quinta-feira, 30 de abril de 2020

SUPERAR OS DELÍRIOS É CONDIÇÃO INEGOCIÁVEL


História Delírios de um esquizofrênico - História escrita por ...

A expressão “delírios de onipotência” foi bem aplicada na pena sábia e na voz profética de um pregador espiritual. Configura entendimento que possibilita melhor reconhecer de onde vêm os prejuízos amargados pela sociedade contemporânea, marcada por um ritmo insano e por um afã desmedido pelo lucro, alimentando apegos e sede de poder. Condutas fundamentadas em delírios de onipotência, responsáveis por tantos descompassos ambientais, sociais e políticos. É compromisso cidadão, que não é simples, contribuir para a identificação e superação das causas fatídicas desse colapso humanitário vivido na atualidade, inclusive no âmbito da saúde. Isso exige a desmontagem da intrincada engenharia que sustenta os delírios de onipotência. Mas a cultura contemporânea alimenta a ilusão da onipotência. Com sua dinâmica sedutora, essa ilusão tem força de dominação que configura mentes e corações, promovendo o obscurantismo, o autoritarismo e a eleição de relativismos como paradigma comportamental.

Superar os delírios de onipotência é condição inegociável e primordial para que a sociedade consiga ultrapassar o limiar de seu encarceramento autodestrutivo: dinâmicas que alimentam violências e perversidades em um mundo que tem tudo para ser justo e solidário. Desconstruir os delírios de onipotência muito contribuirá para vencer o adoecimento social, que alcança ápices nas pandemias, a exemplo da covid-19, mal que bate à porta de todos, igualmente. Delírio de onipotência é, pois, o nome sistêmico do processo de produção de diferentes enfermidades. E quando for superado o auge desta pandemia tão sacrificante, que exige o isolamento social, lamentavelmente a humanidade ainda não terá alcançado a imunidade de que necessita, radicada no reverso deste terrível mal: os delírios de onipotência.

A cura desse mal é um processo exigente e longo, com novas aprendizagens alicerçadas na interioridade. Um desafio para a humanidade acostumada com a espetacularização e o domínio das aparências, com a corrida desarvorada, o tempo todo, para se sobrepor aos outros, passando por cima de tudo e todos. Um processo que alimenta a ilusão de se achar “o dono” da palavra, das soluções. Reforça a pretensão humana de ter sempre razão, em tudo, sustentando o autoengano de se considerar mais importante que tudo e todos. Prevalece, assim, uma perspectiva narcísica, doentia. Mede-se o próprio valor pelo que se possui, pela capacidade de gastar dinheiro, pelo poder para dar ordens aos outros.

Percebe-se assim que as pandemias são apenas sintomas que causam medo. As doenças são enraizadas nos delírios de onipotência. Compreende-se, pois, que a esperança da superação da avassaladora pandemia da covid-19, que parou o mundo, e de tantas outras, depende de novos hábitos e práticas organizacionais, com a indispensável consideração da vida como dom precioso. Obviamente, a referência não é somente à própria vida, mas o bem maior de todos. Novas lógicas devem inspirar o mundo do trabalho, qualificar a convivência e promover uma espiritualidade que resgate o ser humano da pequenez – manifesta nas indiferenças em relação ao outro, que é irmão, nos partidarismos que levam a escolhas equivocadas e medíocres, no formalismo asséptico que contamina processos educativos, na cultura sem força para sustentar valores fundamentais à vida.

A condição cidadã desgastada se projeta nos delírios de onipotência, traduzidos de muitos modos nefastos, a exemplo da indiferença paralisante sobre a situação dos que mais sofrem. Essa indiferença é a que não deixa pessoas se envergonharem, mesmo convivendo com triste situação: enquanto poucos navegam em mar de dinheiro a grande maioria vive na miséria e precisa lutar, todos os dias, para sobreviver. Não menos grave é o gosto pelo autoritarismo, um produto sofisticado e perverso dos delírios de onipotência, dando espaço a psicopatias na política, na prática religiosa e nas relações interpessoais.

Os atentados contra a democracia, valor intocável para se conquistar equilíbrio em uma humanidade plural, são graves sinais de delírios de onipotência. Combater esses delírios, vírus mortais, exige humildade - valor espiritual determinante, mas ainda distante das virtudes do ser humano. Esse valor, para ser alcançado, pede nova aprendizagem: a espiritualidade. Um novo caminho, desafiador até para religiosos - mas é preciso trilhá-lo para superar as pandemias geradas e alimentadas por delírios de onipotência.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

UM MEDITAÇÃO SOBRE RESPONSABILIDADE.




RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL - Cepecaf

A responsabilidade é um valor na sociedade que precisa ser cultivado para crescer e produzir valores humanos importantes para a convivência das pessoas.

No direito, quando se fala em responsabilidade, logo se pode pensar em conduta ilícita praticada pelo presidente da República, o chamado crime de responsabilidade. Ou, na mais comum, a responsabilidade civil, mais ligada ao dia a dia dos brasileiros, o povo que com os pés em solo firme sustenta a nação. Agora, a responsabilidade do fornecedor de produtos ou serviços e muitas vezes na responsabilidade objetiva, aquela do Estado pelos atos praticados por seus agentes ou concessionários.

O que é então a responsabilidade? De início, é possível observar como a palavra tem o mesmo radical da palavra “resposta”. Podendo-se dizer então que a responsabilidade é a capacidade ou habilidade de responder a determinadas situações.

