esses saberes científicos para o povo ou perdemos a razão de ser. Fazendo isso... Ele fará o que lhe cabe! Não tenham dúvidas disso! Tal qual Lênin fez em 1917 numa Russia semi-feudal temos também o dever de acreditar em nosso povo. A saída para a universidade está onde ela não está, onde não foi, onde se nega a ir. Seu lugar? Nos impossíveis do país.

Se a universidade não se vincula ao povo se fragiliza ao ponto de desaparecer; abre flancos perigosos para o avanço da metástase do pensamento neoliberal e que, bom dizer, não tira férias; opera a todo instante; na linguagem, nos comportamentos, na relação com os espaços públicos e privados, nos modelos de gestão, na organização sindical, no êxito do negócio privado, no fracasso da política pública, no analista econômico, no consumismo da TV, na elegância do empresário, na pressa do rentista e na submissão do governo do país para abestados do Norte.

Não haverá revolução no Brasil, sobretudo, uma revolução social e intelectual e que tanto precisamos sem as massas tornadas povo; povo organizado, afinado, pensante e em condições de reinventar esse país. A universidade não irá sobreviver se não redefinir sua relação com a população. Essa é sua condição de permanência! Seus ritos, seu formalismo, suas cátedras e todo o seu simbolismo não tem qualquer sentindo sem a interface decisiva e transformadora da presença popular em suas dinâmicas, rotinas e governos. Ela, a universidade, se renova quando se abre para a potência inventiva, inovadora e silenciosa de um povo que quer saber, que quer saber-se.

O alerta benfazejo de Ernesto Guevara, por ocasião do título de doutor honoris causa e que lhe fora conferido pela Faculdade de Pedagogia da Universidade Central de Las Villas em 28 de dezembro de 1959, nos é muito, mas muito apropriado quando afirma: "...E aos senhores professores, meu colegas, tenho que dizer-lhes algo parecido: há que se pintar a universidade de negro, de mulato, de operário, de camponês".

Cores, novas cores, muitas delas! Fortes, vibrantes e contagiantes... A universidade brasileira carece destas novas cores ou irá desaparecer.

terça-feira, 20 de junho de 2017

A AMIZADE CHEGOU TARDE

A amizade é uma das formas mais nobres de amor. Já o grande filósofo Aristóteles, na Grécia Antiga, a definia como "uma forma de excelência moral" ou "concomitante com a excelência moral", "extremamente necessária à vida". E prosseguia: "De fato, ninguém deseja viver sem amigos, mesmo dispondo de todos os outros bens".

Em seu livro Ética a Nicomaco, o Estagirita disserta sobre a amizade: "Com efeito, a amizade é uma parceria, e uma pessoa está em relação a si própria da mesma forma que em relação ao amigo; em seu próprio caso, a consciência de sua existência é um bem, e, portanto, a consciência da existência de seu amigo também o é, e a atuação desta conscientização se manifesta quando eles convivem; é, portanto, natural que eles desejem conviver. E qualquer que seja a significação da existência para as pessoas e seja qual for o fator que torna a sua vida digna de ser vivida, elas desejam compartilhar a existência de seus amigos; sendo assim, alguns amigos bebem juntos, outros jogam dados juntos, outros se juntam para os exercícios do atletismo ou para a caça, ou para o estudo da filosofia, passando seus dias juntos na atividade que mais apreciam na vida, seja ela qual for; de fato, já que os amigos desejam conviver, eles fazem e compartilham as coisas que lhes dão a sensação de convivência".

Os amigos de Carlos Eduardo Albuquerque Maranhão, o Sarda, o Cadu, desejavam com ele conviver como faziam no tempo em que eram alunos do Colégio Santo Inácio, no Rio de Janeiro. Naquele tempo, todos admiravam o colega rebelde, de cabelos longos, luminosa inteligência e grande sensibilidade artística. Diferente, Cadu contestava a disciplina, as diretrizes do colégio, mas era alguém alegre, do bem, querido e com muitos amigos entre os colegas.

Essa convivência um dia foi interrompida quando o Sarda tropeçou com as drogas em seu caminho. Aliás, esse fantasma disfarçado de amigo aparece e assombra muito pessoas de grande sensibilidade, que buscam seu lugar no mundo com mais trabalho que os outros. E Cadu, ou Sarda, ou Carlos Eduardo cedeu às seduções das substâncias que o faziam viajar e certamente nos primeiros tempos lhe proporcionavam euforia, gostosas sensações; que lhe aguçavam a inteligência e aumentavam ainda mais a sensibilidade e o gosto musical. A morte do melhor amigo contribuiu certamente para que a “viagem” do querido colega e companheiro de tantos se aprofundasse em mergulho sem volta que foi acabar na Cracolândia, em São Paulo.

Ali ele foi encontrado, muitos anos depois, pelos amigos que nunca o esqueceram. Ao verem sua foto no jornal, em meio ao reboliço da polícia que invadia o local, retirando dali os habitantes, os que nunca haviam esquecido Carlos Eduardo foram à sua procura. Pois amigo não esquece. Pode ficar longe no tempo e no espaço, mas quando recebe um alerta, a amizade reemerge, volta e sai no encalço do amigo para encontrá-lo, abraçá-lo e retomar a convivência. Igualmente para ajudá-lo se necessário.

E Sarda estava em situação de extrema necessidade. Chegara a um grau perigoso de uso de drogas. Sua saúde se encontrava seriamente debilitada. Perdera peso, dentes. Só não perdera a sabedoria e a alegria que o levavam a fazer declarações extremamente articuladas sobre a ação da prefeitura na Cracolândia e outras coisas mais. Foi encontrado pelos amigos, que o atenderam no mais urgente e imediato: deram-lhe banho, roupas, alimento. Buscaram uma clínica para interná-lo, a fim de que se tratasse e tornasse a ser livre. Abriram uma lista de doações para custear-lhe o tratamento, caro e dispendioso, em uma clínica especializada.

Sarda estava alegre, feliz com o reencontro. A mídia publicou suas fotos e tudo levava a esperar por um final feliz. Ele queria tratar-se, desejava libertar-se do vício. E os amigos se desvelavam e punham à disposição tudo que podiam para ajudar a que esse desfecho acontecesse. No entanto, a morte se antecipou e colheu Sarda pelo coração. Aquele coração sensível, enfraquecido ao máximo pelo uso contínuo de substâncias químicas, parou de bater poucos dias após o ingresso na clínica.

A amizade chegou tarde e não conseguiu arrancar Sarda ou Cadu das garras dessa que é a inevitável companheira de todo viciado. Mas – e isso é talvez o mais importante – alegrou seus últimos dias de uma maneira que apenas a relação gratuita e amorosa consegue fazer. Sarda se sentiu acompanhado, querido, amado. Voltou a ver que era importante para outras pessoas, que sua vida tinha valor e sentido para aqueles que com ele cresceram e se formaram nos bancos escolares, nos recreios, nas conversas intermináveis, nos passeios a pé de volta do colégio.

A tristeza e a frustração dos amigos foram pungentes. Agora que ele estava começando a viver, como aconteceu isso que ceifou seu projeto tão brutalmente? Agora que o tinham reencontrado era muito cruel perdê-lo novamente. No entanto, que os acompanhe novamente o grande Aristóteles, que diz: "Quando as pessoas são amigas não têm necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas necessitam da amizade".

