quarta-feira, 30 de setembro de 2020

QUANDO SE ABRE MÃO DAQ LIBERDADE.

 




Quando se abre mão da liberdade, demite-se a consciência crítica, omite-se perante os desmandos do poder, acovarda-se agasalhado pelo nicho de uma suposta proteção superior. Foi assim na Igreja da Inquisição, na ditadura estalinista, no regime nazista. É assim a xenofobia ianque, o terrorismo islâmico e os segmentos religiosos que dão mais valor ao diabo que a Deus, e prometem livrar os fiéis de males através da vulgarização de exorcismos, curas milagrosas e outras panaceias para enganar os incautos.

Em nome de uma ação missionária, milhões de indígenas foram exterminados na colonização da América Latina. Em nome da pureza ariana, o nazismo erigiu campos de extermínio. Em nome do socialismo, Stalin ceifou a vida de 20 milhões de camponeses. Em nome da defesa da democracia, o governo dos EUA semeia guerras e, no passado recente, implantou na América Latina sangrentas ditaduras.

Convencer fiéis a abdicarem de recursos científicos, como a medicina, e de boa parte da renda familiar para sustentar supostos arautos do divino é explorar os efeitos sem alertar para as causas. Já que, no Brasil, milagre é o povão ter acesso ao serviço de saúde de qualidade, haja engodo religioso travestido de milagre!

A religião do medo alardeia que só ela é a verdadeira. As demais são heréticas, ímpias, idólatras ou demoníacas. Assim, reforçam o fundamentalismo, desde o bélico, que considera inimigo todo aquele que não reza pelo seu livro sagrado, até o sutil, como o que discrimina os adeptos de outras tradições religiosas e sataniza os homossexuais e os ateus.

A modernidade conquistou o Estado laico e separou o poder político do poder religioso. Porém, há poderes políticos travestidos de poder religioso, como a convicção ianque do “destino manifesto”. E há poderes religiosos que se articulam para ocupar os espaços políticos.

Até o mercado se deixa impregnar de fetiche religioso ao tentar nos convencer de que devemos ter fé em sua “mão invisível” e prestar culto ao dinheiro. Como afirmou o papa Francisco em Assis, a 5 de junho de 2013, ” se há crianças que não têm o que comer (…) e uns sem abrigo morrem de frio na rua, não é notícia. Ao contrário, a diminuição de dez pontos na Bolsa de Valores constitui uma tragédia”.

Uma religião que não pratica a tolerância nem respeita a diversidade religiosa, e se nega a amar quem não reza pelo seu Credo, serve para ser lançada ao fogo. Uma religião que não defende os direitos dos pobres e excluídos é, como disse Jesus, mero “sepulcro caiado”. E quando ela enche de belas palavras os ouvidos dos fiéis, enquanto limpa seus bolsos em flagrante estelionato, não passa de um “covil de ladrões”.

O critério para se avaliar uma verdadeira religião não é o que ela diz de si mesma. É aquela cujos fiéis se empenham para que “todos tenham vida, e vida em abundância” (João 10, 10) e abraçam a justiça como fonte de paz.

Deus não quer ser servido e amado em livros sagrados, templos, dogmas e preceitos. E sim naquele que foi “criado à Sua imagem e semelhança”: o ser humano, em especial aqueles que padecem fome, sede, doença, abandono e opressão (Mateus 25, 36-41).

terça-feira, 29 de setembro de 2020

"INVENTANDO A RODA."





Não se está apenas vivendo uma época de mudanças, mas uma grande e radical mudança de época. Essa expressão, resultado de análises filosófico-antropológicas dedicadas à contemporaneidade, faz referência às revoluções sem precedentes que estão reconfigurando a humanidade. No contexto das aceleradas e profundas transformações, pensa-se que as muitas narrativas capazes de dar sentido ao mundo ruíram, e ainda não teria surgido nenhuma outra para ocupar as lacunas existentes. Muitas perguntas permanecem sem respostas, mesmo com tantas vozes que se consideram autoridades no esclarecimento de interpelações. Não raramente, essas vozes promovem uma dissonância que atormenta, atrasa processos, gera confusões, alimentando relativizações que desconsideram memórias, valores e princípios imprescindíveis. O resultado é uma verdadeira babel, com prejuízos aos entendimentos necessários para que cada pessoa exerça o seu papel na sociedade. Essa dissonância, com vozes que instigam polarizações e fundamentalismos, prejudica também o estado de espírito – a condição emocional de grupos e indivíduos, alimentando desequilíbrios e descompassos.

O coro ruidoso, promovido por pessoas e grupos, é desafinado não por uma falta de referenciais teóricos, ou pela escassez de análises relevantes. A dissonância de vozes vem, especialmente, da ausência de compreensão mínima sobre o que significa viver e conviver na Casa Comum, ou da desconsideração sobre a urgência de se efetivar uma economia guiada pelos parâmetros da sustentabilidade, salubridade e solidariedade. Sem solucionar essas carências, torna-se impossível mudar cenários de exclusão social que são atestados de incompetência para uma sociedade com tantos avanços tecnológicos e científicos. Obviamente, a civilização contemporânea, em comparação a outras fases da história humana, conta com muito mais oportunidades, mas precisa capacitar-se para aproveitá-las bem. É necessário investir para que o humanismo fundamente as vozes deste tempo. Mais que isso: torne-se também força capaz de configurar nova etapa na história da humanidade.

Ante as aceleradas transformações sociais contemporâneas, muitos experimentam sensação de impotência neste contexto que aparenta ser caótico. Esse sentimento pode ser o sinal de que se está no caminho certo, pois a realidade é, de fato, muito complexa. Não é possível a apenas uma pessoa compreendê-la ou gerenciá-la plenamente. Reconhecer que se sabe muito menos do que se pensa saber é um passo com incidência existencial forte. Para alcançar essa compreensão, deve-se considerar a importância de muitos elementos que não podem ser negociados ou rifados, pois são antídotos para obscurantismos. Não se deve abrir mão, por exemplo, da memória histórica de instituições, frequentemente desconsideradas nos dias atuais por quem se perde na avalanche de mudanças.

Sem reconhecer a memória, muitos acreditam, ingenuamente, que estão “inventando a roda”, mesmo que essa “roda” já exista – o necessário é a inteligência para fazê-la girar. Além disso, ao desconsiderar a memória, paga-se um preço alto com a perda do sentido que alimenta a vida. Convive-se com a arbitrariedade da iconoclastia que demole tudo e enfraquece o tecido existencial com superficialidades, a partir da ilusão de que se está construindo algo novo. Nesse mesmo caminho de desconsideração da memória, há um impulso inconsequente, por vezes alimentado por interesses ideológicos, oportunistas, cegos e até mesquinhos. Esse impulso leva muitos a prescindir de instituições com capacidade para ser voz forte na superação das dissonâncias que prejudicam a sociedade.

As instituições estão sendo enfraquecidas ou atingidas por um subjetivismo que alimenta nas pessoas a ilusão de que suas próprias vozes são as mais lúcidas. Indivíduos passam a acreditar que suas perspectivas podem substituir vozes institucionais – que também necessitam, permanentemente, de afinação, para continuarem proféticas e gerarem interpelações transformadoras. Quando a irracionalidade permite que sejam enfraquecidos contextos institucionais há graves consequências: democracias perdem força, desempenhos profissionais e cidadãos tornam-se inadequados e cada vez mais se acentua a dissonância entre as muitas vozes, conduzindo instituições religiosas, educacionais, políticas, governamentais e tantas outras ao universo das irrelevâncias.

"ONDE ESTÁ O ESPÍRITO DIVINO, AÍ HÁ LIBERDADE.

 




Enquanto a humanidade sofre a tragédia desta pandemia, o presidente dos Estados Unidos cancela o financiamento de 400 milhões de dólares que a Organização Mundial da Saúde (OMS) deveria receber. Atualmente, estão em fase de testes oito tipos de vacinas contra o Covid 19. Destas, a metade (4) vem da China. Donald Trump usa todo o seu poder para impedir que vacinas chinesas cheguem ao mercado antes de novembro. Isso seria prejudicial à sua campanha para a reeleição. Para ele, isso pesa mais do que a vida de milhares de pessoas que seriam salvas.

No meio desta realidade, o presidente da África do Sul lança um desafio à ONU: a vacina contra um vírus que é mortal e ameaça toda a humanidade não pode ser comercializado. A vida não pode comercializada. Em vários países e inclusive no Brasil, entidades da sociedade civil se unem em uma campanha internacional para declarar vacinas e remédios contra as epidemias como bens comuns de toda a humanidade. Esta campanha é coordenada por uma fundação internacional que tenta unir a humanidade em uma ágora dos/das habitantes da Terra.

A consciência da dignidade e da igualdade de todos os seres humanos e a compreensão de uma cidadania universal é, de certa forma, recente. Para que tais conquistas possam ter ocorrido, foi importante uma evolução da cultura. Hegel dizia que nós não somos donos das nossas ideias. São as ideias que entram em nós e aí elas têm um poder transformador. A luta pelas ideias está na base das grandes lutas emancipatórias da sociedade.

Uma das tragédias atuais é ver que muitas vezes, as pautas mais retrógradas e claramente contrárias ao interesse dos pobres são apoiadas e defendidas pela parcela mais pobre da população. Ao se deixar formar por meios de comunicação, dominados pela elite, os pobres tendem a ser conservadores. Nos tempos antigos, as massas defendiam a escravidão e o racismo. Hoje, muitos brasileiros apoiam governos neofascistas. Revelam-se favoráveis à pena de morte, ao uso livre de armas de fogo e à violência policial contra pobres e negros. Esta realidade só muda quando a sociedade passa a se organizar por grupos e comunidades que buscam compreender com mais profundidade a realidade social. São os movimentos sociais e as comunidades humanas de base que formam o povo mais consciente de ser povo. No mundo romano antigo, o latim fazia a distinção entre plebs (massa) e populus (povo organizado). O Concílio Vaticano 2º define que a Igreja é uma porção do povo de Deus (populus Dei) e não massa de fieis.