A Lei 1.079/50 define diversas condutas contrárias aos comandos constitucionais como sendo crimes de responsabilidade, demonstrando que, se o presidente não responde bem ao cumprimento da Constituição, ele deve ser afastado. A responsabilidade civil convoca todo o povo a responder pelos próprios atos. A responsabilidade do fornecedor de produtos ou serviços convoca-o a responder pelos produtos que fabricou ou serviços que prestou. E a responsabilidade objetiva impõe ao Estado responder pelos erros de seus agentes ou concessionários, mesmo que depois tenha ação de regresso contra estes, o Estado, responde.

Então, a responsabilidade é um valor que precisa ser cultivado e precisa crescer e assumir mais espaço na sociedade contemporânea.

Todos são convocados a responder quando ocorrem fatos atentatórios à sociedade brasileira. Isso é fundamental para a credibilidade da nação. Sua capacidade de resposta é algo que deve saltar aos olhos.

Um povo precisa ter responsabilidade, e essa capacidade de responder as questões que a vida apresenta deve ser transmitida às gerações para que o futuro não seja caótico.

Profetas não eram pessoas que adivinhavam o futuro e profetizavam suas visões ou adivinhações. Profetas eram pessoas com enorme capacidade de responder a questões atuais e preservar esta habilidade de resposta para o futuro.

Quando descobriram os papiros do Mar Morto houve grande agitação nas comunidades religiosas ocidentais. Lá, encontraram registros dos essênios demonstrando que a transmissão dos textos bíblicos, principalmente de Isaías, fora realizada fielmente por mais de mil anos.

Isaías foi um profeta que descreveu centenas de anos antes muitos acontecimentos da vida do Jesus dos cristãos. O mais importante com a descoberta dos papiros do mar morto, portanto, não foi a confirmação dos textos do profeta, nem o conteúdo de suas profecias que já eram conhecidas, foi a demonstração da responsabilidade de uma comunidade com a preservação do seu conhecimento, e a transmissão de sua capacidade de resposta a situações que enfrentaram de modo responsável.

Nos últimos tempos, muitos desafios de natureza ambiental, produzidos por humanos eram produzidos pela própria natureza e, recentemente, de saúde pública como a Covid-19, estão convocando, em todo o mundo, todas as pessoas a darem respostas, individuais e coletivas, que promovam as ideias de preservação e transmissão de memória destas respostas a gerações futuras.

terça-feira, 28 de abril de 2020

TRANSFORMAR O ÓCIO DEPRESSIVO E ÓCIO CRIATIVO

Para Domenico de Masi, disputa entre situação e oposição destruiu ...

Famoso no mundo inteiro por seus estudos dentro do campo da sociologia do trabalho, o italiano Domenico De Masi, autor de O ócio criativo, está confinado em casa, como milhares de pessoas, e está lendo, estudando e refletindo sobre o momento. Para ele, o coronavírus desnuda o desequilíbrio do planeta, mostra que podemos viver bem apesar de consumir menos e pensar mais, que podemos privilegiar o essencial e que a única coisa que pode nos ajudar é a cultura.

"Cada um pode aproveitar do ócio para crescer culturalmente: lendo, ouvindo música, escolhendo programas inteligentes na TV, dialogando pelo telefone ou pelo Skype com pessoas mais inteligentes e mais cultas", disse o sociólogo de 82 anos em entrevista por e-mail à Agência Estado.

Em seu livro mais recente no Brasil, Uma simples revolução (Sextante), o senhor apontava novos rumos para uma sociedade perdida. Quando as coisas pareciam não poder piorar mais, elas pioraram. Para onde ir agora? O que fazer?

A partir dos anos 80 do século passado, quando, com Reagan e a Thatcher, o neoliberalismo se tornou o pensamento único do Ocidente, houve uma dissociação entre os sociólogos e os economistas. Os economistas defendiam o mercado, baseados no entrechoque dos egoísmos, e difundiram a ideia de que o crescimento do Produto Interno Bruto pode ser infinito. Os sociólogos, por sua vez, afirmavam que o equilíbrio do planeta é extremamente instável e que nós o estamos colocando em risco.

Há muitos anos, Kenneth Building, um dos pais da teoria geral dos sistemas, escreveu: "Os que acreditam possível o crescimento infinito em um mundo finito ou são loucos ou são economistas". E o sociólogo Serge Latouche prosseguiu afirmando: "O drama é que já somos todos mais ou menos economistas. Para onde vamos? Iremos colidir diretamente contra um muro. Estamos a bordo de um bólido que não tem piloto, nem marcha à ré nem freios, que irá se espatifar contra os limites do planeta". O que já aconteceu no mundo todo com o coronavírus demonstra que os sociólogos estavam certos e que o neoliberalismo poderá nos levar à destruição do planeta.

Qual é o papel da introspecção e do ócio neste momento? Como podemos nos beneficiar disso? E como transformar o ócio depressivo em ócio criativo?
Nós nos acostumamos a ter muito espaço à nossa disposição e pouco tempo para usufruir dele. Os nossos dias estavam repletos de mil compromissos, muitos dos quais inúteis e sem sentido. Agora, ao contrário, fechados em casa para nos defender do coronavírus, temos muito tempo, mas somos obrigados a permanecer em um espaço mínimo: exatamente como os presidiários. A única coisa que pode nos ajudar é a cultura: literária, musical, científica, religiosa, artística.

Já em 1930, o grande economista Maynard Keynes imaginava que, no ano 2000, graças à tecnologia chegaríamos a trabalhar apenas 15 horas por semana e teríamos muito tempo livre. De que maneira ocupá-lo, como evitar o tédio, a droga, a violência? A depressão? Keynes também propunha: "Pela primeira vez desde a sua criação, o homem se encontrará diante do seu verdadeiro e constante problema: como empregar o tempo livre que a ciência e os juros compostos lhe proporcionaram para viver bem, de maneira agradável e com sabedoria?". E ele respondia que a única salvação está na cultura, porque a cultura exige tempo e aplicação, mas não precisa de espaço.