Esse grupo que se dispôs a ajudar o colega em situação de rua e de vício com o mesmo carinho dos anos da infância e da adolescência experimentou a graça da amizade que independe do êxito das iniciativas e ultrapassa as maiores frustrações. Foi bom experimentar que é possível amar alguém profundamente mesmo quando ele ou ela não tem absolutamente nada para dar em troca. É bom sentir a gratuidade da relação que sempre os ligará a Sarda/Cadu, para além dos limites da vida e da morte.

Sarda descansa em paz. Sem crises de abstinência, angústia, fissura ou outros incômodos e distúrbios provocados pela droga. A seus amigos fica a saudade, temperada por aquilo que o grande Jorge Luis Borges chamou de vício: a amizade que não pode não amar, não ajudar, não conviver, não se relacionar. A amizade que dispensa até a justiça, pois pertence à ordem da graça e da gratuidade. Bendito Sarda, que do fundo do poço onde caiu ainda pôde ensinar tudo isso a seus colegas e amigos que agora se sentem mais unidos graças à sua passagem tardia e efêmera em meio a eles.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

UMA HISTÓRIA DO BRASIL

Nem só de pão vivem homens e mulheres. Exigem também beleza e esperança como razão de vida. Precisam ser semeados para nascer, crescer, florescer e frutificar. Na cultura humana, esses semeadores são chamados educadores.

Rubem Alves ensinou a diferença entre professores e educadores. Os primeiros, como eucaliptos, crescem retos e esgotam o solo em seu entorno. Reproduzem conhecimentos de outros sem crítica, e não entendem a crítica ao próprio conhecimento. Repetem e obrigam os outros a repetir aquilo que um dia também foram obrigados a aprender. Não criam, e impedem outros de criar.

Já os educadores, estes sim, quebram as regras e se entusiasmam ao observar a maravilha da criação que se dá pela troca, não pelo acúmulo; pela construção, não pela repetição.

Paulo Freire talvez tenha sido o mais pródigo exemplo dessa relação dialética entre aprendiz e mestre. O que produz o aprendizado e o conhecimento é a troca. Quando ensino, aprendo, é só aprendo porque também ensino.

Esta via de mão dupla é o que rege o mundo e permite que nós, seres humanos, possamos transcender. Mas nenhum conhecimento é neutro. Pelo contrário, a cabeça sempre pensa onde os pés pisam. E só se aprende e ensina aquilo que se vive. A vida é a matéria-prima do saber.

Entre muitos mestres que se destacam no Brasil, merece relevância Paul Singer.

Ele nasceu na Áustria e veio para o Brasil fugido do nazismo. Aqui fincou raízes profundas. Na juventude, irmanou-se à classe trabalhadora militando em movimentos progressistas. Jovem, filiou-se ao Partido Socialista e participou da greve dos 300 mil, que paralisou a indústria paulistana por mais de um mês, em 1953, na condição de operário metalúrgico. Somente depois de ser trabalhador e militante atravessou a fronteira para ingressar na academia, onde se tornou pesquisador e professor.

Como educador, sempre procurou o contraditório, o pensamento radical e profundo. E desse lugar de intelectual orgânico fez sombra para que gerações de militantes e intelectuais se formassem.

Durante a ditadura militar, preso e compulsoriamente aposentado, ao se ver livre deu aulas clandestinas em São Paulo, para formar especialistas em economia política.

Paul Singer soube fazer da vida constante aprendizado e, aos 70 anos, se reinventou ao se dedicar à economia solidária. Foi o primeiro tradutor de O capital, de Marx, no Brasil, e participou do grupo de estudos dedicado a esta obra clássica, coordenado pelo professor Florestan Fernandes.

Singer é um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, do Cebrap, e muitas outras instituições que, nas últimas décadas, se voltaram à defesa dos direitos dos excluídos. Nos governos do PT, atuou por 13 anos como secretário nacional de Economia Solidária, uma década depois de ter sido secretário de Planejamento da prefeitura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina.

Sua história merece ser contada. Precisa virar filme, para que as novas e futuras gerações conheçam e aprendam sobre o Brasil e o mundo no olhar dessa pessoa profundamente humana que é Paul Singer. Este é o projeto que o diretor Ugo Giorgetti se propõe a levar adiante no filme Paul Singer, uma história do Brasil.

Para apoiar a realização deste projeto militante e torná-lo realidade é preciso um mutirão solidário. Portanto, participe e colabore! Visite a página da campanha no Catarse: www.catarse.me/paulsinger

domingo, 18 de junho de 2017

FÉ, SENTIMENTO E RAZÃO

Quem tem ou deveria ter primazia no governo do eu? Quem é senhor e quem é servo na tríplice estrutura do eu que rege o ser humano? Ou será melhor não pensar hierarquicamente e sim, circularmente, quando está em questão a fé, os sentimentos e a razão? Essa é uma daquelas questões permanentemente debatidas e com solução final sempre adiada. Afinal, há boas razões para qualquer uma das quatro posições possíveis, a saber a) que a fé tem primazia; b) que os sentimentos têm primazia; c) que a razão tem primazia; d) que nenhuma deve ter a primazia.

“A fé é a mais elevada paixão de todos os homens (Kierkegaard). Estou aqui pensando na fé religiosa e teológica, e não da fé antropológica que cada humano deposita no outro humano, sem a qual a vida seria impossível, pelas paranoias que se instalariam, cada um fazendo do outro um inimigo oculto. Do ponto de vista teológico e religiosa a fé é aquela confiança e entrega depositada em um ser superior, transcendente que nomeamos Deus. Para alguns, sem Deus a vida não valeria a pena, pois completamente sem sentido. E mais. Sem fé em Deus, a consequências na conduta moral da vida seria fatal, pois como diz Dostoievski, se “Deus não existisse, tudo seria permitido”, dando entender que já não saberíamos o que é certo e o que é errado. Assim pensam muitos. Essa postura engendra o melhor e o seu contrário, pois a corrupção do melhor engendra o pior, como é o caso dos fanáticos que são capazes de matar em nome de Deus.

Outros pensam que os sentimentos (amor, ódio, ressentimento, indignação etc) é o que há de mais forte e é o que comanda efetivamente a nossa existência. Quem já não ouviu dizer: “vai onde teu coração mandar”, dando entender que os sentimentos, e não a fé e nem a razão, são os guias confiáveis do sentido da vida e da boa conduta moral, inclusive. Hoje essa esfera da constituição do eu está em alta. Depois de um longo percurso de repressão ao corpo e aos sentimentos, processados tanto pelas religiões quanto pelos filósofos da modernidade, finalmente há uma verdadeira ressurreição dos sentimentos como guia da vida. Poderíamos pensar aqui com Schopenhauer e Freud. Schopenhauer dizia que a cabeça é apenas uma anã colocada sobre as costas de um gigante, os sentimentos (vontade). Ele diz mais. Diz que a vontade, outro nome para os sentimentos, primeiro decide e depois aluga a razão para dar boas justificativas pela sua decisão prévia. Sabia de tudo esse Schopenhauer! Freud, por sua vez, foi enfático ao dizer que a mente é apenas uma onda superficial, num mar agitado e profundo dos sentimentos inconscientes. Em última instância, quem estaria no comando são os sentimentos e não a razão ou a fé. Já não ouvimos dizer frases do tipo: ama e faz o que quiseres? Pois é, como se alguém que amasse não pudesse fazer o mal...