Infelizmente, na história, muitas vezes, igrejas e religiões foram contrárias aos grandes movimentos de libertação e promoção humana. Nos séculos passados, muitos pastores e ministros cristãos defenderam a monarquia contra a república. Consideravam a superioridade masculina sobre as mulheres como vinda do próprio Deus. Eram contra a igualdade de gêneros e contra a liberdade de expressão e de religião. Atualmente, em todo o mundo, pastores e ministros ainda organizam cruzadas contra o direito das pessoas à diversidade sexual. Acima de tudo, acham que religião deve estar sempre ligada à direita política. Nos Estados Unidos, um presidente de direita faz guerras, destrói a vida em muitos países, manda prender crianças de cinco anos de idade e as isolar de seus pais. Se este presidente for contra o aborto e a união gay contará com o apoio explícito de muitos bispos, padres católicos e pastores evangélicos. No Brasil, nestes dias, conforme órgãos da imprensa, televisões que se dizem católicas ofereceram apoio político ao presidente da República, em troca de ajuda econômica. No evangelho, falou Jesus dos escribas e fariseus: vestem roupas religiosas, fazem longas orações, enquanto exploram as viúvas pobres (Mc 12, 39- 40). Hoje, esses doutores da religião não precisam explorar diretamente pobres e viúvas. Têm televisão para inundá-los de campanhas de arrecadação econômica. Agora, pedem ao governo para se beneficiar de verbas que vêm diretamente da exploração dos pobres. Para eles, mais vale uma boa reza do que a ética humana e social.

Precisamos com urgência voltar ao evangelho de Jesus que afirmou: “O sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado”. As leis, mesmo as mais sagradas, devem servir à vida e à felicidade das pessoas. Ao afirmar isso, Jesus enfrenta a tensão entre pessoa e sociedade. Claramente, optou pelas pessoas. Defendeu a mulher adúltera que a religião do templo mandava apedrejar. Revelou o amor divino aos pecadores públicos que eram discriminados. Paulo escreveu: “Onde está o Espírito Divino, aí há liberdade” (2 Cor 3, 17).

domingo, 27 de setembro de 2020

ESTAMOS DO MESMO LADO.

 




O ser humano tende a ser generalista. Se Trump é um fascista, todo americano é fascista, seja ele um Chomsky ou um Beni Sanders. Temos uma tendência a simplificar as coisas e assim acabamos cometendo, de uma certa forma, o mesmo tipo de preconceito que tanto combatemos.

Assim como nem todo alemão foi um nazista, nem todo israelense ou brasileiro é um fascista. É bom que se diga que tanto em Israel, como no Brasil, os fascistas não representam a maioria do povo.

Mesmo que possamos pensar racionalmente e compreender o óbvio, não é isto o que acontece muitas vezes dentro das nossas próprias fileiras. Eu combato o antissemitismo na esquerda desde os meus 15 anos. Um antissemitismo muitas vezes disfarçado de antissionismo, mas que no fundo tem as mesmas raízes do antissemitismo da direita. Ambos acusam os judeus de quererem dominar o mundo e trazem como prova o apócrifo Protocolos dos Sábios do Sião.

Claro que acusar o atual governo de Israel de fascista é legítimo, assim como o atual governo brasileiro. Condenar as políticas de Bibi em relação aos palestinos, e de Bolsonaro em relação ao meio ambiente, é uma obrigação de quem é progressista. O deve ficar claro, é que estamos na mesma trincheira, do mesmo lado da história. Eu sou antifascista sempre.

Se algo de bom puder ser dito do governo Bolsonaro no futuro, é de que graças a ele a esquerda possa ter aprendido algumas lições. Uma elas é a de saber separar o joio do trigo em cada país. Mesmo naqueles governados por regimes de extrema direita, existem companheiros combatendo com todas as suas forças contra o regime. Estes merecem nosso apoio e nossa solidariedade, somos irmãos da mesma luta por um mundo melhor.

Basta de fogo amigo, chegou o momento de compartilharmos experiências de cada país. De aprender com nossos erros e nossos sucessos. A luta é a mesma, as batalhas são por um mesmo objetivo, derrubar o fascismo onde ele estiver.

Temos um longo caminho comum a ser percorrido. A pandemia, por exemplo, não escolhe lado, mas as políticas de como ser combatida, sim é uma questão política. Priorizar o ser humano, a vida é imperativo. Proteger os menos favorecidos, os mais atingidos pelo vírus é uma opção ideológica. Isto nos une a todos que estamos do mesmo lado e não soltamos a mão de ninguém.

sábado, 26 de setembro de 2020

LEMBRAR QUE VIVEMOS E EXISTIMOS.





Como é bom quando, refletimos sobre o que fizemos com nossas vidas, lembrando que estamos todos imersos na mesma travessia humana.

Porque ninguém escolheu nascer.

Nem a época, lugar ou família.

Porque viver é fazer, e quem faz erra.
Porque viver é acreditar, e quem acredita se ilude.
Porque viver é amar, e quem ama sofre.

Porque não controlamos o futuro.
Um dia temos saúde e outro dia estamos doentes.
Um dia triunfamos e outro dia fracassamos.

Que bom que lembramos e que a capacidade de julgamento é o que nos faz humanos, mas também que seu uso indiscriminado e imprudente produz sofrimento, nos outros e em nós.

Reparação e reconciliação somente são possíveis se deixamos de julgar, por isso é importante que suspendemos nosso julgamento, e refletimos sobre o sofrimento que causamos quando:

• Julgamos em forma apresada, e somos injustos.
• Julgamos sob o efeito da cólera ou do medo, e agimos errado.
• Julgamos em forma preconceituosa, e humilhamos.
• Julgamos em forma dogmática, e desrespeitamos quem pensa diferente.
• Julgamos em função da opinião dos outros, e não do que sentimos, e nos tracionamos.
• Julgamos a forma e não o conteúdo, e somos banais.
• Julgamos quando o que deveríamos ter feito era só compreender.
• Julgamos para impor nosso poder, quando o que deveríamos fazer era compreender.

Porque a passagem do tempo nos permite crescer, e lembramos que devemos julgar menos e compreender mais, agindo de acordo com o princípio de “não faças aos outros o que não desejas que façam a ti”, devemos procurar:

• Sermos mais compreensivos e menos preconceituosos
• Sermos mais curiosos e menos dogmáticos.
• Sermos mais generosos e menos egoístas.
• Valorizar o essencial e não o supérfluo.
• Ouvir e refletir antes de opinar.
• Superar nossos preconceitos que são uma couraça empobrecedora.
• Deixar de nos valorizar pela desvalorização do outro
• Não permitir que os medos e inseguranças nos dominem.
• Proteger nossos interesses sem pisar nos outros.
• Diferenciar entre o essencial e o secundário.
• Manter o senso de humor e de ironia, sem os quais nossa vida e as da que nos rodeiam se torna opressora.

Porque  lembramos que a vida é um esforço constante de superar nossa omnipotência narcisista, desenvolvendo nossa capacidade de conviver, aprender, compreender e discernir, agradecemos:

Que vivemos, que existimos, que chegamos a este momento.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

UMA ORAÇÃO AO PLANETA TERRA.

 





Vivemos sob o Covid-19 tempos dramáticos que como um manto de sofrimento e de tristeza se estende sobre toda a humanidade. A doença e a morte quase foram naturalizadas em nosso país, dada a contaminação de milhões de pessoas e mais de 133 mil foram já vitimadas, deixando famílias, parentes e amigos em profunda prostração por não poderem se despedir, fazer o ritual do velório e o viver o imprescindível luto.

Neste contexto temos que rezar à nossa boa e generosa Mãe Terra para que tenha piedade de nós, seus filhos e filhas, apesar de todas as ofensas e agressões que por séculos lhe temos infringido. Ela não é vingativa. Mas nos dá severas lições, como agora com o coronavírus, para aprendermos um outro modo de habitar a Casa Comum, para nos relacionarmos com cuidado, respeito e veneração para com ela, nossa Magna Mater, Grande Mãe, Pacha Mama e Gaia.

Nesse espírito de súplica humilde e com os olhos marejados de lágrimas eu, Leonardo Boff, fiz esta oração:

“Terra minha querida, Grande Mãe e Casa Comum!. Vieste nascendo lentamente, há milhões e milhões de anos, grávida de energias criadoras.

Teu corpo, feito de pó cósmico, era uma semente no ventre das grandes estrelas vermelhas que depois explodiram, te lançando pelo espaço ilimitado.

Vieste aninhar-te, como embrião, no seio de uma estrela ancestral, no interior da Via-Láctea, transformada depois em Super Nova. Ela também sucumbiu de tanto esplendor. Era o primeiro Sol.

E vieste então parar no seio acolhedor de uma Nebulosa, onde já, menina crescida, perambulavas em busca de um lar. E a Nebulosa se adensou virando o nosso Sol, esplêndido de luz e de calor.

Ele se enamorou de ti, te atraiu e te quis em sua casa, junto com Marte, Mercúrio, Venus e outros filhos e filhas, os planetas. E celebrou o esponsal contigo. De teu matrimônio com o Sol, nasceram filhos e filhas, frutos de tua ilimitada fecundidade, desde os mais pequenininhos, bactérias, vírus e fungos até os maiores e mais complexos seres vivos. E como expressão nobre da história da vida, nos geraste a nós, homens e mulheres com inteligência, amorosidade, solidariedade, veneração e cuidado.

Através de nós, tu, Terra querida, sentes, pensas, amas, falas e veneras. E através de nossos olhos contemplas o céu estrelado onde estão tuas irmãs e teus irmãos. E continuas crescendo, embora adulta, para dentro do universo rumo ao Grande Atrator que outro não é senão o Seio do Deus-Pai-e-Mãe de infinita ternura. Dele viemos e para ele retornamos com uma implenitude que só Ele pode preencher. Queremos, ó Deus, Pai e Mãe de bondade, mergulhar em Ti e estar em eterna comunhão de amor contigo para sempre junto com a Mãe Terra.

E agora, Terra querida, pensando em todos os sofredores do mundo afetados pelo Covid-19, realizo o gesto de Jesus na força de seu Espírito. Como ele, cheio de unção, te tomo em minhas mãos impuras, para pronunciar sobre ti a Palavra sagrada que o universo escondia e tu ansiavas por ouvir:

“Hoc est corpus meum: Isto é o meu corpo. Hoc est sanguis meus: Isto é o meu sangue” E então senti: o que era Terra se transformou em Paraíso e o que era vida humana se transfigurou em vida divina. O que era pão se fez corpo de Deus e o que era vinho se fez sangue sagrado.