Essa é a única maneira pela qual podemos transformar o ócio depressivo em ócio criativo. Evidentemente, quando falo em cultura não entendo sempre e somente cultura acadêmica, entendo, para cada um de nós, um grau de cultura mais elevado do que o que possuímos. Cada um pode aproveitar do ócio para crescer culturalmente: lendo, ouvindo música, escolhendo programas inteligentes na TV, dialogando pelo telefone ou pelo Skype com pessoas mais inteligentes e cultas.

Em O ócio criativo, o senhor fala de um modelo no qual indivíduos e sociedades são educados para privilegiar a satisfação de necessidades radicais, como a introspecção, o convívio, a amizade, o amor e as atividades lúdicas. É mais ou menos o que estamos vivendo – não fosse o fator da urgência de nos protegermos de um inimigo invisível?
O coronavírus está nos ensinando a dispensar o supérfluo, a reconhecer e a privilegiar o essencial. Está nos ensinando que o consumismo é um vírus pior ainda, que nos faz perder o sentido do necessário para nos impor o supérfluo. Está nos ensinando que as necessidades radicais de introspecção, amizade, amor, jogo, beleza e criatividade são muito mais importantes do que as necessidades alienadas de poder e dinheiro. Está nos ensinando que, para satisfazer as necessidades radicais, não precisamos ter dinheiro, mas de sentido de humanidade.

É possível que no fim desta pandemia estejamos ainda mais ociosos (especialmente pela falta de emprego). Como usar, então, o ócio e a criatividade a nosso favor, mesmo diante do desânimo e da depressão? É a criatividade que pode nos salvar e nos indicar caminhos? Criatividade é algo que se aprende?

Os gênios são raros porque possuem uma grande imaginação e uma grande consistência. Entretanto, cada um de nós, sem ser um gênio, tem um bom grau de criatividade em algum setor específico: teórico ou prático. Precisamos descobrir em que setor somos mais criativos e cultivar este setor específico. Esta pandemia nos demonstrou que podemos viver bem apesar de consumirmos menos e refletirmos mais.

O que esta crise histórica nos ensina? Sairemos dela como entramos? E como evitar um dano irreparável?Há muitos anos, Dominique Belpomme, especialista mundial em saúde ambiental, escreveu: "Há cinco cenários possíveis para o desaparecimento da humanidade: o suicídio violento do planeta, por exemplo uma guerra atômica; o surgimento de doenças graves, como uma pandemia infecciosa ou uma esterilidade que determine um declínio demográfico irreversível; o esgotamento dos recursos naturais; a destruição da biodiversidade; e, por fim, modificações extremas no nosso ambiente, como o desaparecimento do ozônio estratosférico e o agravamento do efeito estufa". Hoje com o novo coronavírus, nós estamos experimentando uma pandemia infecciosa, mas, ao mesmo tempo, não paramos de destruir a biodiversidade, de esgotar os recursos naturais, de causar o desaparecimento do ozônio e agravar o efeito estufa. Tudo isso porque perseguimos um modelo de vida baseado no frenesi do excesso que o neoliberalismo legitima.

A revista Nature publicou um artigo que demonstra a relação direta existente entre poluição do planeta e pandemia. As zonas mais poluídas (como na Itália, a região da Lombardia), são as que atraem muito mais o vírus, transmitindo-o mais rapidamente, e tornando-o mais invulnerável. Portanto, o vírus está nos ensinando a não poluir. Mas será que estamos aprendendo?



Domenico De Masi

segunda-feira, 27 de abril de 2020

É PRECISO CONTER COM URGÊNCIA, O TRIUNFO DE NULIDADES.


O triunfo das nulidades. Por Maria Helena RR de Sousa - Chumbo Gordo

A dolorosa visão de cenários desfigurados e perversos na sociedade contemporânea faz brotar forte indagação: há triunfo das nulidades? Pode parecer uma perspectiva dramática ou pessimista, mas é real. Não é exagero constatar que esse triunfo, lamentavelmente, está em curso. Considerar, cotidianamente, os desatinos que ameaçam a humanidade e a conduzem, com velocidade, rumo a precipícios, é uma urgência. Afinal, muitas vezes não é possível retornar do fundo do abismo, ou é necessário longo prazo para a recuperação. Ao mesmo tempo, as urgências humanitárias e civilizatórias exigem respostas imediatas. Não se pode mais suportar pesos, sofrimentos e descompassos que atingem frontalmente o bem comum e ferem a humanidade. Por isso mesmo, é preciso mais cuidado e responsabilidade para mudar essa realidade, o que exige dos cidadãos e cidadãs a remodelação de atitudes - de hábitos domésticos até decisões em instâncias que impactam os muitos processos da vida.

Vê-se o crescimento da indiferença, acompanhado de descuido proposital e perverso na vivência de valores, no respeito a princípios, o que torna as pessoas potenciais avalanches demolidoras, umas passando por cima das outras. O resultado: a devastação moral, física e humanitária com altos preços a pagar. Diante disso, é cada vez mais atual a expressão iluminada de Rui Barbosa, ainda no início do século passado, com força de repreensão, ao dizer que se tinha vergonha de ser honesto, de tanto ver triunfar as nulidades, prosperar a desonra, o crescimento da injustiça, com o agigantar-se dos poderes nas mãos dos maus. Assombra, hoje, a naturalidade com que o mal é aceito, destruindo, sorrateiramente, o indispensável humanismo e a envergadura moral necessária ao exercício de responsabilidades.