Os racionalistas por sua conta, apostam tudo na razão. “O homem é um animal racional”, dizia Aristóteles e a parte, metaforicamente falando, que deve governar o humano é a cabeça e não o peito ou o ventre, dizia Platão, antes mesmo de Aristóteles. Em Platão isso acaba virando política, dizendo que quem deve governar a sociedade são os filósofos, pois eles entendem das coisas e não tem nenhum interesse senão a justiça. Modernamente, Descarte e Kant vão na mesma direção. A razão seria a garantia de agimos livres e não por natureza instintiva sempre propensa ao egoísmo. Só a razão é o guia seguro da universalidade imparcial e moralmente boa, condutora da vontade e dos sentimentos que são sempre parciais, provisórios e seletivos.

E agora? A quem cabe a palma? A quem devemos nos curvar? A fé, os sentimentos ou a razão? Vai onde a fé te conduzir, ou vai onde o coração e a razão te guiar? Ou será que não seria um falso dilema pensar na forma disjuntiva ou/ou? Será que a vida não comporta uma complexidade de forças que interagem, ora prevalecendo uma força ora outra? Se cegamente nos deixássemos conduzir pelo coração, não tenderíamos ao precipício? Mas a razão sem o coração não seria fria e calculista demais? E sem a fé, que sentido e que direção a vida teria? “O círculo é a festa do pensamento”, dizia Heidegger. Eu circulo, tu circulas, ele circula...

sábado, 17 de junho de 2017

A BICILETA HONESTA



Hoje, vindo para o trabalho, fui ultrapassada por uma bicicleta na qual estava colado um adesivo com a palavra “honesta”. É comum cruzar por bicicletas com placa, como se fossem uma moto, mas no lugar das letras e números a gente lê “NO OIL”. Uau! Ótimo para os honestos, que não poluem o mundo como os motociclistas e os automobilistas, essas pessoas inconscientes. Saibam, honestos: vocês são insuportáveis.

Não que ser honesto ou ecológico seja ruim: insuportável é a vaidade, é esse carteiraço dos que acham que já perceberam tudo o que os simples mortais não entenderam ainda.

Detesto os veganos: expliquem a dor das plantas ao serem reduzidas a papa no liquidificador. Porque a questão é séria, os cientistas já descobriram que as plantas possuem uma linguagem de comunicação, só que ainda não conseguiram decifrá-la. São seres vivos, caros veganos. Que dor! Mastiguem as folhas de alface com carinho.

Odeio os que me mandam bom dia, informando que a Nossa Senhora passou pelo meu celular. Se a Compadecida precisasse de porta-voz, vocês acham realmente que seriam escolhidos para a função? Deixem disso, mandem um abraço apertado, que é mais humano e caloroso.

Não aguento os felizes de profissão. Com um monte de gente morrendo de fome, sendo assassinada, perdendo o emprego, sendo vítima de tráfico de seres humanos, abandonando a escola, como pode existir gente que só tem tempo para sorrisos numa vida feita de pixel e like?

Amo os imperfeitos, gente de carne, osso e coração. Gente que pede desculpa, gente que se arrepende do voto que deu, gente que tem coragem de recomeçar depois de um fracasso, gente que sabe aprender, gente que se esforça para perdoar. Escolho os amigos pelos defeitos que têm e que posso suportar, porque gostar das qualidades é fichinha: todo mundo tem um ponto forte. Difícil é gostar das pessoas apesar das suas mancadas.

Enquanto eu pensava nisso, a ciclista que tinha me ultrapassado ganhou velocidade. Abram alas para a bicicleta honesta! Também fiquei para trás de uma amiga que reconheci pelo cabelo e pela sandália, mas ela pedalava com mais força do que eu. Não consegui alcançá-la para dizer: oi, olha eu aqui! Fiquei para trás de outras duas ciclistas que arrancaram a mil quando abriu o sinal. Imagino que além das que estavam à minha frente, havia também gente que vinha atrás. Não virei o rosto, não ousei nenhuma manobra arriscada para não perder a concentração. Conheço os meus pontos fracos e tenho consciência disso: eu tento ser melhor, mais rápida no pedal, mais honesta, menos carnívora, mais confiante, menos melancólica, mas sei que tenho que conviver com os meus defeitos. Não vão sumir enquanto eu for gente. Então, preciso cuidar deles com carinho para que não me façam mal. E para que não machuquem muito os outros.
O autor

sexta-feira, 16 de junho de 2017

MEMÓRIAS DE UM FUMANTE


Poderia ser um bom título de um livro. Um livro de memórias de alguém que, como eu, em tempos pretéritos, por mais de uma década, desfrutou o prazer de colocar um punhadinho de tabaco numa folha de papel meticulosamente recortada, cuidar para que estivesse bem prensado e fechado, apertar suavemente uma ponta e, riscando calmamente um fósforo na caixa, fazer surgir a brilhante chama que, encostada à outra ponta, fazia surgir a suave fumaça que, sorvida lentamente pela boca, chegava aos pulmões e, percorrendo a corrente sanguínea, terminava no cérebro provocando a doce turbidez do vazio que acalma todas as preocupações! Doce sensação! Só a conhece quem já a experimentou...

O cigarro industrial, aquele comprado em maços de 20 unidades, não alterava a sensação de prazer do rito. Tirar o plástico da caixinha, levantar a tampa, rasgar a capa interna apenas num lado, golpear a caixa contra a mão para extrair o tubinho branco recheado, tomar esta unidade por entre dois dedos e, para firmar o conteúdo, golpeá-la ritmadamente, com o filtro para baixo, na ponta da unha, e finalizar a mesma sequência: fósforo, fumaça, boca, pulmão, cérebro, relax...

Mas podia também ser uma memória social. Sou do tempo em que era normal fumar em sala de aula. Na Universidade, na década de 1980, eram raros os estudantes e professores que não fumassem. No frio inverno de Pelotas, fazíamos isso com janelas fechadas! Os incomodados é que deviam retirar-se. Nos ônibus, só não se podia fumar “cachimbo e palheiro”. O resto estava liberado. Nos aviões da velha Varig e de todas as companhias aéreas, a área mais segura, a dos fundos, era reservada para os fumantes. Mas como a fumaça é volátil, todos os navegantes aéreos desfrutavam do subproduto pulmonar dos que ocupavam a área privilegiada.

A televisão, assim como todos os outros meios de comunicação, sobrevivia de comerciais de cigarro. O Gérson ensinava que, fumando, se podia levar vantagem em tudo. Filmes, novelas, programas de auditório, talk-shows e até programas jornalísticos tinham suas estrelas permanentemente com um cigarro na mão e na boca.

Aos mais jovens, tudo isso pode parecer absurdo. Mas é coisa de, no máximo, trinta anos. Hoje, ser fumante é vergonhoso. Quem deseja fumar, tem que buscar um lugar discreto e longe das pessoas. Há poucos dias, num ônibus intermunicipal no qual me deslocava para uma cidade do interior, entrou um senhor fumante. Percebia-se sua condição pelo cheiro da roupa. Quando ele se acomodou no seu banco numerado, os passageiros que estavam com assentos a seu lado, deslocaram-se para longe. Por sorte havia lugar! Imagino que se não houvesse lugares vagos longe do ignóbil ser que ainda usava desfrutar do prazer do tabaco, haveria discussão e ele seria forçado a deixar o ônibus.

Como mudamos tanto em relação ao cigarro em tão pouco tempo? Conhecimento, esclarecimento, preocupação com a saúde, consciência social, legislação, cultura... Muitos fatores, com certeza, pesaram. Mas uma pergunta que vai além de todos estes fatores: por que relutamos, como pessoas e como coletividade, em mudar outros hábitos que tanto incomodam a nossa vida e a vida em sociedade? Alcoolismo, machismo, violência, racismo, especismo, corrupção, capitalismo? Mistérios do ser humano que certamente não serão desvelados pelas suaves, perfumadas e voláteis curvas da fumaça que sobe de um vegetal queimado e inalado. Mas bem que podia...

quinta-feira, 15 de junho de 2017

QUER VER MAIS LONGE?

