sábado, 31 de agosto de 2019

NÓS ERA VERDE E NÃO SABIA.


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Tem gente que pensa que essa "onda verde" de preocupações ecológicas, sustentabilidade, consumo consciente, é coisa dos tempos modernos. Nem tanto. O que mudou, e muito, foi a intensidade e competência do marketing que hoje se faz em torno de ações que, antes, eram naturais.
Quando eu era menino, ou seja, ainda dentro do nosso tempo histórico, meu e do caro leitor, as garrafas de leite, de refrigerante e cerveja eram de vidro e deviam ser devolvidas na hora da compra de outra unidade. A loja mandava os "cascos" vazios de volta às fábricas onde eram lavados e esterilizados, podendo, assim, ser reutilizados inúmeras vezes.

A vida se concentrava nos bairros, mas se precisássemos ir ao centro da cidade para uma consulta médica ou ir ao dentista, por exemplo, em geral subíamos escadas, porque não havia escadas rolantes.

De volta pra casa, caminhávamos até o armazém da esquina para fazer compras na caderneta. Para quem não sabe, a caderneta era usada em estabelecimentos comerciais tipo padarias, farmácias, vendas e assemelhados. O balconista entregava o produto e anotava o valor a lápis, na página onde havia o nome do freguês. No final do mês era só ir lá, somar e acertar. Simples como a vida.

Não havia super nem hiper-mercados, com estacionamentos caros e lotados de carros de 300 cavalos de potência usados para andar dois quarteirões. A polêmica sobre o uso das sacolinhas plásticas nem passava pela cabeça dos consumidores que levavam, de casa, uma sacola de pano ou de lona listrada que era usada quantas vezes fosse necessário. Isso quando a montanha, ou melhor, o produto não chegava a Maomé através de um ecológico delivery: de bicicleta, vinham a nós o verdureiro, o padeiro, o peixeiro, o leiteiro e outros vendedores a quem conhecíamos pelo nome e pela qualidade dos produtos oferecidos. Fui um destes entregadores bicicleteiros no bolicho do meu pai em Gramado.

As fraldas dos bebês eram lavadas, porque não havia fraldas descartáveis. Aliás, a palavra 'descartável' era uma ilustre desconhecida. Para secar as fraldas de pano, energia eólica e solar, ou seja, o varal. Nada de turbinadas e barulhentas máquinas de lavar e secar. E lá em casa, com a escadinha de filhos, o varal era sempre uma festa onde "nossas roupas comuns, dependuradas na corda, qual bandeiras agitadas, pareciam um estranho festival..."

E as roupas eram mesmo "em comum". Eu, sendo o mais velho daquela penca de irmãos, tinha o privilégio de inaugurar a camisa do uniforme escolar. Os irmãos menores iam "herdando" as roupas que tinham sido dos irmãos mais velhos, que eram usadas, cerzidas, ajustadas até a exaustão. E a gente achava essa reciclagem a coisa mais natural do mundo.

Havia só uma tomada em cada quarto, e não um quadro de tomadas em cada parede para alimentar uma dúzia de aparelhos. E nós não precisávamos de um GPS para receber sinais de satélites a milhas de distância no espaço, só para encontrar a pizzaria mais próxima. A pizza era feita em casa mesmo.

Naquela tomada ligava-se uma única TV, uma só pra todo mundo da casa, e não uma TV em cada quarto. Sem controle remoto, ligar e desligar, mudar de canal, ajustar o som e mexer na antena exigiam constantes exercícios abdominais no senta e levanta do sofá. Mas nem precisava de TV, pois havia um cinema "Splendit" em Gramado e a gente ia a pé para a matinê.

Naquela era pré-McDonalds, terminado o filme, voltávamos correndo pra casa para curtir o lanche. Nada de Hambuguer, X-Burguer, X-Tudo. Sem praça de alimentação, sem as geringonças elétricas e eletrônicas que fazem tudo por nós, minha mãe, avó e tias colocavam a mão na massa no preparo de roscas e biscoitos caseiros, bolos fantásticos, doces inesquecíveis. E cada uma tinha sua especialidade.