Todos os processos da vida pessoal, familiar, profissional, religiosa e cidadã estão contaminados pela banalização do mal. Para além da abordagem filosófica - se o mal é dotado de um ser - considera-se que o pensamento moderno questiona a sua existência. Também por isso, a humanidade paga na própria pele os seus efeitos desastrosos. O mal faz troças da racionalidade humana que, sozinha, não consegue enfrentá-lo e reverter quadros, mudar situações e requalificar indivíduos. Mais que um problema, o mal é um mistério a ser afrontado, com humildade e atenção, para, especialmente, o ser humano não se tornar agente da maldade e seguir na direção oposta à condição de cada pessoa: a dignidade maior de ser filho e filha de Deus - que é bom, porque é amor.

As diferentes corrupções que enlameiam a sociedade têm suas raízes no mal. Sua perigosa banalização vai ganhando, avassaladoramente, a regência da vida. Com isso, o mal passa a definir as dinâmicas da sociedade, com força de convencimento, para fazer, por exemplo, que se considere verdade o que é mentira. Narrativas do Evangelho a respeito da tentação sofrida por Jesus no deserto sublinham a fragilidade da condição humana e apontam o caminho experiencial de sua superação. Essa perspectiva merece atenção de toda sociedade para, seguindo o exemplo de Jesus, se debelar o crescimento assustador do poderio do mal. Ao ser desconsiderado, o mal se apresenta como única alternativa, desvirtuando a verdade e o amor, comprometendo a paz social e a justiça. A força do mal é tão incidente que perverte até mesmo religiosos, distanciando-os da conduta esperada dos que professam a fé. Quem crê, autenticamente, pauta a própria vida, seus atos e momentos na verdade e no amor, desdobrados em solidariedade fraterna e em testemunho de uma realidade que ultrapassa o tempo, o espaço e as ideias - o Reino de Deus. Vive, neste tempo, o sonho e a luta para efetivar as lógicas do bem.

Por onde caminhará, com a banalização do mal, a defesa da justiça? Os argumentos advocatícios passam a ser tarefa irracional, com agressividade e até sem o mínimo senso de civilidade. Permite-se defender o indefensável, fazer valer a mentira como verdade. A força do mal seduz os operadores da sociedade, nos seus diversos campos de ação e produção. Faz valer a lógica da ganância e do lucro, com justificativas que comprovam o poder do mal. As instituições ficam à mercê de interesses espúrios, seus atores e irresponsáveis, incapacitados.


O tecido humanístico, carcomido pelo mal, fortalece lógicas que negam a preciosidade do dom da vida. E a cidadania sofre, pois se vê privada da qualidade indispensável de urbanidade. Cada um se reveste de uma condição voraz e, permitindo-se passar por cima de tudo e de todos, provoca o caos social e político. A sociedade está desafiada a combater a forma como tem assimilado o mal, a lutar por investimentos ético-morais em princípios e valores, por práticas que amansem o coração humano. Assim, será alcançada a competência exigida neste momento da história, único caminho para se conter, com urgência, o triunfo de nulidades.

domingo, 26 de abril de 2020

AFINAL, POR QUE O CRIADOR DESCANSOU.


É preciso se desligar; entenda por que é importante tempo para ...

Toda sexta-feira à noite começa o shabat para a tradição judaica. Shabat é o conceito que propõe descanso ao final do ciclo semanal de produção, inspirado no descanso divino, no sétimo dia da Criação.

Muito além de uma proposta trabalhista, entendemos a pausa como fundamental para a saúde de tudo o que é vivo. A noite é pausa, o inverno é pausa, mesmo a morte é pausa. Onde não há pausa, a vida lentamente se extingue.

Para um mundo no qual funcionar 24 horas por dia parece não ser suficiente, onde o meio ambiente e a terra imploram por uma folga, onde nós mesmos não suportamos mais a falta de tempo, descansar se torna uma necessidade do planeta. Hoje, o tempo de 'pausa' é preenchido por diversão e alienação. Lazer não é feito de descanso, mas de ocupações 'para não nos ocuparmos'. A própria palavra entretenimento indica o desejo de não parar. E a incapacidade de parar é uma forma de depressão. O mundo está deprimido e a indústria do entretenimento cresce nessas condições. Nossas cidades se parecem cada vez mais com a Disneylândia. Longas filas para aproveitar experiências pouco interativas. Fim de dia com gosto de vazio. Um divertido que não é nem bom nem ruim. Dia pronto para ser esquecido, não fossem as fotos e a memória de uma expectativa frustrada que ninguém revela para não dar o gostinho ao próximo.

Entramos no milênio num mundo que é um grande shopping. A Internet e a televisão não dormem. Não há mais insônia solitária; solitário é quem dorme. As bolsas do Ocidente e do Oriente se revezam fazendo do ganhar e perder, das informações e dos rumores, atividade incessante. A CNN inventou um tempo linear que só pode parar no fim. Mas as paradas estão por toda a caminhada e por todo o processo. Sem acostamento, a vida parece fluir mais rápida e eficiente, mas ao custo fóbico de uma paisagem que passa. O futuro é tão rápido que se confunde com o presente. As montanhas estão com olheiras, os rios precisam de um bom banho, as cidades de uma cochilada, o mar de umas férias, o domingo de um feriado.

Nossos namorados querem 'ficar', trocando o 'ser' pelo 'estar'. Saímos da escravidão do século XIX para o leasing do século XXI - um dia seremos nossos? Quem tem tempo não é sério, quem não tem tempo é importante. Nunca fizemos tanto e realizamos tão pouco. Nunca tantos fizeram tanto por tão poucos.