Quer ver mais longe?

A palavra “filosofia” tem origem grega e significa “amigo da sabedoria” (filos: amigo e sophia: sabedoria). Antes da filosofia, os gregos explicavam os fatos e acontecimentos sociais, bem como os fenômenos da natureza, por meio de mitos. A mitologia grega está repleta de narrações místicas que trazem uma lição pela interferência dos deuses. Quando os homens começaram a refletir sobre suas ações, guerras, decisões e atitudes, perceberam que elas tinham consequências. Daí surgiu a filosofia, como uma necessidade de explicar o mundo com argumentos reais, sem buscar aclarações na mitologia.

Esse novo modo de agir, analisar e compreender o mundo e seus fenômenos derrubou o mito, pois pela capacidade de se admirar, o homem começou a filosofar. Segundo o filósofo Aristóteles, “os homens começam e sempre começaram a filosofar movidos pela admiração”.

Além disso, a filosofia é uma das formas de fazer com que o ser humano possa refletir sobre o sentido da vida, o valor da relação, das coisas, das pessoas. Ela ajuda o ser humano a pensar e construir a sua realidade de uma forma mais clara e precisa sobre a sua essência.

Pensando nessas questões apresento a obra “Introdução à Filosofia a partir de pensadores que marcaram a História”. O livro editado pela Livraria e Editora Padre Reus, de Porto Alegre (RS), tem 112 páginas e traz o fio condutor para compreensão dos quatro grandes períodos da Filosofia: Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea.

No ensejo de conduzir o leitor a ver mais longe a realidade o convido a subir nos ombros de gigantes. “Se consegui ver mais longe é porque estava aos ombros de gigantes” (Isaac Newton).

quarta-feira, 14 de junho de 2017

FAZER DA VIDA UMA BENÇÃO


O quinto homem mais rico do mundo, Mark Elliot Zuckerberg, nasceu aos 14 de maio de 1984, nos Estados Unidos. Juntamente com seus colegas de quarto da faculdade criou o Facebook. Há pouco tempo foi o paraninfo da 366ª turma da Universidade de Harvard. Na conclusão da homenagem que prestou aos formandos, seus afilhados, disse: “Lembro-me de uma oração que rezo quando tenho que enfrentar um grande desafio, que canto para minha filha, pensando em seu futuro, que diz assim: ‘Que a fonte da força que abençoou os que vieram antes de nós, ajude-nos a encontrar o valor de tornar nossas vidas uma bênção. Amém.’ Espero que vocês encontrem o valor de tornar suas vidas uma bênção”, concluiu o paraninfo Mark Zuckerberg.



Encerrar a saudação aos formandos com uma simples, mas profunda prece deve ter emocionado os presentes. A repercussão na mídia foi grande. Um gesto de humildade de alguém que não perdeu a essência, apesar de ter acumulado uma grande fortuna. Desejou aos jovens formandos algo precioso: ‘tornar a vida uma bênção’. Num mundo que estimula a busca pelo sucesso, desejar que a existência seja uma bênção é abrir espaço para o que há de mais precioso: a espiritualidade. Viver de tal forma, ao ponto de ser uma bênção para si mesmo e para os outros é descobrir o caminho da felicidade.



Ser bênção para os outros é ser capaz de estender a mão num momento de necessidade, de sorrir sem motivos, de abraçar no desejo de consolar, de escutar mesmo estando pressionado pelo tempo. Ser bênção é saber que o outro existe e necessita ser reconhecido em sua dignidade. O mundo seria diferente se todos procurassem ser uma singela bênção. Certamente não haveria espaço para julgamentos, intrigas e distanciamentos. É possível ser o último na quantidade de bens materiais, mas estar nos primeiros lugares, entre aqueles que multiplicam vida e esperança, assumindo diariamente o propósito de tornar a vida uma bênção. A turma de formandos da famosa universidade americana jamais esquecerá as palavras e a prece do paraninfo.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

MERCADO E ESTADO.

No Brasil, os dois governos de Lula e o primeiro de Dilma foram os melhores de nossa história republicana. Entre 2003 e 2011, a renda dos brasileiros cresceu a uma taxa média de 2,8% ao ano. O volume de divisas internacionais superou o montante da dívida externa com os bancos internacionais, fazendo com que o Brasil se destacasse como credor mundial. Acreditou-se que o país havia superado seus problemas com as contas externas.

O aumento do salário mínimo acima da inflação a cada ano, e a política de facilitação de acesso ao crédito, fizeram com que o consumo fosse amplamente dilatado. No período Lula, entre 2003 e 2010, a geração de empregos chegou a 14 milhões (índice igual ao desemprego no período Temer). Todo esse processo criou a impressão de que o Brasil havia conquistado o patamar de um desenvolvimento capitalista autossustentável.

Esse processo reduziu, de fato, a desigualdade social. O índice Geni, que mede o grau de concentração pessoal da renda, se reduziu um pouco nos 13 anos de governo do PT. Diminuiu a distância entre a renda média dos 10% mais pobres e dos 10% mais ricos. Em 2010, esta diferença era de 39 vezes, enquanto em 2002, no governo FHC, era de 57 vezes. Cerca de 40 milhões de brasileiros saíram da miséria. Ampliou-se a rede de proteção social aos mais pobres. Em 2015, o Bolsa Família atendeu a quase 14 milhões de famílias.

Somam-se a isso a independência e a soberania da política externa brasileira, como a desarticulação da Alca, o fortalecimento do Mercosul, a participação na Celac e no G-20, a formação do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), e a eleição do nosso país para sediar a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

A falta, porém, de uma ousada política de comunicação e democratização da mídia, aliada ao fortalecimento dos mecanismos de participação democrática, tanto na esfera política quanto na econômica, fragilizaram todas essas conquistas. Não se fez um intensivo trabalho de alfabetização política da população, mormente dos setores populares, concomitante à organização e mobilização desses setores.

Nem sempre os governos progressistas da América Latina se empenharam em inverter a relação, historicamente predominante, da supremacia do mercado sobre o Estado. Ao contrário, através de desonerações tributárias, subsídios generosos a juros baixos e flexibilização das leis trabalhistas, o Estado se aliou ao mercado e se tornou seu provedor.

O Estado, por natureza, deve ser o provedor daqueles que se encontram marginalizados ou excluídos pelo mercado. O Estado tem, por dever, contrapor-se ao mercado quando este favorece a desigualdade social; reforça a primazia da propriedade privada sobre os direitos coletivos; e suga os recursos públicos, através de dívidas públicas não auditadas e, portanto, suspeitas.

Um governo que se pretende progressista e, no entanto, não logra assegurar a soberania do Estado sobre o mercado, está inevitavelmente condenado a ter seu poder político derrotado pelo poder econômico.

domingo, 11 de junho de 2017

O TERNO NÃO FAZ O TREINADOR.

Falar de futebol é sempre arriscado. Principalmente no Brasil. Aqui, as rígidas regras do esporte bretão foram dribladas pela ginga e criatividade típicas do brasileiro.

Com vantagens e desvantagens. O lado bom da flexibilização é que proporcionou o surgimento dos Garrinchas, Romários e Túlios que encantaram o mundo e nos deram tantos títulos. Por outro, nunca tivemos em nenhuma equipe brasileira um Alex Ferguson e suas duas décadas e meia à frente do Manchester. Nos campeonatos brasileiros, o normal é que nenhum time inicie a temporada e vá até seu fim com o mesmo elenco e o mesmo treinador.