Ninguém fazia empadinhas como tia Nilda, caçarola italiana como tia Loni, biscoitos de polvilho torcidinhos como vovó Ella, capa de canudinho (que a gente recheava de doce de leite na hora) como tia Elli, bolo como tia Iracema, broa de fubá como dona Tutu e outros quitutes cuja lembrança dos sabores fazem minha memória salivar.

E mesmo com essas delícias nada diets à mesa, éramos magros e atléticos (com perdão da palavra), sem necessidade de dietas mágicas, sibutraminas e moderadores de apetite. Exercitar-se era comum no dia a dia, sem precisar ir a uma academia (que nem existiam) ou usar esteiras que também funcionam a eletricidade e hoje viram varais na área de serviço dos nossos modernos "apertamentos".

Naqueles tempos não se usava um motor a gasolina para aparar a grama. Utilizava-se um tesourão ou um cortador que exigiam músculos. Mas isso foi num tempo em que havia quintais e gramados. Hoje, em tempos de playgrounds de cimento e campos de grama sintética...Sem playgrounds, nossa diversão era o futebol no campinho, as brincadeiras - bente-altas, pique-esconde, mãe-da-rua, garrafão e outras molecagens, sempre na rua, num tempo em que ser moleque e estar na rua eram as coisas mais naturais e saudáveis do mundo. Bebíamos água da bilha ou do filtro de barro, em canecas de alumínio que faziam com que a água parecesse ter saído diretamente da fonte. Nada de copos descartáveis ou garrafas pet que tornam-se lixo por séculos e séculos amém.

A caneta tinteiro Parker 51 do meu pai era recarregável. Para fazer a barba, ele amolava sua própria navalha, ao invés de jogar fora todos os aparelhos 'descartáveis' quando a lâmina fica sem corte.Ninguém gastava horas de estresse e litros de combustível para ir e voltar do trabalho. As pessoas tomavam o ônibus sem atropelos, sem congestionamentos, sem hora do rush. Íamos à escola a pé ou de bicicleta, ao invés de usar a mãe como serviço de táxi 24 horas. É verdade que éramos bem menos e vivíamos menos assustados, pois não havia os Datenas para nos aterrorizar. No Estádio
 do gramadense,torcidas, sentadas lado a lado, sem divisão, gritando "cachorrada!" e a outra respondendo, "refrigerados!". Na verdade, já éramos ecológicos e tínhamos uma vida absolutamente sustentável.

Bons tempos, em que a gente era verde e não sabia...

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

QUANDO A FUMAÇA DO GÁS LACRIMOGÊNEO BAIXAR

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Faz tempo, constatei que o maior erro de um dos políticos mais falados da história desse país, o mineiro Juscelino Kubistchek, foi levar a capital do país para o Planalto Central. Brasília ficou longe demais do Brasil o que permitiu que lá se desenvolvesse e proliferasse uma classe política cada vez mais distante e divorciada dos cidadãos que a elegeram.
Duvida? 

Se você é capaz de lembrar o nome do deputado federal ou do senador no qual votou nas últimas eleições, pergunte a si mesmo: ele poderia se apresentar de cara limpa diante dos manifestantes que começam a enchem as ruas por todo o país?
Adianto a resposta; NÃO! Seria rechaçado e expulso, se desse sorte.

Aliás, uma das interrogações que pairam sobre esse momento que vivemos é: onde andam os nossos políticos? Cadê as nossas "lideranças"?
Repito o que já disse, devem estar reunidos com seus marqueteiros e aspones, sussurrando a meia voz: "Imagina na Copa...".

Um dos slogans cantados pela multidão, Brasil a fora , que mais me chamou a atenção foi: "o povo, sem partido, jamais será vencido!".

Há um cansaço arraigado, uma descrença profunda nos políticos e partidos hoje estabelecidos, o que traz à tona um grande perigo; imaginar que podemos avançar política e socialmente abrindo mão da democracia representativa, por maior que seja a sua crise.