Parar não é interromper. Muitas vezes continuar é que é uma interrupção. O dia de não trabalhar não é o dia de se distrair - literalmente, ficar desatento. É um dia de atenção, de ser atencioso consigo e com sua vida. A pergunta que as pessoas se fazem no descanso é 'o que vamos fazer hoje?' - já marcada pela ansiedade. E sonhamos com uma longevidade de 120 anos, quando não sabemos o que fazer numa tarde de domingo.

Quem ganha tempo, por definição, perde. Quem mata tempo, fere-se mortalmente. É este o grande 'radical livre' que envelhece nossa alegria - o sonho de fazer do tempo uma mercadoria. Em tempos de novo milênio, vamos resgatar coisas que são milenares. A pausa é que traz a surpresa e não o que vem depois. A pausa é que dá sentido à caminhada. A prática espiritual deste milênio será viver as pausas. Não haverá maior sábio do que aquele que souber quando algo terminou e quando algo vai começar. Afinal, por que o Criador descansou? Talvez porque, mais difícil do que iniciar um processo do nada, seja dá-lo como concluído.

sábado, 25 de abril de 2020

COVID 19 - VAMOS SUPERAR ISTO JUNTOS


COVID-19: Your questions answered on the coronavirus outbreak ...

A pandemia de coronavírus está confundindo e assustando centenas de milhões de pessoas. Isso não é uma surpresa. Muitas pessoas ao redor do mundo estão doentes, e muitas outras morreram. A menos que a situação mude drasticamente, muitas mais adoecerão e morrerão em todo o mundo.

Esta crise levanta sérias questões médicas, éticas e logísticas. Mas levanta questões adicionais para as pessoas de fé. Por isso, gostaria de oferecer alguns conselhos da tradição cristã, da espiritualidade inaciana e da minha própria experiência.

Resista ao pânico

Isso não significa que não haja nenhum motivo para se preocupar ou que devamos ignorar os bons conselhos dos profissionais médicos e dos especialistas em saúde pública.

Mas pânico e medo não vêm de Deus. Calma e esperança, sim. E é possível responder a uma crise com seriedade e deliberação, mantendo um senso interior de calma e de esperança.

Inácio Loyola, o fundador dos jesuítas, costumava falar sobre duas forças em nossas vidas interiores: uma que nos afasta de Deus, que ele rotulou de mau espírito e que “causa uma ansiedade atormentadora, entristece e cria obstáculos. Desse modo, perturba as pessoas com falsas razões destinadas a impedir seu progresso”.

Soa familiar? Não dê crédito a mentiras ou rumores, nem ceda ao pânico. Confie no que os especialistas médicos lhe dizem, não naqueles que temem mais. Há uma razão pela qual Satanás é chamado de “Príncipe da Mentira”.

O pânico, ao confundir e assustar você, afasta-o da ajuda que Deus quer lhe dar. Ele não vem de Deus. O que vem de Deus? Santo Inácio nos diz: o Espírito de Deus “desperta coragem e força, consolação, inspiração e tranquilidade”. Portanto, confie na calma e na esperança que você sente. Essa é a voz a ser ouvida.

“Não tenham medo!”, como disse Jesus muitas vezes.

Não demonize


Outro dia, um amigo me disse que, quando um chinês idoso entrou em um vagão do metrô na cidade de Nova York, o vagão esvaziou, enquanto as pessoas começaram a gritar contra ele, culpando o seu país por espalhar o vírus.

Resista à tentação de demonizar ou de criar um bode expiatório, que aumenta em tempos de estresse e de escassez. A Covid-19 não é uma doença chinesa; não é uma doença “estrangeira”. Não é “culpa” de ninguém.

Da mesma forma, as pessoas que são infectadas não têm culpa. Lembre-se de que Jesus foi perguntado sobre um homem cego: “Quem pecou, para que este homem nascesse cego?”. A resposta de Jesus: “Ninguém” (Jo 9,2). A doença não é uma punição. Então não demonize e não odeie.

Muitas coisas foram canceladas por causa do coronavírus. O amor não é uma delas.

Cuide dos doentes

Esta pandemia pode ser um longo fardo; alguns dos nossos amigos e familiares podem ficar doentes e talvez morrer. Faça o que puder para ajudar os outros, especialmente os idosos, os deficientes, os pobres e os isolados. Tome as precauções necessárias; não seja imprudente e não se arrisque a espalhar a doença, mas também não esqueça o dever cristão fundamental de ajudar aos outros. “Eu estava doente, e você veio me visitar”, disse Jesus (Mt 25).

E lembre-se de que Jesus viveu durante um tempo em que as pessoas não tinham acesso nem aos cuidados médicos mais rudimentares; portanto, visitar os doentes era tão perigoso, senão até mais, do que hoje. Parte da tradição cristã é cuidar dos doentes, mesmo com algum custo pessoal.

E não feche seu coração aos pobres e àqueles que não têm nenhum serviço de saúde, ou o têm de modo limitado. Os refugiados, os sem-teto e os migrantes, por exemplo, sofrerão ainda mais do que a população em geral. Mantenha seu coração aberto para todos os necessitados. Não deixe sua consciência ser infectada também.

Reze

As Igrejas em todo o mundo estão fechando; missas e outros serviços paroquiais estão sendo cancelados por muitos bispos. Essas são medidas prudentes e necessárias, voltadas a manter as pessoas saudáveis.

Mas elas têm um custo: para muitas pessoas, isso retira uma das partes mais consoladoras das suas vidas – a missa e a Eucaristia – e as isola ainda mais da comunidade em um momento em que elas mais precisam de apoio.

O que se pode fazer? Bem, existem muitas missas televisionadas e transmitidas ao vivo, assim como outras transmitidas pelo rádio. Mas, mesmo que você não consiga encontrar uma, você pode rezar por conta própria. Ao fazê-lo, lembre-se de que você ainda faz parte de uma comunidade.