Finalmente, Terra, com teus filhos e filhas chegaste em Deus. Te fizeste divina por participação. Enfim em casa.

“Fazei isso em minha memória“. Por isso, de tempos em tempos,especialmente neste momento em que todos teus filhos e filhas sofrem sob a ação perigosa do Covid-19, cumpro o mandato do Senhor. Pronuncio a palavra essencial sobre ti, Mãe querida, e sobre todo o universo. E junto com ele e contigo nos sentimos o Corpo de Deus, no pleno esplendor de sua glória. Amém.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

O INSUSTENTÁVEL PESO DO PLANETA,

 




Uma entrevista com Jeffrey Sachs, economista e professor de desenvolvimento sustentável da Universidade Columbia, em Nova York. Reverenciado nos meios intelectual e artístico dos Estados Unidos, Sachs é autor de ensaios como América 2030, no qual sugere uma receita para a economia, a sociedade e o meio ambiente dos EUA depois que acabar a era Trump.

Eis a entrevista.

– Professor Sachs, que impacto a pandemia terá na economia mundial?

Teremos a maior recessão desde a Grande Depressão. Se mal gerida, se tornará uma crise prolongada. Se conseguirmos administrá-la, a recuperação global ocorrerá em um ano ou dois anos.

– Muitos acreditam que as principais crises que estamos enfrentando, do coronavírus ao aquecimento global, sejam atribuíveis ao crescimento da população mundial. Você compartilha dessa opinião?

Vivemos em um planeta superlotado, com quase 8 bilhões de pessoas. Isso envolve um uso maciço de energia; a maior parte da energia primária consiste em combustíveis fósseis, com enormes emissões de gases de efeito estufa. Mas também há consequências para a natureza, com o desmatamento, a destruição dos habitats e, sim, também o aparecimento de novas doenças, quando os seres humanos são infectados com patógenos de animais silvestres.

No entanto, gostaria de mencionar outros dois pontos. Primeiro, houve epidemias, como a peste bubônica, com um número muito menor de habitantes da Terra. Em segundo lugar, hoje temos as tecnologias para proteger a nós mesmos e ao planeta. Se escolhermos, podemos mudar rapidamente, em 20 a 30 anos, para uma economia mundial alimentada por energia renovável, em vez de combustíveis fósseis. Se escolhermos isso, a epidemia pode ser contida, como fizeram muitos países do leste asiático.

A pandemia que estamos enfrentando é, portanto, o resultado de um mundo insustentável?

A pandemia é realmente o resultado de uma transmissão zoonótica de um vírus (dos morcegos para os humanos) combinada com uma resposta profundamente imperfeita. A Europa e os Estados Unidos ignoraram os perigos da epidemia durante janeiro, fevereiro e início de março. Apenas os países do leste asiático, mais vigilantes por causa de sua experiência com a SARS, com a pandemia do H1N1 de 2009 e as epidemias de Nipah, responderam com mais cuidado e com maior sucesso.

– Como é possível tornar a vida na Terra sustentável para os mais de 7 bilhões de pessoas, que em breve se tornarão 10?

Antes de tudo, devemos seguir os objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas e o acordo climático de Paris. A Europa deveria implementar o Green Deal europeu. E deveria cooperar com a China para tornar a iniciativa chamada “Nova Rota da Seda” ambientalmente sustentável, em vez de baseada em combustíveis fósseis. Deveríamos usar novas tecnologias digitais de maneira justa e inteligente. Deveríamos cooperar em vez de travar guerras. Os Estados Unidos deveriam ser muito menos militaristas e muito mais cooperativos com as outras nações.

– Quando a emergência do coronavírus terminar, tudo isso acontecerá? Como a economia mundial será recuperada?

Vamos usar o Green Deal Europeu e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU como um caminho para um futuro mais justo e sustentável. Vamos precisar de uma Europa mais forte, com um orçamento europeu mais amplo, centrado em tecnologias e infraestruturas sustentáveis para o século XXI.

– Esse reinício poderia ser a grande oportunidade de converter todo o sistema econômico para o desenvolvimento sustentável?

Poderia ser. A menos que sejam deflagrados conflitos geopolíticos que possam atrasar esse projeto.

No entanto, essa crise também poderia também levar a atalhos “insustentáveis”. Alguns líderes europeus pediram para usar os fundos destinados ao Green Deal para relançar a economia desestruturada pelo coronavírus.

Espero que nossos políticos aprendam algo com essa crise. Precisamos ser capazes de olhar para o longo prazo e planejar o futuro. Essa experiência deveria nos fazer refletir: as nações ocidentais se conduziram muito pior do que as nações do leste asiático. Por quê?.

– O que você aprendeu dessa pandemia?

Que realmente é uma má ideia ter um psicopata como presidente dos Estados Unidos … mesmo que na verdade já o soubéssemos!

– Alguma coisa mudará na sua maneira de ensinar economia?


Três coisas. Primeiro, a maioria das aulas será online. Em segundo lugar, estou convencido de que a economia continuará se orientando em direção ao desenvolvimento sustentável, o que significa estudar uma abordagem integrada que combine economia, meio ambiente, assistência sanitária e condições sociais. Terceiro, como o Papa Francisco entendeu e solicitou, precisaremos de novas bases éticas para a economia: estou trabalhando em um livro sobre esse tema.

– E o conceito de sustentabilidade mudará após o coronavírus?

O conceito de sustentabilidade já estava em sintonia com os riscos de epidemias. No meu livro de 2008, Bem Comum, escrevi: ‘Nos encontramos cara a cara como nunca antes, amontoados em uma sociedade interconectada, composta de comércio global, migração e ideias, mas também de riscos de doenças pandêmicas, terror, movimentos de refugiados e conflitos’. Eu acho que esse diagnóstico ainda é válido. A sustentabilidade consiste em ser inteligentes, preparados, resilientes e justos em um mundo superlotado e interconectado.

* Entrevista de Luca Fraioli, publicada por Repubblica. A tradução é de Luisa Rabolini

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

SETEMBRO AMARELO.




Os maiores desafios deste tempo emolduram o Setembro Amarelo com rostos sem luz e sorrisos opacos, pois a vida está ainda mais ameaçada. Sentimentos e emoções se embaraçam diante do peso que recai sobre a humanidade. Não há sinais promissores de que a civilização contemporânea avançou na aprendizagem sobre os cuidados com a vida. É preciso, assim, progredir na ciranda do bem viver e do bem-querer – os trilhos sobre os quais a vida transcorre, de estação em estação, até chegar ao seu destino final. Uma viagem que exige o domínio da arte de cuidar, a partir do reconhecimento de que a vida é dom e responsabilidades.

Viver é inscrever-se em um contínuo caminho de lições, conforme bem assevera o ditado popular “vivendo e aprendendo”. Essa constatação ainda se confirma quando pessoas mais vividas manifestam surpresa diante de um acontecimento e dizem: “pensei já ter visto de tudo”. A vida é dom de riqueza inesgotável e, por isso mesmo, sempre apresenta novas lições. Todos são aprendizes, desafiados a superar muitas provas. Sejam oferecidas as condições para que cada pessoa possa superá-las. Para os cristãos, o Evangelho de Jesus Cristo é referência fundamental que leva a aprendizados condizentes com o dom de viver. A gramática do Evangelho da Vida congrega princípios e metas, códigos e experiências, lições e ensinamentos, partindo sempre da cláusula pétrea: o dom da vida é inviolável, merece cuidados e todas as condições para se desabrochar. Nesse sentido, o Evangelho ensina que o bem-querer, traduzido em gestos de amor ao próximo, é indissociável do bem viver.

Importante considerar também que o dom inviolável da vida, para ser protegido, exige constante reflexão sobre as emoções e as dores carregadas no coração humano. São essas emoções e dores que sustentam a vida de cada um. Por isso, saber reconhecer e lidar com os próprios sentimentos é uma importante forma de sabedoria, uma ciência sobre o viver. Distanciar-se da reflexão sobre os próprios sentimentos muito contribui para não se enxergar sentido na vida. E são terrificantes, embora não raramente distantes da luz midiática, as estatísticas dos que desistem de viver, com preocupante aumento de vítimas entre jovens – o futuro de uma humanidade que precisa renovar-se para não se declinar. Muita gente está sem forças para continuar vivendo, e ajudar na edificação de um mundo mais justo, solidário e fraterno. Consequentemente, as estatísticas sobre o suicídio podem revelar número de mortes semelhante ao de pandemias.

Dentre as renovações urgentes está a necessidade de se superar desigualdades sociais que representam graves ameaças à vida humana. A opacidade amarela deste mês de setembro alerta que a vida, embora seja dom precioso, é constantemente ameaçada. São, pois, muito necessárias políticas públicas com força e velocidade para debelar os processos que levam à destruição das vidas. O comprometimento da qualidade do bem-querer tem forte incidência sobre o bem viver. E o adoecimento planetário ambiental contracena com o adoecimento emocional humano. É preciso sublinhar a responsabilidade de se investir nos sentimentos que modulam a vida, com iniciativas que qualifiquem a dimensão emocional da humanidade, especialmente a partir da contribuição da espiritualidade. Isso permite cultivar o equilíbrio assentado em valores humanistas que possibilitem redimensionar critérios, juízos e escolhas.

Corajosamente cada pessoa deve dedicar atenção aos sentimentos, buscando o diálogo, com disposição para escutar e oferecer afeto. Famílias sejam mais atentas e aconchegantes. Escolas tornem-se mais interativas, inspirando nos alunos a sensação de pertencimento. Igrejas busquem ser cada vez mais sensíveis às dores humanas, garantindo a espiritualidade e as palavras que devolvam esperança. Todos se dediquem a edificar uma sociedade que seja livre das indiferenças, sem idolatrias e hegemonias mesquinhas, aprendendo lições como esta, partilhada por Cora Coralina: “Não sei se a vida é curta ou longa para nós, mas sei que nada do que vivemos tem sentido se não tocarmos o coração das pessoas. E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar.” Eis a compreensão necessária: alcançar pela força do bem-querer o necessário bem viver.