Alguns amigos, em conversas que temos mantido, expressam receio de que a situação, seguindo sem controle das autoridades, pode gerar o pretexto para que se pense numa guinada à direita, a modo de 1964. Em nome da lei da e da ordem, contra a baderna e a desordem, uma intervenção militar, um outro golpe?

Aviso de quem já sofreu com essa experiência: cuidado, meu amigo, na época dos militares no poder a corrupção e a bandalheira só eram menores que a censura. Doía tanto quanto dói hoje, só que ninguém podia reclamar. E, detalhe, as balas não eram de borracha...

Um golpe, uma intervenção militar não seria uma solução e nem creio que haja clima para tanto, mas sei que a ideia é atraente para muita gente.

O clima de baderna me faz lembrar um episódio acontecido diante das barricadas do Quartier Latin, na Paris de 1968, quando Lacan disse aos estudantes: "Como revolucionários, vocês são histéricos clamando por um novo chefe. E conseguirão".

Será que as multidões hoje, nas ruas do Brasil, expressam tão somente o histérico desejo de um chefe, um líder, um guia, um salvador da pátria?
Já tivemos muitos, e o último, Bolsonaro, sepultou sua biografia ao homenagear Ustra e falar bobagens.

Antes dele, tivemos um certo Fernando Collor, de triste, presente e atuante memória.
Não, salvadores da pátria, nunca mais...

Volto, então, à pergunta inicial: se nenhum dos políticos dos quais me lembro teria cara, coragem e dignidade para participar de uma manifestação nas ruas da minha cidade, se a alternativa de intervenção militar seria um mergulho nas trevas, qual a saída?
Não há saída, há caminho e construção. E, para mim, o trajeto é bem claro: começa na minha casa, passa por uma urna eleitoral e caminha firme para a construção, enfim, de um país do qual a gente possa, de verdade, se orgulhar.

Depois que a poeira do gás lacrimogêneo baixar, o que vai restar é um país pra gente reconstruir. Construção demora, mas é preciso começar.

Por isso, decidi minha primeira demão: nas próximas eleições não votarei em ninguém que já tenha sido eleito e cumprido um mandato. REELEIÇÃO ZERO!!! De quem quer que seja.
Não é para passar o país a limpo? Então radicalizei. JÁ TE VI E NÃO GOSTEI!!!

Qual um moderno Diógenes, vou sair à rua com o título eleitoral à mão, meu senso crítico a modo de lanterna, em busca de gente nova, ainda não contaminada. Cansei dessa história de algumas maçãs podres no cesto. Este cesto é que está podre! Vou trocar logo o cesto todo com tudo o que ele contém!

Já pensou, Brasília, as Assembléias Legislativas dos Estados, os palácios de governo amanhecerem no dia 1° de janeiro  com uma longa fila de caminhões levando a mudança de TODOS os políticos que há anos ali instalaram suas bundas parlamentares e
executivas, produzindo tudo isso contra o qual estamos protestando nas ruas? Ah, dirão muitos, isso é impossível.

Até alguns dias atrás havia tanta coisa impossível...
Hoje sei, utopia não é um sonho impossível. É rumo. É pra lá que a passeata vai. Quando vai chegar? Não sei. Mas vou junto.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

UNIVERSO PARALELO

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Leio na internet, que o PSDB encomendou pesquisa para saber o que querem os eleitores visando a ajustar o discurso dos seus candidatos aos anseios da população.

A coisa funciona mais ou menos assim: escolhido o nome, de acordo com os interesses e poderes dos grupos partidários, faz-se uma pesquisa sobre os humores do eleitorado e os marqueteiros colocam-se em campo para ajustar fisiologicamente o áudio e o visual do candidato à moldura da campanha eleitoral.