Há também a longa tradição na nossa Igreja de fazer uma “comunhão espiritual”, quando, caso não possa participar pessoalmente da missa, você se une a Deus em oração.

E seja criativo. Você pode meditar o Evangelho do domingo por conta própria, consultar um comentário bíblico sobre as leituras, reunir sua família para conversar sobre o Evangelho ou ligar para os amigos e compartilhar suas experiências de como Deus está presente em você, mesmo em meio a uma crise.

Os cristãos perseguidos na Igreja primitiva rezavam e compartilhavam sua fé nas catacumbas, e nós podemos fazer o mesmo. Lembre-se de que Jesus disse: “Onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18,20). Lembre-se também de que a Igreja não é um edifício. É a comunidade.

Confie que Deus está com você


Muitas pessoas, especialmente as doentes, podem sentir uma sensação de isolamento que agrava seu medo. E muitos de nós, mesmo não estando infectados, conhecerão pessoas que estão doentes e até podem morrer. Então a maioria perguntará naturalmente: por que isso está acontecendo?

Não existe uma resposta satisfatória para essa pergunta, que, em sua essência, é a questão de por que o sofrimento existe, algo que santos e teólogos ponderaram ao longo dos séculos. No fim das contas, é o maior dos mistérios. E a pergunta é: você pode acreditar em um Deus que você não entende?

Ao mesmo tempo, sabemos que Jesus entende o nosso sofrimento e nos acompanha do modo mais íntimo. Lembre-se de que, durante seu ministério público, Jesus passou muito tempo com os doentes. E, antes da medicina moderna, quase qualquer infecção poderia matá-lo. Assim, a expectativa de vida era curta: apenas 30 ou 40 anos. Em outras palavras, Jesus conhecia o mundo da doença.

Jesus, então, entende todos os medos e preocupações que você tem. Jesus entende você, não apenas porque ele é divino e entende todas as coisas, mas porque ele é humano e experimentou todas as coisas. Vá ao encontro d’Ele em oração. E confie que Ele ouve você e está com você.

Confie nas orações também. Vamos superar isto juntos, com a ajuda de Deus.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

INEGÁVEIS E SABOROSAS DIFERENÇAS.

Violência contra a mulher no Brasil registra um caso de agressão a ...


Há tempos circula nas redes sociais a frase: “Não existe mulher que gosta de apanhar; o que existe é mulher humilhada demais para denunciar, machucada demais para reagir, com medo demais para acusar, pobre demais para ir embora.” Gosto da frase apesar de sua alguma banalidade. Gosto porque me parece que, de forma primária, diz a verdade sem sombras nem ocultamentos.

Cresci na geração que glorificava frases machistas do tipo “Lugar de mulher é na cozinha” ou “Quando você bate em uma mulher você pode não saber por que está batendo, mas ela sabe por que está apanhando”. Trata-se da geração que brindava por “saúde e filhos machos” e considerava a mulher um objeto de propriedade do pai, do irmão mais velho, depois do marido, do filho etc., sem vida própria, vontade própria ou qualquer laivo de independência.

Por isso, parece-me de extrema oportunidade o tema da redação da prova do Enem sobre “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Questão extremamente atual, instigante e que obriga os estudantes que se dispõem a fazer o percurso da universidade a tomar consciência de que a violência contra a mulher no Brasil só faz crescer. Apesar de alguns avanços, como as delegacias da mulher, a Lei Maria da Penha e outros, é fato que continuam acontecendo espancamentos, violações, estupros e toda classe de violência sexual que diariamente acometem as mulheres em todo o nosso território nacional. Pesquisas comprovam que a maior parte das agressões ocorre dentro do lar, e são cometidas por esposos, companheiros ou namorados, ou seja, pessoas da confiança das agredidas.

É sintomático da existência de um ainda vigoroso machismo em nossa população o fato de o tema ter causado tanta polêmica, invadido as redes sociais com críticas irritadas e agressivas. Muitos protestam contra o que dizem ser uma forma de tornar a mulher uma “vítima privilegiada” da violência. Parecem não dar-se conta de que se homens e mulheres e até mesmo animais são suscetíveis de sofrer violência tornando-se, portanto, igualmente dignos da proteção da Lei, as mulheres têm contra si vários elementos que tornam a violência que sofrem mais frequente e por isso mesmo mais lamentável. Padecem, além e acrescentado à agressão, do fato de possuírem menor força física, ou dependerem financeiramente do agressor. Os agressores contam também com a cumplicidade e o pacto informal de silêncio das instituições e da sociedade quando o assunto é violência doméstica ou feminicídio. Ditos como “em briga de marido e mulher ninguém põe a colher” confirmam agressor e vítima no papel que desempenham no triste cenário da violência sexual que continua acontecendo em nosso país.

Em todo caso, a prova de redação incomodou. O tom de alguns comentários ouvidos e lidos após a prova era de surpresa, como se uma realidade presente em muitos lares, bares e locais de trabalho nunca tivesse existido, fosse uma pequena desavença doméstica sobre a qual não seria educado falar. Ou ainda, apenas uma bandeira de movimentos de gênero ou políticos

Ora, independentemente das provas do Enem, a violência contra qualquer ser humano, animal ou natureza não é questão de ideologia. Trata-se de uma violência contra a humanidade, aos direitos humanos, à civilização, aos direitos fundamentais. Está previsto no edital do próprio exame que “[...] será atribuída nota 0 (zero) à redação: [...] que desrespeite os direitos humanos...” A violência contra a mulher é a violação de um direito humano e, portanto, intrinsecamente perversa e reprovável. Mais: trata-se de violência cometida contra a mulher, independentemente de sua ideologia, posição política, configuração ideológica. Atirar sobre o tema a perspectiva do feminismo como ideologia reducionista não corresponde à realidade e não é expressão da verdade.