 

terça-feira, 22 de setembro de 2020

TEMPO DE MUDANÇAS E DE MUITAS CRISES.


 



Paira no ar a interrogação sobre o nascimento de uma nova época. Isso porque se vive um tempo de mudanças e de muitas crises – algumas antigas, outras mais recentes, a exemplo desta pandemia da covid-19. De fato, pode estar nascendo um novo ciclo, com transformações locais e globais. É preciso, pois, viver adequadamente este tempo, para que não se percam oportunidades. Os diferentes acontecimentos que afetam o planeta exigem da humanidade superar estreitas mentalidades e equivocadas visões sobre o mundo. Não se pode perder a chance de conduzir o planeta em novos trilhos: a vida é permanentemente ameaçada pelas incompetências humanísticas.

São urgentes os investimentos que capacitem, com maior velocidade, agentes para atuar na condução de diferentes processos, superando práticas e ações já antiquadas, inclusive nos contextos da política e da religiosidade. É necessário se adequar para estar em sintonia e oferecer respostas às muitas exigências e necessidades do mundo atual. Por isso mesmo, é preocupante o risco de se transitar na contramão do caminho que leva a um futuro melhor. Há uma tendência a repetições e rigidez, sustentadas por motivações injustificáveis neste momento crucial da humanidade. Vale investir em novos critérios de leitura e análise da realidade, com incidências na definição de metas – pessoais e institucionais – para que sejam efetivados os avanços possíveis nesta etapa da história. No processo de definição desses novos critérios para se relacionar com o mundo, oportuno é ter em vista uma contundente constatação do Papa Francisco: o risco demolidor da “autorreferencialidade”.

Pessoas autorreferenciais sofrem de miopias, não conseguem enxergar nem mesmo o que é evidente. São incapazes de reconhecer a realidade e, por isso, levam os contextos institucionais a prejuízos. No exercício de suas funções, essas pessoas dedicam-se a manipular instituições equivocadamente, incapacitando-as para o adequado serviço à sociedade. A promoção de serviços nos contextos social, cultural e político deixa de ser a meta principal. São indivíduos que buscam usufruir da instituição, egoisticamente. Setores religiosos, educacionais, empresariais e outros segmentos correm o risco desastroso de serem contaminados pelo mal da autorreferencialidade, com danos que repercutem na dimensão global da sociedade. Também prejudicial na condução de processos, com efeitos deletérios, é um tipo de intelectualismo que se apresenta como hegemônico, mas não consegue ir além de simples repetição ou da formulação de conceitos, sem propor algo novo. No conjunto de disjunções que incidem sobre a humanidade, constata-se, pois, uma necessidade urgente: investir na inteligência do coração.

O mundo com suas transformações e acontecimentos complexos exige do ser humano novas intuições, emolduradas a partir de análises consistentes. Assim é possível escrever nova página na história com respostas às demandas da humanidade. Existem muitas reflexões propostas por diferentes áreas do saber, mas ainda há certo distanciamento de um núcleo capaz de fecundar intuições: a inteligência do coração. A indiferença em relação ao sofrimento do próximo, que é irmão, a frieza nas relações, a mesquinhez que se revela no apego aos esquemas e às comodidades, são sinais do distanciamento dessa rica fonte de intuições.

A inteligência do coração chama-se compaixão. Ela alimenta a solidariedade, ilumina o olhar que sempre alcança o pobre, sensibiliza a intuição e permite escolher o que é bom para todos. Uma virtude que possibilita descobrir lógicas para além dos cálculos. Oportuno lembrar uma passagem evangélica, quando Jesus, arrodeado por multidão, depois de ter feito milagres, agiu em contraposição ao modo de pensar dos seus discípulos. Os mais próximos de Jesus, vendo que as muitas pessoas ali reunidas estavam com fome e sem ter grande quantidade de alimento para distribuir, sugeriram ao Mestre que era necessário dispersá-las. Jesus, sem ainda realizar o milagre da multiplicação de pães, a partir de seu coração, interpelou seus discípulos com um pedido, convocando-os e a cada pessoa para o exercício da solidariedade: “Sinto compaixão desse povo… dai-lhes vós mesmos de comer.”

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

OS MESMOS DIREITOS PARA TODOS.

 




A Inclusão Social é o ato de dar a todas as pessoas, independentemente de suas diferenças, os mesmos direitos e oportunidades. Integrar à sociedade grupos sociais historicamente à margem do processo de socialização, não tendo o devido acesso a direitos sociais mais básicos como educação, emprego digno, moradia, saúde e alimentação adequada.

Assim, a inclusão social é uma tentativa de corrigir a exclusão de alguns grupos como negros, indígenas, pessoas com deficiência, homossexuais, travestis e transgêneros, bem como aqueles em situação de vulnerabilidade socioeconômica, como pessoas em situação de rua e pessoas de baixa renda.

Ao falarmos sobre inclusão social, estamos também falando da Declaração Universal de Direitos Humanos que passou a estabelecer pela primeira vez, em 1948, a proteção universal dos direitos humanos, e conceitos como liberdade e a igualdade entre as pessoas passou a ganhar espaço no debate.Também estamos falando da nossa Constituição Federal de 1988, que assimilou a importância pela busca do direito à igualdade e, consequentemente, da inclusão social dos grupos sociais mais à margem, ao ordenar que nenhum cidadão pode ser submetido a qualquer forma de discriminação.

A inclusão social, nesse contexto, transformou-se em um objetivo e uma forma de luta. Assim, há atualmente inúmeros movimentos sociais – raciais, feministas, de grupos homossexuais, de religiões de matriz africana e outras, de portadores de necessidades especiais – que reivindicam do poder público e da sociedade de modo geral, políticas públicas efetivas que visam combater as diferenças históricas e sociais.

Nesse sentido, as políticas públicas amplas devem ser voltadas ao exercício da Inclusão Social, devendo superar as diversas formas de desigualdades sociais, culturais, educacionais e econômicas e, viabilizar a democratização de diversos espaços e serviços para aqueles que não possuem acesso a eles.

Abaixo, alguns exemplos de políticas públicas para inclusão social:
Cotas em universidades públicas e concursos públicos para negros e indígenas oriundos de escolas públicas e para estudantes de escolas públicas em geral;
Inclusão de pessoas com deficiência física ou de atrasos cognitivos em escolas regulares;
Programas de assistência social a pessoas de baixa renda e pessoas em situação de vulnerabilidade social, como pessoas em situação de rua;
Programas de profissionalização de jovens oriundos de famílias carentes;
Programas de assistência psicossocial e profissionalização de homossexuais, transexuais e travestis;
Acessibilidade para pessoas com deficiência, como cegos, surdos e cadeirantes, em espaços públicos ou espaços coletivos geridos pela iniciativa privada, além da acessibilidade em calçadas e passarelas do passeio público.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

QUEIMA BRASIL!!!


Muito antes de a revista “The Economist” qualificar o presidente do Brasil de BolsoNero, eu já havia cunhado a antonomásia. O que não esperava é que os fatos comprovariam a semelhança de atitudes entre o imperador romano, conhecido por tocar lira enquanto Roma pegava fogo, e o principal ocupante do Palácio do Planalto.

O Brasil é incendiado pelo descaso do governo, enquanto o presidente ignora o desastre ambiental e econômico, assim como faz com o genocídio sanitário que já ceifou a vida de quase 140 mil vítimas da Covid-19.

Na primeira quinzena de setembro, houve mais queimadas na Amazônia do que em todo o mês de setembro de 2019. Até o dia 15 foram registrados 20.485 focos de calor no bioma amazônico pelo programa Queimadas do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). No mesmo período do ano passado foram 19.925 focos.

A média é de 1.400 novas queimadas por dia. Nessa época do ano, em que a seca predomina na Amazônia, os desmatadores (latifundiários, mineradoras, garimpeiros, grileiros e empresários do agronegócio) aproveitam para queimar os recursos biológicos derrubados para abrir espaços ao gado, à soja, à exploração de minerais preciosos.

Segundo a Global Forest Watch, que mantém plataforma online de monitoramento de florestas, o Brasil foi responsável pela destruição de um terço de todas as florestas tropicais virgens desmatadas no planeta em 2019: 1,3 milhão de hectares perdidos.

O governo brasileiro ignora suas próprias leis. Em 16 de julho deste ano, proibiu o uso de fogo na Amazônia e no Pantanal por 120 dias. No entanto, os incendiários agem impunemente e os órgãos de fiscalização são sucateados. O vice-presidente, general Mourão, reclama que algum funcionário impatriota do Inpe deve estar vazando informações... “Há alguém lá dentro (do Inpe) que faz oposição ao governo”, declarou. Falta apenas mandar prender o satélite do órgão que detecta as queimadas.

Este ano houve aumento de 34% no desmatamento da Amazônia brasileira. E o presidente insiste: “Essa história de que a Amazônia arde em fogo é uma mentira”, declarou em reunião virtual com chefes de Estado da América do Sul (“Folha de S. Paulo”, 16/9, p. B7).

O fogo se alastra também, sem controle, no Pantanal, uma das regiões de maior biodiversidade do planeta. Já foram destruídos 16% da maior planície alagada do mundo. Ali as queimadas reduziram a cinzas 23mil km2 de riquezas vegetais e animais (área pouco maior que a de El Salvador ou o triplo da área da região metropolitana de São Paulo, onde vivem quase 22 milhões de pessoas em 39 cidades). Foi também devastado o maior refúgio do mundo de araras-azuis, e estão sob ameaça projetos de preservação de onças. São comoventes as imagens exibindo a quantidade de animais mortos por queimadura ou asfixia, ou em busca de água em estradas e cidades.

De acordo com estimativa do Ibama/Prevfogo, em três biomas que cruzam o território sul-mato-grossense - Pantanal, Cerrado e Mata Atlântica - a área atingida pelo fogo já ultrapassa 1.450.000 hectares.

O governo age na contramão da preservação ambiental. Para 2021, cortou os orçamentos dos dois principais órgãos federais de defesa da natureza e fiscalização de crimes ambientais, o Ibama (-4%) e o ICMBio (-12,8%).

A destruição do Pantanal, da Amazônia e do que resta do Cerrado faz parte do programa da coalizão governista, que reúne grileiros, mineradores, madeireiros ilegais e vândalos do agronegócio.