A nota cita o PSDB, mas a prática é generalizada entre os partidos.Aliás, o que mais há nesse país é a tal da "prática generalizada entre os partidos".
Vejamos, por exemplo, os fatos que ocupam, hoje, os espaços nobres da mídia tupiniquim:
Começa mais uma etapa da Lava Jato, para quem não sabe ou se esqueceu, é aquele episódio que levou à condenação de diversas figuras, entre elas algumas que ocupavam privilegiadas poltronas, nos gabinetes dos mais altos poderes da República. Lula e o PT não sabiam de nada.
Escândalo nas licitações no metrô de São Paulo. Por anos a fio, empresas fraudavam licitações de bilhões de reais, eu disse bilhões, para a construção e ampliação do metrô de SP. O PSDB de FHC, Covas, Serra e Alckmin não sabia de nada.

Ou seja, o desconhecimento da realidade é uma das "práticas mais generalizadas entre os partidos" desse país.

Volto a bater em antiga tecla; o mundo político brasileiro criou uma realidade, na verdade um universo paralelo, onde vive uma casta com padrões de comportamento absolutamente estranhos e avessos aos comuns mortais da nossa pátria amada.

No mundo real, em que vivemos nós, os tais comuns mortais, a semana de trabalho tem seis, às vezes sete dias, a gente rala no trânsito, paga todos os impostos, visíveis e invisíveis, pagando dobrado, já que paga pra existir o SUS, mas tem que pagar Plano de Saúde, paga o INSS, mas tem que pagar Previdência Privada, paga pela segurança pública, mas tem que contratar segurança privada e instalar a parafernália eletrônica que registra, dia a dia, o nosso medo, paga pela Educação, mas tem que pagar Escola Particular. É assim que (não) funciona.

Enquanto isso, no universo paralelo, os candidatos começam a se reunir com suas competentes equipes, comandadas por iluminados marqueteiros, pagos a peso de ouro, via caixa 2, para saber "o que aquele povo do lado de lá está querendo".

O cenário, hoje, apresenta a novidade das manifestações. É um quadro, até aqui, inédito. A última vez que algo parecido aconteceu foi no impeachment do Collor. Aliás, em 15 de agosto, comemoraram-se exatos 27 anos da renúncia do "caçador de marajás", em 1992. Terá nossa consciência política alcançado a maioridade cívica?

Sou um otimista por opção de fé e de vida. Acredito (e nem sou gremista) que estamos sempre evoluindo para o Mais. Lentamente, com retrocessos penosos, decepcionantes, mas evoluindo.
Mas não podemos baixar a guarda. Do lado de lá do universo, eles estão se organizando para 2020.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

O SEXTO SENTIDO.


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"Todo dia ela faz tudo sempre igual...", cantou o Chico, numa interpretação inesquecível, onde dividia palco e voz com o Caetano.
Eu também faço, quase todos os dias, coisas iguais. Não tenho dificuldades com a rotina. Há muito aprendi que uma das sabedorias preciosas da vida é descobrir o extraordinário no ordinário, no comum, no cotidiano. A rotina, aliás, é um espetáculo sutil no palco do cotidiano, uma ilha cercada pelo imprevisível por todos os lados.

E assim, apesar de ilhado naquilo que é sempre o mesmo, não estou condenado a viver na mesmice. Há que aguçar os sentidos. Os seis. Seis?

Pois é. Os sentidos ordinários nós conhecemos e identificamos bem; visão, audição, olfato, tato e paladar. Mas qual seria o tão falado sexto sentido?

Há controvérsias. Há quem diga que é a intuição, o pressentimento, a sensibilidade para perceber o "mais" que se esconde na banalidade das coisas e pessoas com as quais interagimos no cotidiano. Pode ser. Mas tenho por mim e para mim que o sexto sentido é, na verdade, a memória.

A memória humana é um prodígio. Capaz de arquivar experiências das quais sequer chegamos a fazer um registro consciente, não conhece limites de tempo e espaço. Enquanto a memória dos computadores pode ser medida em megas, gigas e bytes, a memória humana pode ser um oceano do qual não visualizamos começo, meio e fim.