Na realidade, a questão motivadora da redação na prova é detonadora de toda a celeuma. Trata-se da citação da conhecida filósofa e escritora francesa Simone de Beauvoir: "Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminine."

Simone de Beauvoir é uma das pensadoras mais conhecidas da contemporaneidade. E não apenas nem principalmente por ser a companheira do famoso e ilustre filósofo Jean Paul Sartre. Com luz própria e uma personalidade fulgurante, Simone abriu caminho por entre a machista sociedade francesa e europeia com seu livro “O segundo sexo”, chamou sobre si os holofotes do questionamento que faria surgir um dos movimentos mais importantes do século XX, o movimento feminista.

Muitas mulheres certamente não se alinham inteiramente com o ideário de Simone de Beauvoir.  Mas não posso deixar de reconhecer seu valor intelectual e o largo e fascinante caminho que abriu para todas as mulheres do mundo, espécie ainda medrosa, envergonhada e intimidada pela discriminação de que sempre foi objeto. O fato de seus textos serem acessíveis aos jovens de ambos os sexos que hoje se preparam para entrar na universidade é extremamente positivo. São jovens que, procurando redigir um texto claro e inteligível sobre o tema, são convidados a não confirmar na sociedade em que vivem e à qual amanhã presidirão chavões lamentávei.

Mulher não gosta de apanhar. Como todo ser vivo mulher gosta de carinho, de amor e de respeito. A diferença é que cada vez mais ela está aprendendo a se defender e a demonstrar que se recusa a enquadrar-se nos estereótipos que lhe foram destinados. Trata-se de uma das maiores revoluções – senão a maior – que está em curso em nossos tempos. Quem sabe uma sociedade onde a mulher tenha um papel mais relevante poderá ser menos violenta, menos injusta, menos cruel? A história dirá. Enquanto isso, leiamos Beauvoir. Mas não só ela. Também todos e todas que na história mais recente ou mesmo mais antiga refletiram sobre a igualdade de direitos entre mulher e homem, no coração de suas inegáveis e saborosas diferenças.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

FILOSOFAR É BUSCAR A VERDADE.


Qué es Filosofar? » Su Definición y Significado [2020]

Nunca soube que existisse o Dia do filósofo. Descobri recentemente, quando soube que no dia 16 de agosto festejam-se aqueles e aquelas que escolheram em suas vidas amar a Sabedoria. Sim, pois é isso que, no grego, significa a palavra filosofia: amor pela sabedoria.

A origem da palavra está na Antiga Grécia, berço da civilização ocidental, onde, em meio à riquíssima mitologia que povoava o panteão de deuses e deusas, alguns começaram a perguntar-se: Quem sou eu? De onde vim e para onde vou? Qual a origem do mundo?

Interpretada comumente como o marco do fim da era do mythos, com o apogeu do logos e da razão, a filosofia, na verdade, desde o início conjugou ambos. Suas origens se encontram em uma interpretação des-sacralizada dos mitos cosmogônicos, difundidos pelas diversas religiões. Para os que desejariam uma filosofia completamente “vacinada” contra o mito, aí está uma pedra de tropeço intransponível.

Segundo Aristóteles e Platão, a matéria inicial da reflexão dos filósofos foram os mitos. Estes se tornaram campo comum da reflexão da religião e da filosofia, revelando que a pretensa separação entre esses dois modos de o ser humano interpretar a realidade não é tão nítida como aparentemente se julga.

Nem só razão nem só mitologia, diz a amiga sabedoria que já desde o tempo de Tales de Mileto, 5000 anos antes de Cristo, nos ensina que o mundo está cheio de deuses. E Platão viria a ser aquele que encontrou a raiz de seus mais belos pensamentos pela meditação dos mitos. Para a filosofia antiga, portanto, o mito dá o que pensar, provoca a razão e a faz produzir sabedoria. A meditação e a interpretação dos mitos serão, então, o que conduzirá o filósofo em sua busca da verdade.

Pois disso se ocupa o filosofar: buscar a verdade. Não poderia haver sabedoria se não houvesse verdade. O bom e o belo são outros nomes da verdade. Verdade que não se rende ao pensamento humano com a evidência laboratorialmente controlada do empirismo, mas vai des-velando seus segredos com o exercício espiritual da busca atenta e amante da filosofia. A filosofia acaba por ser, assim, a porta de entrada para pensar o mistério.

Ao pensar os mitos, o filósofo toca na universalidade das intuições e das experiências ancestrais, referindo a sua pertença comum e originária ao gênero humano. Por isso, os mitos são lugar privilegiado do enraizamento das pessoas e dos povos, conectando-os a seu passado. Tornam-se assim o fundamento da cultura humanista. Contemplando com atenção o mito, o filósofo vai se aproximando da raiz das recorrências humanas, o que lhe permitirá então tocar nas essências, elaborar definições, construir sínteses, montar harmoniosas arquiteturas de conhecimento.

Em seus tempos iniciais, a filosofia se auto compreendia como responsável por tudo que era cognoscível e, portanto, passível de ser conhecido. Sob sua égide repousava o conhecimento humano em todas as suas especialidades, e até hoje a ela devem sua origem enquanto campos do pensar e do saber: os valores - a ética; a beleza - a estética; a busca da verdade – a lógica.

O tempo passou, o mundo mudou e a filosofia também. Fragmentou-se em muitas especialidades e muitos genitivos. No entanto, ainda é um marco de oposição ao desenraizamento e à atomização da sociedade moderna, alienada justamente porque perdeu o contato com o passado, permanecendo degenerada na busca e fixação em ídolos.