O secretário da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Mato Grosso, Flávio José Ferreira, afirmou em entrevista ao “Fórum Café”, dia 15/9, que o Ministério da Defesa tem proibido o Exército de atuar no combate aos incêndios no Pantanal. Bombeiros e voluntários são os principais responsáveis por conter as chamas no bioma. Ferreira também criticou o avanço do agronegócio no Pantanal e disse que o meio ambiente tem sido “desrespeitado” na região há anos.

BolsoNero é mestre em se eximir de culpas. Faz de conta que nada tem a ver com o genocídio da pandemia no Brasil, a invasão de terras indígenas, a interferência na Polícia Federal do Rio para defender os filhos, os milicianos condecorados por seus familiares, os cheques do Queiroz, a alta do preço do arroz, o crescimento do desemprego (13 milhões de trabalhadores) e tantas outras medidas de seu governo que arruínam o nosso país.

Ao cantar o hino nacional, em vez de proclamar “Se em teu formoso céu risonho e límpido, a imagem do Cruzeiro resplandece”, é mais condizente com a realidade entoar “Sob teu cinzento céu tristonho e enfumaçado, as labaredas das queimadas resplandecem”.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

JUNTOS NA CASA COMUM

 




Como afirmou o renomado filósofo alemão Jürgen Habermas, numa entrevista acerca do Covid-19:”Nunca soubemos tanto de nossa ignorância como agora”. A ciência é indispensável para sobrevivermos e dar conta da complexidade das sociedades modernas. Mas ela não pode ser arrogante e pretender, como certos cientistas postulam, que ela poderia resolver todos os problemas. Mas na verdade, o que não sabemos é infinitamente maior do que sabemos.Todo saber é finito e perfectível. Isso está se comprovar agora por ocasião da busca desenfreada por uma vacina eficaz contra o Covid-19. Não sabemos quando estará disponível, nem quando desaparecerá a epidemia.

Tal fato tem como efeito o ocaso de um horizonte de vida e de esperança e causa aquilo que tão bem em seu twitter escreveu a juíza e escritora (“A vida não é justa”) Andréa Pachá: “A pandemia fez muitos estragos. Alguns físicos, concretos e definitivos. Outros sutis, mas devastadores. Subtraiu a vontade de rir, de brincar, de fazer planos, mesmo aqueles só utópicos e idealizados, que jamais se realizariam, mas que alimentavam a alma”. Constamos que há profundo abatimento coletivo, melancolia, depressão e até raiva contra uma epidemia contra a qual muito pouco conhecemos e pouco podemos fazer. Todos sentimo-nos rodeados pelo fantasma da contaminação, da intubação e da morte.

O fato é que vivemos não sob uma emergência extraordinária como o tsunami no Japão afetando as usinas nucleares, uma das quais, continua emitindo radioatividade, afetando as costas da India, da Tailândia, da Indonésia até as costas da Califórnia ou as grandes queimadas da Amazônia,do Pantanal e das florestas da Califórnia. Com o Covid-19 estamos diante de uma emergência extrema, afetando todo o planeta, consequência de uma profunda erosão ecológica causada pela voracidade das grandes empresas que buscam exclusivamente o lucro material com a derrubada das florestas, o extrativismo, a expansão de monoculturas como da soja ou da criação de gado e a excessiva urbanização do mundo inteiro.

Essa intrusão do ser humano sobre a natureza, sem qualquer sentido de respeito ao seu valor intrínseco, tida como mero meio de produção e não como algo vivo do qual nós somos parte e não donos e senhores, negando-nos a respeitar seus limites de suportabilidade, tem produzido a destruição dos habitats dos milhares de vírus em animais e em plantas que então transbordam para outros animais e para o ser humano.

Temos que incorporar novos conceitos: a zoonose (doença que vem do mundo animal,aves, porcos, vacas, morcegos) e a transferência zoonótica: uma afecção animal transmissível ao ser humano. A partir de agora entrarão no nosso vocabulário não só científico.

Adverte-nos um dos maiores especialistas em vírus David Quammen (Montana nos USA) em seu video “Spillover: the next human pandemic” ( 2015):”é inevitável que volte a haver uma grande pandemia. Pode matar dezenas de milhares, centenas de milhares, ou milhões de pessoas, consoante as circunstâncias e a forma como reagirmos, mas há de aparecer qualquer coisa dessas. Será com certeza um agente zoonótico. Terá origem em animais não humanos. Será certamente um vírus”. Observemos a gravidade desta advertência de um notável cientista.

Face à esse emergência extrema, acrescida com parca mobilidade nacional e internacional, o isolamento social, o distanciamento entre as pessoas e o uso da máscara nos propiciam colocar as questões mais fundamentais de nossas vidas: afinal, o que conta em última instância? O que é definitivamente essencial? Quais as razões que nos levaram a tal situação de emergência extrema? Que devemos e podemos fazer depois que passar a pandemia, se passar? Estas questões são inadiáveis.

Então descobrimos que não há valor maior que a vida, a nossa vida e de toda comunidade de vida.Ela surgiu há 3,8 bilhões de anos e a humana há cerca de 8-10 milhões de anos.Ela passou por várias devastações mas sempre se manteve viva. E junto com a vida, os meios de vida sem os quais ela não se sustenta: á água, o solo, a atmosfera,a biosfera,os climas, o trabalho e a natureza que nos oferece tudo o que precisamos para viver e sobreviver.E a comunidade humana que nos acolhe e nos oferece as bases da ordem social e espiritual que nos mantém coesos como humanos. De nada vale a acumulação de bens materiais, a apropriação individual, a pura e simples competição. O que nos salva como seres vivos e sociais é a solidariedade, a cooperação, a generosidade e o cuidado de uns para com os outros e para com o ambiente.

Estes são os valores humano-espirituais, contrários àqueles da cultura do capital material sobre a qual o Covid-19 representou uma espécie de raio que a reduziu em cacos. Não podemos voltar a ela para não provocar a Mãe Terra e a natureza que, caso não mudarmos nossa relação de respeito e de cuidado, nos enviarão outros vírus, talvez ainda mais letais ou até o derradeiro (The Big One) que dizimaria a espécie humana.

Esse tempo de recolhimento forçado é tempo de reflexão e de conversão ecológica, tempo de decidir que tipo de Casa Comum queremos para o futuro. Temos que crescer em solidariedade e em amor a tudo que é criado,especialmente aos humanos, nossos irmãos e irmãs. Seremos o “o homo solidarius”, o princípio de uma nova era, da biocivilização, na qual a vida em sua diversidade terá centralidade e tudo o mais a serviço dela. A vida vale por si mesma. Juntos na Casa Comum gozaremos da alegre celebração da vida.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

JUIZ LADRÃO

 



A impressão que dá é que as elites brasileiras, e isso inclui empresários, executivos, políticos, donos de empresas de comunicação e bolsonaristas de aluguel, não estão se incomodando muito com o que estamos passando. Verdade que, de vez em quando, lemos ou vemos notícias que nos dão uma impressão diferente. O Supremo convoca Bolsonaro para depor mas isso não dura muito. No dia seguinte o mesmo Supremo reconhece que a Lava Jato é totalmente constitucional, mesmo com todas as denúncias existentes.

Vivemos essa judicialização forçada como num grande jogo de futebol, com altos e baixos, faltas e penalidades máximas e poucos gols, mas o VAR sendo convocado o tempo todo. E só continuamos a torcer depois que o vídeo determina, foi falta ou não. Assim é o nosso país. Um imenso Brasileirão onde os times trocam de nome, de técnico e de jogador mas o nível do futebol jogado é o pior possível.

A elite que não vai ao estádio e fica sabendo dos resultados pelas redes sociais para continuar apostando nessa loteria esportiva imaginária, gosta do que vê. Para ela melhor assim do que deixar jogar aquele time que todo mundo sabe o nome do técnico que ganharia todas as partidas em jogo honesto.

Mas não, isso a elite não quer e continuamos a assistir perplexos esse festival de jogadas horrorosas, faltas violentíssimas na cara do juiz que a cada dia se posiciona sem o menor pudor a favor de um time ou do outro.

E dá-lhe cartão vermelho...aliás, cartão vermelho não. Devem estar pensando em mudar logo essa simbologia. Será cartão verde mesmo, ou verde e amarelo desvirtuando nossas cores originais, associando-as ao fascismo sem cor.

Esse é o campeonato que faz concorrência com qualquer atividade esportiva honesta. Lemos no caderno de esporte ou vemos na internet as notícias e ficamos chocados. Como é possível que ninguém faça nada? Das chamadas instituições democráticas, comprometidas até a alma com o regulamento desonesto desse campeonato, e sem força para impor sua regras, dali mesmo que não virá mudança alguma.

A torcida precisa poder voltar aos estádios, tomar as ruas gritando seus hinos e clamando seus heróis verdadeiros. Essa é a maneira clássica que sempre deu certo. Num país totalmente paralisado por um governo inerte e uma pandemia, nada melhor que espalhar uma série de mentiras para manter a torcida em casa.

Alguns jogadores acabam se rebelando. Neymar abriu a boca na França acusando juízes e jogadores de racismo depois de ter sido chamado de macaco. Se declarou negro, coisa que nunca havia feito. Caetano falou mais alto que Pedro Bial que insistia no lugar comum de comparar socialismo a nazismo como regimes autoritários. Se esquecia que são coisas diferentes. O nazismo foi um regime que se sustentou no extermínio do povo judeu. O socialismo foi inventado por Karl Marx lá atrás que, salvo outros poucos momentos, nunca palpitou em regimes. Stalin usou de modo absurdo e cruel a força autoritária, mas foi um tropeço do socialismo, não um modo de ser. O nazismo não cometeu erros quanto a isso. Fez exatamente aquilo que sempre quis, ser cruel, violento e genocida.

São dois conceitos que, pelo menos, valem uma discussão. É o que Caetano começou a fazer. Refletir sobre uma condição que não se sustentava mais na sua consciência. Como um torcedor que decide gritar "juiz ladrão" no meio da torcida adversária. É preciso coragem mas pode ser que assim, outros também gritem.

Os negros estão se rebelando, as mulheres, os gays, os índios e os pobres. Chega de ser obrigado a torcer pelo time errado ou a assistir de longe, sem emoção esse campeonato fajuto que estamos vivendo agora.