Por falar em treinador, é sabido por todos que nenhum brasileiro conseguiu se firmar à frente de uma equipe europeia. Não por incompetência. A causa é cultural. Na última final da Champions League em que o Real Madrid massacrou a Juventus, era interessante a figura dos dois treinadores, Zinedine Zidane na esquadra espanhola e Massimiliano Allegri na turinesa. Os dois foram jogadores de futebol e agora estavam à beira do campo. Os dois de terno. Meio desalinhado o de Zidane, é certo. Mas sempre um terno, clássico, elegante. O de Allegri, então, perfeito, italiano. Só isso diz tudo. Os dois com gestos comedidos como cabe a um treinador... europeu. Emoção mínima. Eficiência máxima.

Quanta diferença com um Abel Braga, Joel Santana, Murici Ramalho, Renato Gaúcho... só para falar em alguns da atualidade. Estes não cabem dentro de um terno. O Renato até que tenta usar camisas sociais, mas a calça é jeans e, no pé, os tênis. De marca, óbvio. Mas não são sapatos italianos! São tênis. Roupa esportiva e não executiva.

No auge da carreia, o Wanderlei Luxemburgo foi treinar o Real Madrid. Fracassou. Não tinha o perfil europeu. Mas voltou de lá vestindo terno à beira do gramado. Dunga, talvez pela longa experiência como jogador na Itália, ao assumir como treinador no Brasil, também primava pela roupa social. De elegância duvidosa em certas ocasiões, como todos pudemos notar. Também não deu certo. Mais recentemente, aqui na Província de São Pedro de Rio Grande, outro treinador com passagem pela Europa como jogador, passou a dirigir uma da Série B, fardado com elegantes ternos italianos. Fracassou rotundamente... Ele vestia terno italiano. Mas não tinha jogadores italianos. Nem treinava um time italiano. E nem participava de um campeonato italiano. A realidade que estava à sua frente não se transformava pelo fato de ele usar um terno italiano.

Lembro disso tudo ao reparar o cenário político brasileiro e seu messianismo mágico. Personagens que vestem um traje – de presidente, de juiz, procurador, ministro, senador, deputado, prefeito... – e acham que isso é suficiente para que todos os considerem como tal e submetam-se a seus ditames. Pelo simples fato de usarem um terno, uma faixa, uma toga, acham que tem autoridade. Mas para ser autoridade, é preciso muito mais. É preciso o respaldo do povo, da nação, da urna, da democracia.

Por isso, mesmo admirando a eficácia do futebol europeu, ainda prefiro nossos Garrinchas, Romários, Abeis, Joeis, Muricis, Renatos... que não vestem ternos e togas, mas tem o jeito e a ginga do povo brasileiro, falam a linguagem do povo brasileiro e, sem sonhar em ser espelhos cacofônicos da Europa, ganham títulos com o povo brasileiro.

sábado, 10 de junho de 2017

SÓ DESCANSO QUANDO ESCUTO A PORTA BATER.

O tempo presente pode ser considerado a época da juventude. Atualmente usam-se os máximos recursos científicos e estéticos para permanecer jovem. Passam-se os anos sem considerar-se idoso. Em razão disto, cresce o marketing em torno da juventude. Em tudo isto se apresentam muitos desafios às famílias, à sociedade, em especial às Igrejas.

Em conversações ouve-se a expressão “vivemos na época do triunfo da juventude”. A constatação não deixa de ter certa verdade. Percebem-se em geral tentativas de parecer mais jovem do que os anos de idade. As iniciativas vão desde o jovem não querer perder a juventude. Por vontade, esforços ou outros mecanismos, até de intervenção cirúrgica, os adultos lutam contra a perda da juventude. Muitos idosos ainda se reconhecem como jovens. Até mesmo as crianças e adolescentes almejam passar logo para a fase da juventude. O desejo é ser jovem. A moda é manter-se eternamente jovem. Em tudo isto algo positivo é as pessoas se manterem ativas e com elevada autoestima. Cresce o cuidado com a saúde, beleza física, leveza da vida por ora imune das preocupações, compromissos e sofrimentos. Porém, a vida transcende ao período definido como juventude.

No dizer da ONU a juventude compreende a faixa de idade entre 15 e 24 anos. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define a juventude dos 12 aos 18 anos. Na PEC da Juventude aprovada pelo Congresso Nacional em setembro de 2010, a faixa etária da juventude é de 16 a 29 anos.

Depositar suprema importância à fase da juventude leva a crer que acabou o período da gerontocracia. O termo é derivado do grego, em que geroné é ancião e cracia representa o poder. Em outras palavras acabou o poder dos idosos. Percebe-se este sinal de mudança nas relações familiares, sociais, empresariais, governamentais e em qualquer organização. Os idosos são substituídos pelos mais jovens. E, sem dúvidas, por mais despercebido que passe, em presente contexto os chefes das nações procuram aparecer em momentos e ações identificadas como pessoas jovens, vigorosos, esbeltos, atraentes, características da juventude. A mídia e o mercado promovem seus produtos para atrair os jovens. Neste comportamento manifesta-se uma compreensão extremamente fundamentalista do comportamento social, antropológico e do mercado: é reduzir a ideia de felicidade humana à época da juventude.

Na visão cristã o ser humano foi criado para desfrutar da felicidade desde seu nascimento até o gozo da última estação da vida, a eternidade. Contudo, no decorrer das etapas da vida será preciso o enfrentamento dos conflitos, tensões e limitações com sabedoria espiritual para gozar da maior realização e felicidade. Em contrário, o ser humano estaria enclausurado numa falsa ideia de gozo eterno da juventude.



De modo geral, os jovens de todas as épocas e culturas possuem em comum características e diferenças. Contudo, há uma particularidade consensual manifestada nas queixas dos pais, tangente à vida noturna dos filhos. A problemática que os pais enfrentam atualmente não é tanto rebeldia, críticas, paixões, sonhos, intolerância dos jovens, mas as consequências dos atos dos filhos. Em casos concretos os filhos ferem o contrato social e moral por comportamentos e atitudes que não condizem com a tradição e com os costumes dos genitores. Propriamente dito, sobre seu temor quanto às baladas de final de semana, os pais desabafam: “Só descanso quando escuto a porta bater”.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

VINDE ESPÍRITO SANTO.

O movimento carismático e pentecostal, a percepção da presença do Espírito Santo e o surgimento de novas igrejas diferentes em forma, conteúdo e espiritualidade das igrejas cristãs históricas é um fato que merece a atenção do mundo inteiro. Vivemos, sobretudo no Ocidente, que sempre apresentou uma pneumatologia acanhada, um verdadeiro Tempo do Espírito. No entanto, esse eclodir do carismatismo pneumatológico deste lado do mundo não deixa de apresentar ambiguidades e questionamentos.

Deste lado do mundo, ou seja, no Ocidente cristão (Europa Ocidental e América), a pessoa do Espírito Santo ficou durante longo tempo um tanto esquecida, e mesmo deixada de lado. O Cristianismo ocidental configurou-se após o século IV e até o século XX por uma primazia quase absoluta do Filho, segunda pessoa da Santíssima Trindade, chegando às raias de um cristomonismo. Por outro lado, a pneumatologia oriental cresceu e desabrochou ricamente, dando a toda a teologia do Oriente cristão (Europa do Leste, Península Balcânica e Oriente Médio) uma configuração trinitária, onde pneumatologia e cristologia harmoniosamente dialogam e se entrelaçam, sobretudo na comunidade eclesial.