Enquanto houver filósofos apaixonados pela verdade e amigos da sabedoria, podemos ter esperança em que o que constitui o humano não se perdeu. Por isso, é digno e justo saudar e louvar aqueles que hoje continuam cultivando essa amizade e esse amor, impedindo nossa desumanização.

terça-feira, 21 de abril de 2020

A TERRA SENTIU OS GOLPES E REAGIU.


Ecologia e Espiritismo - Centro Paz e Amor


Mais e mais cresce a consciência de que a Terra e a Humanidade tem um destino comum, pois formam uma única e complexa unidade. Foi o que os astronautas da Lua ou de suas naves espaciais nos testemunharam. Uma porção dela é inteligente e consciente: são os seres humanos.

Desde a mais alta antiquidade a Terra era vista como a Grande Mãe, viva e geradora de todo tipo de vida. Modernamente, cientistas vindos das ciências da vida e do universo comprovaram, empiricamente, que ela não só possui vida, mas ela mesma é viva. Emerge como um Ente vivo, um superorganismo que se comporta como um sistema que combina todos os fatores e as energias cósmicas de tal forma que sempre se mantém viva e que produz permanentemente as mais diversas formas de vida. Chamam-na de Gaia, nome grego para designar a Terra como um ser vivo.

Ao largo de sua história, o ser humano entreteve, dito de forma sumária, três tipos de relação para com a Terra e a natureza. O primeiro foi de interação: interagia harmonicamente e retirava o necessário para viver. O segundo foi a intervenção quando, há cerca de dois milhões de anos, surgiu o homo habilis que usava instrumentos para intervir na natureza e garantir melhor seu sustento.Tudo culminou no neolítico, há 10-12 mil anos, quando se implantou a agricultura com o manejo de sementes e de espécies também de animais. O terceiro foi a agressão típica dos tempos modernos. Usando todo um maquinário até autômatos e inteligência artificial, o ser humano montou uma sistemática agressão à natureza para extrair dela todos os recursos para sua comodidade e também para acumulação de riqueza material. Essa guerra de agressão foi levada a todas as frentes: no solo, sub-solo, no ar e nos oceanos. Ela se travou também entre os seres humanos que são a parte da Terra com inteligência e consciência.

Michel Serres, filósofo que frequentou várias áreas do saber, escreveu em 2008 um livro com o título “Guerra mundial”. Descreve a história dramática das agressões humanas a todos os ecossistemas e principalmente as guerras entre os próprios seres humanos. Segundo os dados aduzidos, a partir de três mil anos antes de nossa era até o presente foram mortos em conflitos, três bilhões e oitocentos milhões de seres humanos. Só no século XX foram 200 milhões. Inauguramos, segundo alguns cientistas, uma nova era geológica, o antropoceno e o necroceno: o ser humano é a maior ameaça à vida na Terra; com os meios de destruição que maneja mostrou-se uma máquina de morte (necroceno). Em função disso em 2019 investiram-se um trilhão e 822 bilhões de dólares em armas letais, totalmente ineficazes e ridículas face ao invisível coronavírus.

A Terra sentiu os golpes e não deixou de reagir: pelo aquecimento global, pelos tsunamis, pelos eventos extremos, pelas longas estiagens ou as prolongadas nevascas, pelos degelos e pelo caos climático.

A reação, verdadeira represália da Terra, vem pelos vírus (existem cerca de 200 mil) cada vez mais frequentes e violentos, como o zika, a chicungunya, o ebola, o SARS, a gripe suína e aviária e outros. Eles estavam tranquilos em seus habitats. Mas o desmatamento feroz, a erosão da biodiversidade e urbanização crescente do planeta,a criação industrial de animais, fizeram com que perdessen seus hábitats e buscassem outros, passando de animais aos seres humanos. Eles não vivem por si; precisam de células hospedeiras para se reproduzir. Assim é com o atual coronavírus.

A hipótese que proponho é que, neste momento, os papéis se inverteram. Sendo um superorganismo vivo, a Terra reage, contra-ataca e faz a sua revanche contra a Humanidade. “nunca maltratamos e ferimos a nossa Casa Comum como nos últimos dois séculos".

Agora, irada. Gaia brada: “Basta! Sou mãe generosa, mas tenho limites vitais intransponíveis. Preciso dar severas lições a esses meus filhos e filhas rebeldes e violentos. E se não aprenderam a interpretar os sinais que lhes enviei e não me respeitarem e cuidarem como sua Mãe, posso não mais querê-los sobre meu solo”.

Penso que o Covid-19 é um desses sinais, ainda não o derradeiro, mas o suficiente letal a ponto de abalar os fundamentos do nosso tipo de civilização. Biólogos temem que podemos ser vítimas do assim chamado Next Big One (NBO), aquele último tão letal e inatacável, capaz de pôr fim à espécie humana.

O coronavírus nos lança um alerta. Como disse o sociólogo e ecólogo Bellamy Fosters da Universidade de Oregon:”A sociedade terá que ser reconstituída sobre uma base radicalmente nova. A escolha que temos diante de nós é nua e crua: a ruína ou a revolução”.

Na mesma linha de pensamento afirma a física nuclear e ecologista indiana Vandana Shiva:”Um pequeno vírus pode nos ajudar a dar um grande passo à frente para fundar uma nova civilização planetária ecologista, baseada na harmonia com a natureza. Ou, então, podemos continuar vivendo a fantasia do domínio sobre o planeta e continuar avançando até a próxima pandemia. E, por último, até a extinção. A Terra seguirá, conosco ou sem nós”.