Desde a memória intrauterina, há quem creia em memória de vidas
passadas, passando pela memória pessoal, coletiva, até o exercício da esperança, que é a memória do que virá, do que podemos ainda fazer acontecer, a memória é um sentido poderoso. Por ela, podemos "nos deixar afetar" pelos outros sentidos.

Por exemplo: na minha família há uma tradição. Somos três irmãos. No dia do aniversário de cada um, já sabemos; o prato principal, no almoço da casa da minha mãe, é o preferido do aniversariante.
Entra em cena a memória...

Na tela das lembranças, me vejo chegando à casa de Dona Leonida. Da porta da memória, aspiro o perfume do frango ao molho pardo com angu e quiabo. Ouço o burburinho das vozes dos meus irmãos, à minha espera. Sinto o toque dos abraços, dos beijos, do afeto fraterno que nos une. À mesa da saudade saboreio a delícia ancestral da receita que vem de minha mil avó.
aprendi a rezar com os sentidos, inclusive, e especialmente, com a memória. Ela me conecta com sentimentos preciosos como a gratidão, o perdão, a saudade. A memória me revela a beleza do ontem, do hoje, daquilo que se faz sempre.

A memória é o avesso da mesmice. Iluminada pela vida interior, ela permite vislumbrar, nas frestas do cotidiano, centelhas do Sagrado...
Como naquela segunda feira, 2 de maio de 2011. Mais um dia, igual a tantos outros dias. No caminho para o trabalho, cenas e personagens que são meus velhos conhecidos.

Sob o céu azul de aquarela desse outono enlouquecido, senhorinhas diligentes varrem intermináveis passeios.
Um mendigo, tão baldio quanto o canto da marquise sob a qual dormiu, passa por mim, cinzento, olhar vazio, esgarçado, abraçado a um cobertor ensebado, puído e roto, levando consigo e em si todas as suas posses; casa, quarto, banheiro, abrigo, miséria e saudade...

No rádio, Obama anuncia a morte de Osama. Não, não é um jogo de palavras. É o jogo do poder, do ódio, da vingança travestida de justiça.

A tudo contemplo, tudo rezo, no amanhecer de uma segunda-feira como tantas, em que, como todos os dias, sou chamado a fazer tudo quase sempre igual...

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

A BELA FLOR DE LOTUS

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É difícil encontrar um país da Ásia onde a flor de lótus não seja considerado sagrada. Na tradição budista e em muitas outras crenças orientais a imagem do lótus está ligada à elevação e expansão espiritual.

A pureza e a harmonia equilibrada das pétalas da flor estão associadas à própria história de Sidartha Gautama, o Buda, que deu início ao seu caminho de iluminação ao contemplar a miséria que existia fora dos muros do palácio onde vivia.

A flor branca e delicada que emerge de águas lodosas, revelando toda a sua beleza e força, é um símbolo poderoso e transreligioso do convite a que todo ser humano possa evoluir em direção ao Mais, ao Magis para o qual foi sonhado e criado.

Lembrei-me dessa imagem após assistir o filme "Além da vida", de Clint Eastwood. Assim como o lótus, o cineasta americano tem uma trajetória surpreendente, tanto como ator quanto como diretor. Foi o policial "Dirty Harry", durão e violento, no início da carreira. Repetiu o figurino na pele de outros heróis que abatiam inimigos a tiros e pancadas.

Foi o "Destemido senhor da guerra", de muitos outros filmes, de muitas guerras, sempre com armas ou punhos prontos a disparar contra alvos fáceis e previsíveis.

Mas, aos poucos, o tempo foi agindo no coração, na mente e na lente daquele Rambo dos anos 1960 e 1970 e o personagem durão foi mudando o foco da sua câmera. Da lama de violência em que seus filmes estavam atolados foi surgindo uma flor leve, delicada, sensível.

O primeiro sinal de que algo novo estava germinando na alma do cineasta talvez tenha sido o filme "Bird", (1988) onde ele contou a vida do saxofonista Charles Parker, um dos mais famosos jazzmen americanos.