Importa, então, refletir sobre este fenômeno, procurar resgatar suas raízes e analisar suas consequências. Sobretudo num tempo como o nosso, quando o movimento carismático cresce de maneira importante na Igreja do Ocidente, fazendo acontecer o pentecostalismo que quase chega por vezes a um pneumatomonismo. Vivemos, hoje, nas igrejas cristãs do Ocidente – católica ou protestantes - o risco de que a espiritualidade e a pastoral sejam marcadas por uma primazia quase absoluta do Espírito Santo, o que deixaria na sombra as outras duas pessoas divinas, e sobretudo a espessura histórica e encarnada da pessoa do Filho e o compromisso concreto que daí resulta.

Este fato gera outras consequências teológicas e também pastorais. Uma delas é um declinar, nas igrejas, da ligação entre experiência do Espírito e compromisso histórico. Em outras palavras, entre espiritualidade e prática. Igualmente categorias como a centralidade da história, a opção pelos pobres e o binômio inseparável fé-justiça, que marcou a teologia pós-conciliar não só da América Latina mas do mundo inteiro, deixa de estar à frente da pastoral das igrejas cristãs.

Em seu lugar, surge a chamada “teologia da prosperidade”, que relaciona experiência de Deus e enriquecimento, sendo adotada por pastores que muitas vezes a impõem aos fiéis de maneira coercitiva e violenta. Esta teologia encontra seu canal de expressão em liturgias muitas vezes bastante exteriorizantes, com grande “ruído” e igual agitação, inclusive sem permitir às celebrações fornecerem aos fiéis espaço de oração e reflexão onde o coração possa sentir e a razão pensar. Até mesmo autores que vêem a positividade presente no movimento carismático em geral são críticos sobre esses pontos da agitação espiritual, da tomada de posse da liturgia e da desconexão com a realidade e a transformação da mesma.

Os tempos que vivemos são, sim, tempos do Espírito. Porém, ao lado da riqueza que nos trouxeram os movimentos carismáticos que reivindicam para si e sua atuação a primazia da Terceira Pessoa da Trindade, encontramos muita ambiguidade. Por isso, esses tempos do Espírito, há que vivê-los no contínuo discernimento.

Por isso é importante voltar sempre e constantemente à 1a carta de João, capítulo 4, vv 1 ss: "Amados, não creiais a todo o espírito, mas provai se os espíritos são de Deus, porque já muitos falsos profetas se têm levantado no mundo." Discernir é preciso, ainda que as alegres e ruidosas celebrações carismáticas encham os ouvidos e os espaços; ainda que seja indispensável maior atenção à pneumatologia; ainda que os tempos plurais que hoje vivemos sejam propícios a uma importância maior da reflexão sobre o Espírito.

Perceber nos “sofrimentos do tempo presente” e em nossos próprios gemidos os “gemidos inefáveis” do Espírito (Rom 8,18.23.26) é a condição da verdadeira espiritualidade cristã. A espiritualidade cristã assim entendida é incontrolável pela teologia, que dela deve aprender a experiência de Deus que é Pai, Filho e Espírito. Com a “retração” da morte e ressurreição de Jesus, é o Espírito que habita em nós o responsável pelo reconhecimento da presença do Messias em nós. E isso implicará aderir de todo coração a esta presença, não apenas na catarse obtida na afetividade exacerbada, mas na obediência humilde e provada que se dá pelas dificuldades da caminhada e pelo sofrimento inexplicável nosso e
 alheio.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

QUEM É ÉTICO É FELIZ.

O professor João Adalberto Guimarães, brasileiro em um intercâmbio na Europa, entrou numa estação de metrô em Estocolmo, capital da Suécia. Ele notou que havia, entre muitas catracas normais e comuns, uma de passagem grátis livre. Então questionou a vendedora de bilhetes o porquê daquela catraca permanentemente liberada, sem nenhum segurança por perto. Ela, então, explicou que aquela era destinada às pessoas que, por qualquer motivo, não tivessem dinheiro para o bilhete da passagem. Com sua mente incrédula, acostumado ao jeito brasileiro de pensar, não conteve a pergunta, que para ele era óbvia: “E se a pessoa tiver dinheiro, mas simplesmente não quiser pagar?” A vendedora espremeu seus olhos límpidos azuis, num sorriso de pureza constrangedora e questionou: “Mas por que ela faria isso?” Sem resposta, ele pagou o bilhete e passou pela catraca, seguido de uma multidão que também havia pago por seus bilhetes. A catraca livre continuou vazia.

A cultura de levar vantagem está em decadência. Impossível ser feliz e não ser honesto. Muitos já se deram conta de que é urgente uma nova postura para garantir a realização pessoal. Fazer o que é certo quando ninguém está vendo é o jeito mais sereno e transparente de viver a ética. Para recuperar a confiança na humanidade é necessário transformar o coração humano. O espaço ideal para lapidar a existência é a família. Quando a convivência familiar for alicerçada nos valores humanos universais, será possível vislumbrar um ser humano correto, ético, transparente e, sem dúvida, feliz.

Amontoar bens materiais às custas de injustiças e espertezas nunca foi e nunca será uma expressão da dignidade. É deprimente conviver com pessoas que só pensam em si mesmas e que fazem da ganância um jeito sutil de fragilizar as relações humanas. A catraca vazia, destinada aos que vivem sem o mínimo, mas necessitam se deslocar, é um termômetro da honestidade e da transparência. Um dia, talvez, perto e longe de nós, serão muitas as catracas vazias, pois a humanidade terá recuperado sua postura ética. Não há dúvidas: quem é ético é feliz!

terça-feira, 6 de junho de 2017

O ESTOMAGO E O BOLSO, É ISSO QUE IMPORTA.

Foi na Conferência de Estocolmo, em 1972, que a ONU instituiu o dia 05 de junho como dia mundial do meio ambiente. Tal como outras tantas datas comemorativas, por exemplo, dia do trabalhador, dia da mulher, dia da consciência negra, essa data também é ambivalente, isto é, tanto se presta para comemorar as conquistas quanto para chorar e lamentar as violências e desrespeitos que ainda persistem. Em relação ao meio ambiente temos muito pouco a comemorar e muito a pensar qual rumo a humanidade está tomando numa tríplice relação: meio ambiente, animais e humanos.

Em relação ao meio ambiente, parece que já decidimos que não nos interessam as gerações futuras e que não abriremos mão dos lucros e bem-estar atuais e imediatos, em nome de sentimentalismos com as “almas” que ainda não estão sequer projetadas na mente e nos corpos dos homens e mulheres que por ora circulam sobre a terra. Ponto. Continuaremos queimando energias fósseis (carvão, gás e petróleo) até que se esgotem, não importando o que dizem os cientistas sobre o uso dessas energias como uma das principais causas do aquecimento global, além das poluições conectadas ao uso dessas fontes de energias. Não estamos nem aí para o que diz a ciência. Decidimos que o que manda em nós não é a razão, mas o estômago e o bolso.

Continuaremos desmatando e destruindo a biodiversidade, poluindo as águas, sobrecarregando a terra com pesticidas, fertilizantes e nutrientes químicos para produzir mais do que a terra naturalmente consegue, para depois desperdiçar 40% dos alimentos. Continuaremos produzindo lixo e mais lixo e jogando nos córregos, nos rios, no mar e que se lixe a natureza. Decidimos que o que importa é o estômago e o bolso.