Que o brasileirão volte a ser democrático e emocionante. Que os pernas- de -pau sejam colocados no banco de reserva da História e os craques de verdade mostrem o que é o futebol- arte, o que é a política- arte, o que é a arte popular, o que é a cultura de um país. Que os militares fiquem nos quartéis e deixem a população produzir cultura. Só assim voltaremos a ser um país respeitado como já fomos inclusive pelo nosso futebol.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

PAGAR UM PREÇO.

 


Um discurso se mede pela força do pensamento, pela beleza do estilo e pela qualidade da linguagem. Alguns, extraordinários, persistem na mente das pessoas. Martin Luther King, com o seu “I have a dream” (Tenho um sonho) virou um clássico. Getúlio Vargas, com a carta testamento, embora deixada por escrito, igualmente. Trata-se de um talento que, nos tempos atuais, se mostra escasso. Dirigentes substituem o conteúdo ausente por pregações nas quais a estupidez prevalece acima de programas e medidas a tomar. É difícil encontrar estética em retóricas nas quais se afirma pela negativa ou pelo ataque aos adversários repletos de impropérios. Chega a entristecer a ideia da nacionalidade, como se a houvéssemos perdido.

E, de repente, quando menos se espera, uma grata surpresa: o pronunciamento de Felipe Santa Cruz, à testa da OAB, por ocasião da posse de Luiz Fux na presidência do STF. Ouvidos e mentes se alegraram. Num momento de aridez entre os que figuram nos primeiros planos da cena, surge alguém que sabe reconhecer a ocasião em que se coloca e a ocupa com maestria de orador habituado a equilibrar conceitos e sentimentos naquilo que fala. Para o momento de adversidade nas instituições, alvo de pressões entre os poderes, não lhe faltou coragem. O Supremo recuperou sua autoestima dando-lhe voz e parando para escutá-lo. Ali estava alguém que possuía o que dizer e o fazia, no elogio ou na crítica, sem se perder. O orgulho de ser brasileiro retorna ao nosso imaginário.

Mas porque é tão importante falar bem. Nas ruas, nos botequins, no comércio, fala-se de qualquer maneira, com o mínimo necessário para a comunicação. Nos altos cargos, nos quais em princípio não se chegou por acaso, exige-se mais. Alexis de Tocqueville, o grande pensador francês, no seu A democracia na América, prevê o que se passava nos Estados Unidos como futuro da Europa e até do mundo. Lá, afirma ele, não há necessidade de grandes estadistas para governar. Qualquer um, eleito pela população pode ser escolhido. Isso se daria por uma razão. O povo, por sua conta, resolve os problemas. Por isso prescindiria de talentos no uso das funções. O filósofo acertou talvez demais. De fato, passamos a escolher sem critério os que se apresentam nas listas eleitorais, com o detalhe de que, por outro lado, não damos a impressão de resolver sozinhos os nossos problemas. Na péssima qualidade dos dirigentes, Tocqueville não errou.

A situação atingiu tal ponto que, aos nos aproximar dos veículos de comunicação, sentimos o impulso de desligar o botão, poupando-nos do sacrifício de escutar tolices e abusos de linguagem. A ignorância e a estupidez fizeram escola. Felizmente, nesse plano, a noção de fracasso não nos dominou completamente. Diante de Felipe Santa Cruz experimentamos, ao contrário, a vontade de ouvir outra vez. Há, portanto, esperança no fim do túnel. Um dia a casa cai. Pode ser que a energia do talento retorne ao nosso campo visual e revalorize a função de Presidente da República.

De certa maneira, a vitória da mídia sobre as demais formas de comunicação contribui para esvaziar os padrões de qualidade. Nos períodos de pleito eleitoral, vence quem aparece nas telas de TV e conta com o apoio das grandes emissoras. Os comícios, nos quais se ficava diante dos oradores, caíram em desuso. Vale a imagem como é transmitida. De retórica, nem se fala. É imperativo resumir a mensagem em segundos. Dependendo da situação, quando a vitória se anuncia, nem vale a pena comparecer aos debates. E pronto. Garantimos a fórmula do sucesso na mediocridade. Depois, paga-se um preço...

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

POLÍTICA, SAÚDE E VALORES (III)

Coluna Tarcízio Leite: Inversão de Valores

III.

A pandemia, com seu enorme custo social e de vidas, poderá produzir algumas consequências positivas — se a sociedade brasileira for capaz de se apropriar dos novos impulsos que ela gerou.

As fake news entraram em refluxo. Não que elas tenham deixado de ser disseminadas, mas perderam terreno. À falta de “comunistas”, feministas, e políticos brasileiros para culpar, os propagadores de fake news divulgaram teorias conspiratórias, como a que diz que o vírus foi produzido na China, (utilizando uma declaração de um prêmio Nobel japonês, desmentida pelo próprio, e desconhecendo as conclusões da CIA e da Organização Mundial da Saúde a respeito da origem do vírus). Rapidamente descobriram que os brasileiros não estavam preocupados com conflitos geopolíticos importados, e sim em saber como o vírus afetava suas vidas. Voltaram então a demonizar velhos conhecidos — incluindo agora na lista Sérgio Moro e Luiz Henrique Mandetta — mas perderam parte do impulso, que certamente ressurgirá com o fim da pandemia. Esperemos que tenha aumentado a imunidade da população em relação as notícias falsas.

O jornalismo profissional ressurgiu com força. Um fenômeno aparentemente paradoxal é que pessoas que criticam os meios de comunicação tradicional, quando devem conferir notícias que afetam suas vidas, checam a veracidade na imprensa na qual “não acreditam”. Em tempos de pandemia, a imprensa passou a ser incontornável. Se há algo a lamentar, é que o silêncio do Presidente e de seu atual Ministro da Saúde sobre o andar da pandemia, em particular depois que o governo deixou de transmitir números totais de contágios e mortes (da qual teve que voltar atrás por decisão do STF), levou os jornalistas a enfatizar o que o governo quis esconder, a expansão da doença, com pouca informação e análises diárias mais meticulosas das tendência da em cidades e microrregiões. Quando o governo falha em informar, o jornalismo cumpre o importante papel de alertar a população para os riscos que está correndo. Mas isso não exime a imprensa do esforço de uma cobertura mais detalhada.

O ataque às instituições acadêmicas e cientificas recuou. No início do atual governo, tivemos que conviver com uma investida sistemática contra o mundo acadêmico, falsamente apresentado como constituído por “parasitas” cujo único objetivo seria difundir ideias perigosas para a moral pública. Graças à pandemia a maioria da população descobriu que o Brasil possui centros de excelência cientifica nas mais diversas áreas, dos quais nós devemos orgulhar, e que as respostas devem ser procuradas na ciência, personificada em profissionais da medicina e em remédios e eventual vacina que venha a ser produzida. Esperemos que os centro universitários e de pesquisa recuperem suas verbas, e passem a ser apoiados e não perseguidos.

O mesmo vale para alguns líderes religiosos que continuaram divulgando explicações sobrenaturais sobre o surgimento da pandemia e prometendo curas milagrosas para o novo coronavírus. Essa é uma postura que ainda vê a ciência e a religião como incompatíveis, e considera Deus uma entidade paternal autoritária que castiga o povo, a partir de uma leitura primária da Bíblia. (Afinal, se a pandemia responde a um designo divino e ela resultar num fator central para a derrota eventual de Donald Trump, será que Deus enviou o coronavírus com este objetivo?) O terraplanismo continuará, mas a valorização do conhecimento científico foi revitalizado.

A ignorância do conhecimento científico tem um preço político. A negação de dados e informações “inconvenientes”, o desrespeito por aqueles que possuem um conhecimento consolidado nas suas áreas (seja de relações internacionais, da educação ou da saúde), a divulgação sistemática de mentiras, são expedientes que podem ser eficazes para abocanhar apoio eleitoral e chegar ao poder. Com o tempo, porém, a sociedade termina descobrindo seus efeitos nocivos — infelizmente, muitas vezes depois de sofrer danos enormes.

Vemos, finalmente, que o Estado não deve ser nem pequeno nem grande: deve responder de forma eficiente às necessidades da população. O debate sobre um “Estado mínimo” vs. um “Estado grande” se mostrou, como não poderia deixar de ser, uma falácia. Não existe uma sociedade moderna viável sem um estado capaz de assegurar o bem-estar básico da população, promover o progresso da ciência e da tecnologia, coordenar e regular as mais diversas atividades e suavizar o impacto econômico e social das flutuações do ciclo e das transformações econômicas. Situações de crise realçam estas funções, que estão sempre presentes. Há políticas neoliberais, não um Estado neoliberal, que seria tão distópico quanto uma sociedade sem mercado.

No lugar de atacar o Estado, o que se trata é de melhorá-lo.

sábado, 12 de setembro de 2020

POLÍTICA, SAÚDE E VALORES (II)

Coluna Tarcízio Leite: Inversão de Valores

II.

O conflito entre a liberdade individual e a proteção do bem comum, foi colocado em forma aguda durante a pandemia. O poder público, em nome da preservação da comunidade, pode limitar a liberdade individual, seja de movimento, de expressão, ou impor medidas, como a vacinação obrigatória ou uso de máscaras?

Não é aqui o lugar de entrar nos meandros de um tema complexo. O que nos interessa indicar são algumas lições que podem ser retiradas da experiência recente durante a pandemia.

A liberdade é um valor fundamental numa democracia. Como todo direito, ele exige sua delimitação legal para assegurar que a liberdade não seja utilizada para produzir danos em terceiros. O respeito às regras de quarentena, a utilização de máscaras, o distanciamento social, são medidas necessárias para assegurar o bem-estar público. A questão que se coloca é como assegurar que elas não eliminem a possibilidade de expressar o desacordo e o protesto social.

Situações sociais extremas, como uma pandemia ou uma guerra, esticam ao limite a possibilidade de aplicar normas gerais que asseguram as liberdades individuais. No caso de uma pandemia, a expressão individual de desacordo com políticas públicas, como não usar máscaras ou não manter a distância social, é uma afirmação egoísta, quando não narcisista, que acarreta grave dano à sociedade.

O que me parece questionável, sim, é que se negue o direito a realizar manifestações coletivas de protesto. Certamente que manifestações públicas, em situação de pandemia, apresentam um enorme risco de contágio. Por outro lado, proibi-las não só retira do público um recurso fundamental de participação política como também permite que o Estado, ou grupos políticos, possam se aproveitar da situação.

Não foi circunstancial que a movimentação em torno do presidente Bolsonaro a favor do AI-5 tenha acontecido durante o início da quarentena, aproveitando de que as pessoas estavam isoladas nos seus lares. As manifestações de rua contra o movimento golpista, se é de lamentar que muitos manifestantes não tenham tomado os cuidados suficientes para se proteger do contágio, foi uma declaração dos cidadãos que a defesa da democracia se sobrepunha até às medidas sanitárias.

Um dos paradoxos do caso brasileiro, nesse sentido, é que o grupo que empunhava a bandeira da liberdade para desconhecer as medidas de saúde pública o fazia para manifestar apoio a um “novo AI-5” — isto é, propondo a censura e a destruição da liberdade. Aliás, um fenômeno similar ao que acontece em torno do debate sobre a regulação das fake news. Aqueles que são contra, são os mesmo que utilizam as redes sociais para divulgar mensagens que visam a destruição das instituições democráticas e a promoção do autoritarismo.
CONTINUA AMANHÃ...

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

POLÍTICA, SAÚDE E VALORES (I)

Coluna Tarcízio Leite: Inversão de Valores

Cientistas sociais do futuro encontrarão na pandemia farto material de pesquisa. Eles terão o que nós não temos: o benefício da passagem do tempo, que filtrará as potencialidades que o momento atual abre e que se cristalizarão nas escolhas e na ação dos diversos agentes sociais. O privilégio que nos resta é o de mapear as possibilidades, dilemas e ensinamentos que a pandemia nos lega, e que podem nos orientar como cidadãos na procura de um futuro melhor para nossas sociedades.

I.

A pandemia nos apresentou em forma nua e dramática um problema sempre presente na sociedade: a vida social exige conviver com valores contraditórios, que nos obrigam a hierarquizar, dosar e negociar as demandas de cada um. Como responder às exigências de controle da epidemia e salvar vidas, e às da economia, mas também da educação, do equilíbrio psicológico, tudo isso buscando preservar a privacidade frente ao uso de sistemas de vigilância eletrônica?

Alguns governantes, como no caso brasileiro, ignoraram o conhecimento científico, negando a importância da doença e promovendo medicamentos sem comprovação, tudo em nome de “manter a economia funcionando”, baseados em cálculos eleitorais. A reação a esta atitude ignorante e irresponsável não deve nos levar, por outro lado, à suposição de que a ciência pode nos dar respostas unívocas do que deve ser feito.

Procurar soluções exige, em primeiro lugar, a capacidade de utilizar o conhecimento científico disponível, mas se a ciência é o ponto de partida, as respostas são decisões políticas que cabem às autoridades públicas. Devem ser julgadas pela sua capacidade de maximizar o bem comum.

A pandemia levou ao centro do espaço público um personagem geralmente relegado às margens: os especialistas em saúde pública. Que a disciplina preponderante nos meios de comunicação, a economia, tenha perdido espaço para a medicina, representa um importante corretivo para o debate público e para a consciência cívica da população. Essa correção nos lembra que o primeiro objetivo da uma comunidade é preservar a vida, e, portanto, o sistema de saúde deve ter um lugar prioritário na política nacional. Isto sem mencionar a necessidade de reconhecer e prestigiar os funcionários do sistema de saúde, em especial os que trabalham nos hospitais, como se viu em muitos países do mundo. No Brasil, o governo federal nada disse a esse respeito. E a sociedade, exceções à parte, não fez ouvir sua voz de apoio como deveria.

A centralidade que os especialistas da área devem ter em situações de crise de saúde pública é inegável — o que não significa que caiba a eles a decisão última sobre o que deve ser feito. Como em toda disciplina cientifica, além de diferença de opiniões, a saúde pública se orienta por um único critério, e por mais fundamental que ele seja, a vida em sociedade não pode ser reduzida a uma única variável. A melhor escolha, como ensina a teoria dos sistemas, é aquela que se utiliza de múltiplos critérios.

Em vários países, governos formaram comissões multidisciplinares para enfrentar a pandemia, e, quando necessário, assumiram posições divergentes dos especialistas em saúde pública. Recentemente, o Ministro da Educação da França foi perguntando por que se decidiu pela reabertura das escolas, divergindo da opinião dos epidemiologistas, e respondeu que, tomando todas as precauções possíveis, devia levar em conta vários critérios para assegurar o bem público. Não se trata de o político desconhecer ou se colocar acima do conhecimento cientifico, mas de assumir o papel que lhe foi delegado pelo voto, como responsável último pelas decisões e suas consequências, pelos rumos que o país deve tomar. 

CONTINUA AMANHÃ...

               

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

ESTE É UM TEXTO INDIGNADO

 O meu mais sincero desabafo público - Opinião Sem Medo!

Quatro sombras escuras pairam sobre um país solar que nunca puderam ser dissipadas pela nossa consciência e inconsciência coletivas: a sombra do genocídio dos povos originários,os donos primeiros destas terras.De seis milhões que eram, sobraram apenas um milhão, a maioria por não suportar o trabalho escravo ou pelas doenças dos invasores contra as quais não possuíam nem hoje possuem imunidade.A sombra da colonização que depredou nossas terras e florestas e nos tornou sempre dependentes de alguém de fora, impedidos de forjar nosso próprio destino. A sombra da escravidão,nossa maior vergonha nacional, por termos transformado pessoas trazidas de África em escravos e carvão a ser consumido nos engenhos de cana de açúcar.Jamais vistas como pessoas e filhos e filhas de Deus mas como “peças”a serem compradas e vendidas, construíram quase tudo o que existe neste país. E hoje, tidos por preguiçosos e presos, compõem mais da metade de nossa população, jogados nas periferias; suportam o ódio e o desprezo antes imposto aos seus irmãos e irmãs das senzala e agora transferidos a eles com uma violência tal como mostrou o sociólogo Jessé Souza (A elite do atraso:da escravidão à Lava Jato,2007 p.67) até perderem o sentido de sua dignidade. A sombra das elites do atraso que sempre ocuparam o frágil Estado, usando-o para seu benefício. Nunca forjaram um projeto de nação que incluísse a todos, apenas, com as artes perversas da conciliação entre os endinheirados, apenas um projeto só para eles. Não bastava desprezar os marginalizados mas rachar-lhes as cabeças, caso se levantassem, como ocorreu várias vezes na sua heroica história da resistência e da rebeldia.
Quando um sobrevivente dessa tribulação, por caminhos de pedras e de abismos,chegou a ser presidente e fizesse alguma coisa a seus irmãos e irmãs, logo criaram as condições perversas para destruir sua liderança, excluído da vida pública e, por fim, a ele e a sua sucessora apeá-los do poder. Essa sombra ganhou contornos de “procelosa tempestade e noturna sombra (Camões) sob o atual governo que não ama a vida,mas exalta a tortura, louva os ditadores,prega ódio e larga o povo à sua própria sorte, atacado letalmente por um vírus, contra o qual não tem nenhum projeto de salvamento e, desumano, se mostra incapaz de qualquer gesto de solidariedade.

Estas sombras,por serem expressão de desumanização,se aninharam na alma dos brasileiros e brasileiras e raramente puderam conhecer a luz. Agora criaram-se as condições ideológicas e políticas para serem lançadas ao ar como lavas de um vulcão, feitas de boçalidade, de violência social generalizada, de discriminações, de raiva e de ódio de grandes porções da população. Seria injusto culpar a elas. As elites do atraso se internalizaram em suas mentes e corações para fazer que se sintam culpadas de sua sorte e acabem por fazerem seu o projeto deles que, na verdade, é contra eles. O pior que pode acontecer é o oprimido internalizar o opressor com o projeto enganoso de bem estar, sempre lhes sendo negado.

O exemplo vem do próprio governo e de seus fanáticos seguidores, De um presidente se esperaria virtudes cívicas e o testemunho pessoal de valores humanos que gostaria vê-los realizados em seus cidadãos. Ao contrário,seu discurso é eivado de ódio, desprezo, de mentiras e de boçalidade na comunicação. É tão inculto e tacanho que ataca o que é mais caro à uma civilização que é sua cultura, seu saber, sua ciência, sua educação, as habilidades de seu povo e o cuidado da saúde e da riqueza ecológica nacional.

Nunca tanta barbárie, nos últimos cinquenta anos, tomou conta de algum país, como no Brasil, aproximando-o ao nazifascismo alemão e italiano. Estamos expostos à irrisão mundial,feitos país pária,negacionista do que é consenso entre os povos. A degradação chegou ao ponto de o chefe de Estado fazer o humilhante rito de vassalagem e de submissão ao presidente mais bizarro e “estúpido”(P.Krugman) de toda a história norte-americana.

É humilhante constatar que não haja da parte das mais altas autoridades a coragem patriótica para encaminhar, dentro da legalidade jurídica, a destituição ou o impeachment de um presidente que mostra sinais inequívocos de incapacidade política, ética e psicológica para presidir uma nação das proporções do Brasil. Podem fazer-se ameaças diretas à mais alta corte, de fechá-la, de fazer proclamas à volto ao regime de exceção com a repressão estatal que implica e nada acontece por razões arcanas.

A brutalização nas relações sociais e especialmente entre o povo simples não deve ser imputada a ele, mas às classes oligárquicas do atraso que lograram internalizar neles seus preconceitos e visão obscurantista de mundo. Estas classes nunca permitiram que vingasse aqui um capitalismo civilizado, mas o mantém como um dos mais selvagens do mundo, pois conta com os apoios dos poderes estatais, jurídicos, midiáticos e policiais para abateram qualquer oposição organizada. A “racionalidade econômica”se revela desavergonhadamente irracional pelos efeitos maléficos sobre os mais desvalidos e para as políticas sociais destinadas aos socialmente mais sofridos.