Quanto aos animais, que não são meio ambiente, não são recursos naturais como alguns insistem em afirmar, mas são seres vivos com os mesmos interesses dos humanos (viverem livres, com saúde e não morrer), continuaremos tratando-os como coisas e como recursos naturais, criando-os com requinte tecnológico de crueldade, e matando-os aos bilhões todos os anos (7 bilhões por ano no Brasil e 70 bilhões por ano no mundo) sem cair no “sentimentalismo” dos defensores dos animais. Não importa se a administração tecnológica do sofrimento e da morte na indústria do leite, ovos e carne (eufemisticamente nomeados pelos industriais de proteína animal) seja a principal causa do desmatamento, da perda da biodiversidade, da poluição do solo e das águas e da emissão de gases de efeito estufa. O que nos importa é o estômago e o bolso.

Em relação aos humanos, o que nos interessa nos humanos é que eles continuem o que sempre foram: consumidores. E os que não estão incluídos no consumo (os pobres) e os que retardam a destruição das florestas vivendo felizes nela (os índios), nós daremos um jeito para que aos poucos e rapidamente se encontrem com o Pai eterno no outro lado da vida. Sem dó e piedade continuaremos a adorar o deus mercado e quem se atrever a não prestar culto em seus templos e a seus sacerdotes, que saibam que não estamos para brincadeira!

Se por acaso você for alguém muito preocupado com a natureza, com animais, com os pobres e condenados da terra, então, nesse dia 05 de junho, junta-se aos que também se preocupam e reze, chore juntos, ou acenda uma vela de esperança para que amanhã a soma das fagulhas de luz se tornem um clarão...

segunda-feira, 5 de junho de 2017

A IMPRENSA BRASILEIRA

Nenhum veículo de comunicação tem a obrigação de adotar linhas editoriais progressistas e sintonizadas com causas caras à esquerda. Aliás, meios de comunicação de massa com essas características são francamente minoritários ao redor do mundo.

Todavia, como diz um dos nossos maiores jornalistas, o bravo Mino Carta, o compromisso com a "verdade factual", premissa básica do jornalismo, devia ser ponto de honra de qualquer empresa de comunicação, de todo jornalista preocupado em levar informação de qualidade para a sociedade.

Na mídia monopolizada brasileira, isso está a anos luz de acontecer. Mais do que ostentar o nada nobre do título de campeã em manipulações, mentiras e assassinato de reputações, a grande imprensa atua como verdadeiro partido de direita, disputando a agenda política do país, perseguindo e caçando adversários, protegendo corruptos aliados, servindo cegamente aos interesses do mercado e sabotando os interesses populares e nacionais.

Tudo isso temperado com porções generosas de cinismo e canalhice. Aqui seria necessário um número infinito de artigos para descrever flagrantes de desfaçatez por parte dos sabujos dos barões da mídia. Vamos ficar apenas, então, com a economia brasileira. Todos os fundamentos revelam uma economia arruinada pelos golpistas. A dupla Temer-Meireles prometeu o paraíso com o afastamento do PT do governo, mas entregou as labaredas do inferno.

Com taxas de recessão e desemprego recordes, era natural que as pessoas consumissem menos e as empresas travassem seus investimentos. Diante dessa "paz dos cemitérios", ocorreu a mais do que previsível desaceleração dos índices inflacionários. Só que pelo pior motivo possível: a falta dinheiro no bolso, o que impacta negativamente na qualidade de vida.

Mas não é que Globo, Folha, Veja, Estadão e Band passaram a trombetear uma recuperação da economia que só eles são capazes de ver? Esse tipo de manipulação grosseira, porém, tem efeito bumerangue. O cidadão ouve ou lê aquelas notícias e logo questiona: "Mas melhorou para quem? A minha vida, da minha família e dos meus amigos só piora."

Em relação ao desemprego, uma ligeira melhora recente nos números do Cagede (Cadastro Geral de Emprego e Desemprego), do Ministério do Trabalho, bastou para desencadear uma onda de euforia oportunista na mídia, que chegou a estampar que a crise na geração de empregos estava com os dias contados.

Aí vem a ducha de água gelada, em pleno outono, na forma de mais uma pesquisa do IBGE, segundo a qual o desemprego não para de crescer. Nada menos que 13% da população economicamente ativa brasileira estão sem trabalho. Ou seja, 14 milhões de brasileiros e brasileiras não têm acesso ao mais elementar dos direitos sociais, que é o direito ao trabalho.

Mas o esperado silêncio dos comentaristas econômicos dos jornais ante a desmoralização de suas análises e projeções acaba sendo estridente. Afinal, autocrítica e reconhecimento de erros e avaliações é coisa de profissionais e empresas sérias.

domingo, 4 de junho de 2017

O QUE.COLOCAR DENTRO.

Quando me perguntam sobre o Brasil, respondo que não vejo luz no fim do túnel porque nem mesmo enxergo o túnel...

Não lembro de ter vivido conjuntura tão incerta. Na ditadura os atores, de um lado e outro, eram definidos. Agora não. Há um assombroso retrocesso no país, e é praticamente insignificante a reação de quem se lhe opõe.

A reforma trabalhista jogou por terra mais de 70 anos de conquistas laborais. A terceirização passou ao primeiro lugar. A reforma da Previdência condena os brasileiros mais pobres a uma vida toda de trabalho forçado, pois dificilmente terão sobrevida após 49 anos de aluguel de sua força de trabalho aos patrões, a preço salarial irrisório.

O Brasil está atolado no retrocesso econômico, no esgarçamento das políticas sociais, na precarização da saúde e da educação, e na corrupção. Os dados são alarmantes: 13 milhões de desempregados; surtos de febre amarela, dengue, zika e chikungunya, violência urbana crescente.

Para se contrapor a essa conjuntura, não basta abastecer as redes sociais de ofensas, ironias, ressentimentos e piadas. É preciso organizar a esperança. Ter clareza de como proceder nas eleições de 2018 e qual o projeto de Brasil dos nossos sonhos.

O voto em 2018 deverá estar pautado pelo Brasil que queremos. Essa visão estratégica deve nortear a escolha de partidos e candidatos.

Eleições, contudo, não mudam um país. O que muda é o fortalecimento dos movimentos sociais, o aprofundamento ideológico à luz do marxismo, o resgate da utopia e a militância junto aos segmentos empobrecidos da população. Buscar a alternativa socialista brasileira com visão crítica das experiências socialistas historicamente existentes.

Há que resistir a essa avassaladora cooptação feita pelo neoliberalismo. A direita avança no mundo todo. A desigualdade se acentua: oito indivíduos, segundo a Oxfam, possuem a mesma renda de 3,6 bilhões de pessoas, metade da humanidade.

Temos apenas duas escolhas: cuidar de nossa vida biológica, como estudar para obter emprego e, graças ao salário, sustentar a família, esperando que a sorte não nos empurre para a pobreza; ou imprimir à vida um sentido biográfico, histórico, ao assumir a militância da luta por justiça, liberdade e defesa intransigente dos direitos humanos.

Não nos basta informação. É preciso investir em formação, de modo a construir uma alternativa de sociedade que, a meu ver, deve consistir no eco-socialismo.

Fora Temer? E o que colocar dentro?

sexta-feira, 2 de junho de 2017

A PRÁTICA DO ASSÉDIO

O assédio moral é ato indefensável. A vítima passa a ser agredida em suas condições psicológicas, morais, sociais, de consciência e fisicamente. O assédio é ato que compromete a civilização do século XXI. Em decorrência do aumento de casos de assédio é preciso promover cultura que não possibilite tal atitude.

O termo assédio é usado em muitas expressões. O poeta russo Joseph Brodsky em 1976 aplicou o termo sexual harassment, que em português significa assédio sexual. O médico sueco Heinz Leymannem usou em 1989 a palavra mobbing, traduzido como perseguição no trabalho. O professor inglês Adam Crawford em 1992 utilizou o termo bullying, traduzido por muitas palavras como maltrato psicológico, perseguição, abordagem violenta, intervenção humilhante, etc. A psiquiatra francesa Hirigoyen define o assédio como uma conduta abusiva, configurada por comportamentos, palavras, gestos e atitudes. Algo inaceitável como padrão moral da sociedade. Para a pesquisadora brasileira Margarida Barreto o assédio é uma doença e distorção moral. Na cultura de senso comum assédio significa perseguir com insistência, molestar, perturbar, aborrecer, incomodar, importunar.

A prática do assédio está muito presente em ambientes de trabalho, escolas, clubes, espaços públicos. Normalmente é praticado por quem tem poder ou possuir autoridade sobre o assediado. A Lei n. 8.112 define o ato de assédio como decorrente de uma hierarquia autoritária e que coloca o subordinado em situações humilhantes. Muitas vezes o assediador além de se utilizar de condições de autoridade incentiva-se com preconceitos como machismo e de subordinação de gênero. Possivelmente haja muitas outras motivações que levam ao ato de assediar. Em todo caso, a problemática do assédio frequentemente ganha as manchetes, como no episódio que envolve famoso ator brasileiro ligado à Rede Globo de Televisão. Quanto a isso é preciso refletir sobre a parcela de colaboração da emissora com o episódio sem tirar a responsabilidade do agressor.

Segundo o jornalista Marco Damiani, do jornal Brasil 247, a emissora tem sua grande parcela de culpa, pois “pelas novelas, há décadas, todas as noites, em horários nobres, incentiva o sexo precoce, rebaixa as mulheres a objetos sexuais, faz elogio do machismo, glamouriza a prostituição, afiança traições, arranca roupas, tira camisas, exibe bundas...". Outro alerta vem do escritor italiano Umberto Eco (1932-2016) que afirmou que a má qualidade da televisão destruiria a sociedade italiana. Na péssima qualidade da programação da televisão brasileira como da Rede Globo o perigo de destruição da cultura é constante. Ainda, passado um ano do golpe parlamentar a emissora com seus âncoras felizes transmitiam em rede nacional cartazes escritos "Dilma vaca" e ofereciam seus microfones para manifestações machistas. Por conseguinte, é preciso concordar com Umberto Eco que a má qualidade da televisão brasileira leva a ruir os valores da sociedade e da civilização.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

COM BOA VONTADE

Na sociedade brasileira atual grassa uma onda de ódio, raiva e dilaceração que raramente tivemos em nossa história. Chegamos a um ponto em que a má vontade generalizada impede qualquer convergência em função de uma saída da avassaladora crise que afeta toda a sociedade.

Immanuel Kant (1724-1804), o mais rigoroso pensador da ética no Ocidente moderno, fez uma afirmação de grandes consequências, em sua Fundamentação para uma metafísica dos costumes(1785): “Não é possível se pensar algo que, em qualquer lugar no mundo e mesmo fora dele, possa ser tido irrestritamente como bom senão a boa vontade (der gute Wille)”. Kant reconhece que qualquer projeto ético possui defeitos. Entretanto, todos os projetos possuem algo comum que é sem defeito: a boa vontade. Traduzindo seu difícil linguajar: a boa vontade é o único bem que é somente bom e ao qual não cabe nenhuma restrição. A boa vontade ou é só boa ou não é boa vontade.

Há aqui uma verdade com graves consequências: se a boa vontade não for a atitude prévia a tudo que pensarmos e fizermos, será impossível criar-se uma base comum que a todos envolva. Se malicio tudo, se tudo coloco sob suspeita e se não confio mais em ninguém, então, será impossível construir algo que congregue a todos. Dito positivamente: só contando com a boa vontade de todos posso construir algo bom para todos. Em momento de crise como o nosso, é a boa vontade o fator principal de união de todos para uma resposta viável que supere a crise.

Estas reflexões valem tanto para o mundo globalizado quanto para o Brasil atual. Se não houver boa vontade da grande maioria da humanidade, não vamos encontrar uma saída para a desesperadora crise social que dilacera as sociedades periféricas, nem uma solução para o alarme ecológico que põe em risco o sistema-Terra. Somente na COP 21 de Paris em dezembro de 2015 se chegou a um consenso mínimo no sentido de conter o aquecimento global. Ainda assim as decisões não eram vinculantes. Dependiam da boa vontade dos governos, o que não ocorreu, por exemplo, com o parlamento norte-americano que somente apoiou algumas medidas do Presidente Obama.

No Brasil, se não contarmos com a boa vontade da classe política, em grande parte corrompida e corruptora, nem com a boa vontade dos órgãos jurídicos e policiais jamais superaremos a corrupção que se encontra na estrutura mesma de nossa fraca democracia. Se essa boa vontade não estiver também nos movimentos sociais e na grande maioria dos cidadãos que com razão resistem às mudanças anti-populares, não haverá nada, nem governo, nem alguma liderança carismática, que seja capaz de apontar para alternativas esperançadoras.

A boa vontade é a última tábua de salvação que nos resta. A situação mundial é uma calamidade. Vivemos em permanente estado de guerra civil mundial. Não há ninguém, nem as duas Santidades, o Papa Francisco e o Dalai Lama, nem as elites intelectuais mundiais, nem a tecno-ciência que forneçam uma chave de encaminhamento global. Abstraindo os esotéricos que esperam soluções extra-terrestres, na verdade, dependemos unicamente da boa vontade de nós mesmos.

O Brasil reproduz, em miniatura, a dramaticidade mundial. A chaga social produzida em quinhentos anos de descaso com a coisa do povo significa uma sangria desatada. Nossas elites nunca pensaram uma solução para o Brasil como um todo mas somente para si. Estão mais empenhadas em defender seus privilégios que garantir direitos para todos. Está aqui a razão do golpe parlamentar que foi sustentado pelas elites opulentas que querem continuar com seu nível absurdo de acumulação, especialmente, o sistema financeiro e os bancos cujos lucros são inacreditáveis.

Por isso, os que tiraram a Presidenta Dilma do poder por tramoias político-jurídicas, ousaram modificar a constituição em questões fundamentais para a grande maioria do povo, como a legislação trabalhista e a previdência social, que visam, em último termo, desmontar os benefícios socias de milhões, integrados na sociedade pelos dois governos anteriores e permitir um repasse fabuloso de riqueza às oligarquias endinheiradas, absolutamente descoladas do sofrimento do povo e com seu egoísmo pecaminoso.

Contrariamente ao povo brasileiro que historicamente mostrou imensa boa vontade, estas oligarquias se negam saldar a hipoteca de boa vontade que devem ao país.

Se a boa vontade é assim tão decisiva, então urge suscitá-la em todos. Em momento de risco, no caso do barco-Brasil afundando, todos, até os corruptores se sentem obrigados a ajudar com o que lhes resta de boa vontade. Já não contam as diferenças partidárias, mas o destino comum da nação que não pode cair na categoria de um país falido.

Em todos vigora um capital inestimável de boa vontade que pertence à nossa natureza de seres sociais. Se cada um, de fato, quisesse que o Brasil desse certo, com a boa vontade de todos, ele seguramente conseguiria.