Esse é um texto indignado. Há momentos em que o intelectual se obriga por razões de ética e de dignidade de seu ofício, a deixar o lugar do saber acadêmico e vir à praça e externar sua iracúndia sagrada. Para tudo há limites suportáveis. Aqui ultrapassamos a tudo o que é dignamente suportável, sensato, humano e minimamente racional. É a barbárie instituída como política de Estado, envenenado as mentes e os corações de muitos com ódios e rejeições e levando à frustração e à depressão a milhões de compatriotas, num contexto dos mais atrozes que tiram de nosso meio pelo vírus invisível mais de cem mil entes queridos. Calar-se equivaleria render-se à razão cínica que, insensível, assiste o desastre nacional. Pode-se poder tudo, menos a dignidade da recusa,da acusação e da rebeldia cordial e intelectual.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

MIA COUTO: UM PEQUENO VÍRUS FOI CAPAZ DE PARAR A CIVILIZAÇÃO.

 

Mia Couto, um dos grandes nomes da literatura, completa 55 anos neste  domingo (5)
O legado que fica à sociedade da pandemia do coronavírus, acredita o escritor e biólogo moçambicano Mia Couto, é o da reflexão coletiva. O pós-pandemia será da aceitação da fragilidade, da aceitação de que um pequeno vírus foi capaz de parar a civilização que se formou. “Nós sempre nos colocamos como o grande motor e não somos. E foi um pequeno vírus quem fez esse alerta. O grande motor da vida não são vocês. Somos apenas mais um nessa orquestra”, afirmou Couto, expoente da literatura e um dos autores mais conhecidos de Moçambique, durante o terceiro dia da Fliss, a Festa Literária Internacional de São Sebastião, que acontece virtualmente.

Membro da Comissão Técnica e Científica de Assessoria ao Governo de Moçambique para a covid-19, Couto fez barulho em março ao afirmar “que o vírus não pode ser o vilão da história”. Na época, ele explicou que “os vírus são os grandes maestros da orquestra da vida, os mensageiros e agentes de troca entre o mais diverso patrimônio genético”. E lembrou que nosso genoma incorpora elementos virais.

O alerta visa lembrar que esta não será a última pandemia enfrentada pelo mundo. É preciso nos prepararmos ao invés de achar que está tudo sob controle.

A afirmação de que o vírus não poder ser o vilão da história foi lembrada por Adriana Saldanha, diretora-geral da Fliss, durante um bate papo online realizado, no sábado 29. O escritor e biólogo lembrou que é necessário que aprendamos a linguagem do vírus. A saúde da civilização moderna, apontou, nasce dessa compreensão e desse equilíbrio. “Uma parte grande, cerca de 10% dos nossos genes, não são humanos, mas fragmentos e bactérias que foram incorporados. Não somos tão importantes como pensamos”, alerta o escritor e biólogo.

Ter consciência disso e viver sem fazer drama é um dos primeiros aspectos para evoluirmos. Uma importante lição que ele ensina é nos desfazermos da ideia equivocada de um poder absoluto enquanto sociedade e indivíduo. “Seria importante que escola e família ensinassem a conviver com a falha, o erro e a ignorância. É importante enfrentarmos o medo, uma vez que ele não nos ajuda.” O medo a que ele se refere é o medo do caos e da imprevisibilidade.

Sobre o pós-pandemia, Couto não parece estar muito otimista. Ele lembrou que, muito antes da covid-19, o mundo já assistia à falência de várias instituições e citou a dificuldade de tornar hábitos simples uma rotina em determinados lugares do mundo. “Dizem que devemos lavar as mãos, mas a maior parte dos moçambicanos não têm acesso à água e nem ao sabão”, lamentou.

Dos grandes autores que impactaram Couto, o escritor destaca o português Fernando Pessoa e o russo Anton Tchekhov. O primeiro o fez abrir a mente não só para a literatura, mas especialmente para a compreensão e aceitação dos conflitos internos. “Somos feitos de muita gente. Parece algo banal, mas não é.”

Isso se refere ao corpo físico do homem e também à oralidade. “A biologia me deu isso. Sou humano e sou feito de várias outras criaturas que existem dentro de mim. Eles me fazem ser quem eu sou”, comentou o escritor que defende que todas as disciplinas, incluindo química, física e matemática, sejam ensinadas como a literatura. A partir de histórias.

Baseado em Maputo, capital de Moçambique, Couto lembra das riquezas de seu país. São 25 línguas presentes no cotidiano e várias culturas vivas.

sábado, 5 de setembro de 2020

PROCURAR SOLUÇÕES

Sociedade criativa deve procurar soluções 'fora da caixa' | Blog John  Richard
Cientistas sociais do futuro encontrarão na pandemia farto material de pesquisa. Eles terão o que nós não temos: o benefício da passagem do tempo, que filtrará as potencialidades que o momento atual abre e que se cristalizarão nas escolhas e na ação dos diversos agentes sociais. O privilégio que nos resta é o de mapear as possibilidades, dilemas e ensinamentos que a pandemia nos lega, e que podem nos orientar como cidadãos na procura de um futuro melhor para nossas sociedades.

A pandemia nos apresentou em forma nua e dramática um problema sempre presente na sociedade: a vida social exige conviver com valores contraditórios, que nos obrigam a hierarquizar, dosar e negociar as demandas de cada um. Como responder às exigências de controle da epidemia e salvar vidas, e às da economia, mas também da educação, do equilíbrio psicológico, tudo isso buscando preservar a privacidade frente ao uso de sistemas de vigilância eletrônica?

Alguns governantes, como no caso brasileiro, ignoraram o conhecimento científico, negando a importância da doença e promovendo medicamentos sem comprovação, tudo em nome de “manter a economia funcionando”, baseados em cálculos eleitorais. A reação a esta atitude ignorante e irresponsável não deve nos levar, por outro lado, à suposição de que a ciência pode nos dar respostas unívocas do que deve ser feito.

Procurar soluções exige, em primeiro lugar, a capacidade de utilizar o conhecimento científico disponível, mas se a ciência é o ponto de partida, as respostas são decisões políticas que cabem às autoridades públicas. Devem ser julgadas pela sua capacidade de maximizar o bem comum.

A pandemia levou ao centro do espaço público um personagem geralmente relegado às margens: os especialistas em saúde pública. Que a disciplina preponderante nos meios de comunicação, a economia, tenha perdido espaço para a medicina, representa um importante corretivo para o debate público e para a consciência cívica da população. Essa correção nos lembra que o primeiro objetivo da uma comunidade é preservar a vida, e, portanto, o sistema de saúde deve ter um lugar prioritário na política nacional. Isto sem mencionar a necessidade de reconhecer e prestigiar os funcionários do sistema de saúde, em especial os que trabalham nos hospitais, como se viu em muitos países do mundo. No Brasil, o governo federal nada disse a esse respeito. E a sociedade, exceções à parte, não fez ouvir sua voz de apoio como deveria.

A centralidade que os especialistas da área devem ter em situações de crise de saúde pública é inegável — o que não significa que caiba a eles a decisão última sobre o que deve ser feito. Como em toda disciplina cientifica, além de diferença de opiniões, a saúde pública se orienta por um único critério, e por mais fundamental que ele seja, a vida em sociedade não pode ser reduzida a uma única variável. A melhor escolha, como ensina a teoria dos sistemas, é aquela que se utiliza de múltiplos critérios.

Em vários países, governos formaram comissões multidisciplinares para enfrentar a pandemia, e, quando necessário, assumiram posições divergentes dos especialistas em saúde pública. Recentemente, o Ministro da Educação da França foi perguntando por que se decidiu pela reabertura das escolas, divergindo da opinião dos epidemiologistas, e respondeu que, tomando todas as precauções possíveis, devia levar em conta vários critérios para assegurar o bem público. Não se trata de o político desconhecer ou se colocar acima do conhecimento cientifico, mas de assumir o papel que lhe foi delegado pelo voto, como responsável último pelas decisões e suas consequências, pelos rumos que o país deve tomar.

O conflito entre a liberdade individual e a proteção do bem comum, foi colocado em forma aguda durante a pandemia. O poder público, em nome da preservação da comunidade, pode limitar a liberdade individual, seja de movimento, de expressão, ou impor medidas, como a vacinação obrigatória ou uso de máscaras?

Não é aqui o lugar de entrar nos meandros de um tema complexo. O que nos interessa indicar são algumas lições que podem ser retiradas da experiência recente durante a pandemia.

A liberdade é um valor fundamental numa democracia. Como todo direito, ele exige sua delimitação legal para assegurar que a liberdade não seja utilizada para produzir danos em terceiros. O respeito às regras de quarentena, a utilização de máscaras, o distanciamento social, são medidas necessárias para assegurar o bem-estar público. A questão que se coloca é como assegurar que elas não eliminem a possibilidade de expressar o desacordo e o protesto social.

Situações sociais extremas, como uma pandemia ou uma guerra, esticam ao limite a possibilidade de aplicar normas gerais que asseguram as liberdades individuais. No caso de uma pandemia, a expressão individual de desacordo com políticas públicas, como não usar máscaras ou não manter a distância social, é uma afirmação egoísta, quando não narcisista, que acarreta grave dano à sociedade.

O que me parece questionável, sim, é que se negue o direito a realizar manifestações coletivas de protesto. Certamente que manifestações públicas, em situação de pandemia, apresentam um enorme risco de contágio. Por outro lado, proibi-las não só retira do público um recurso fundamental de participação política como também permite que o Estado, ou grupos políticos, possam se aproveitar da situação.

Não foi circunstancial que a movimentação em torno do presidente Bolsonaro a favor do AI-5 tenha acontecido durante o início da quarentena, aproveitando de que as pessoas estavam isoladas nos seus lares. As manifestações de rua contra o movimento golpista, se é de lamentar que muitos manifestantes não tenham tomado os cuidados suficientes para se proteger do contágio, foi uma declaração dos cidadãos que a defesa da democracia se sobrepunha até às medidas sanitárias.

Um dos paradoxos do caso brasileiro, nesse sentido, é que o grupo que empunhava a bandeira da liberdade para desconhecer as medidas de saúde pública o fazia para manifestar apoio a um “novo AI-5” — isto é, propondo a censura e a destruição da liberdade. Aliás, um fenômeno similar ao que acontece em torno do debate sobre a regulação das fake news. Aqueles que são contra, são os mesmo que utilizam as redes sociais para divulgar mensagens que visam a destruição das instituições democráticas e a promoção do autoritarismo.