Em 1992 ele ganha um surpreendente Oscar ao voltar ao genero wester em "Os imperdoáveis". Ao lado de Gene Hackman e Morgan Freeman, revolucionou a previsível narrativa do bang-bang ao colocar em primeiro plano os dramas íntimos de seus personagens.

Em 1995, com "As pontes de Madison", ele se deixa levar de vez pela poética das relações humanas, numa direção e interpretação inesquecíveis, ao lado da fantástica Meryl Streep.

Sem abandonar a imagem de rude e durão, mas também sem fazer concessões ao pieguismo fácil, tão ao gosto de Hollywood, Clint vai ajustando sua câmera sem nenhum pudor para dar um close na beleza possível da alma humana, capaz de emergir do lodo, como em "Menina de ouro" (2004), ou "Gran Torino" (2008).

Chega, agora, com esse "Além da vida" (Hereafter). A narrativa e o roteiro se equilibram o tempo todo num fio de navalha sobre o qual qualquer escorregão pode transformar a história num dramalhão sem remédio. Mas o diretor não deixa que isso aconteça. Sem pressa, vai deixando emergir a delicadeza perdida no lodo do cotidiano.

Apesar de ser construído a partir de um tema polêmico, a vida depois da morte, o filme não faz proselitismo nem defende com paixão religiosa essa ou aquela posição ou conceito. Ao contrário das certezas dogmáticas, expõe nossa dificuldade em lidar com a ideia do "depois daqui", uma tradução literal do título original.

A questão da vida após a morte é apenas arranhada, ao contrário do recente e detalhado "Nosso lar", sucesso nas telas brasileiras de 2010. O que acontece no post morten é mero pretexto para que o filme nos fale da delicada relação do ser humano com seus limites, medos, buscas e esperanças.

Ao espectador, só resta contemplar a instigante, questionadora e por vezes incômoda beleza das pétalas de lótus que vão se revelando uma a uma, se entrelaçando, entre personagens e cenas, até o final igualmente delicado e suave.

Não conheço Clint Eastwood, não sei de sua vida, de suas idéias, ou de seu comportamento pessoal. Sei que sua trajetória cinematográfica reaquece minha fé no ser humano, num momento em que, pelas telas da nossa mídia, corre um rio de lama, morte, destruição, dor e sofrimento, na anunciada, previsível e absurda tragédia das enchentes.

Entre uma imagem e outra me pergunto: onde e quando florecerá, entre nós, a tão sonhada e desejada flor de lótus?

domingo, 25 de agosto de 2019

PARA UM MELHOR FIM DE SEMANA: A MOÇA NA JANELA.


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Eu passava, ou tentava passar, de carro, pela rua congestionada no acesso ao meu bairro, quando a vi, ali, distraída: uma moça na janela. Coisa rara de se ver na paisagem frenética da cidade; uma moça na janela.

Não que seja raro que elas estejam lá. Raro é que nós, os passantes, tenhamos tempo ou sensibilidade para olharmos as janelas e suas possíveis moças.

Mas ela estava lá, enquanto eu passava. Ou tentava.
O trânsito rugia, logo depois das seis da tarde. Motores e motoristas resfolegando, ameaçando os carros ao redor, engrenagens, olhares e dentes trincados, pés acionando nervosa e inutilmente o acelerador travado pela embreagem, a pressa estéril, a ansiedade frustrada.
Mas havia uma moça na janela.

Eu a vi num relance, nem perto, nem longe. Estava lá, um vulto, uma silhueta. Uma luz frágil às suas costas apenas delineava o perfil feminino adivinhado nos cabelos longos, caídos quase sobre os ombros, a mão esquecida, o olhar perdido, o cotovelo sobre o parapeito...

A moça sonhava na janela, e no seu devaneio me fazia esquecer, por um momento, a loucura à minha volta, a loucura em mim...
Drummond viu uma pedra no meio do caminho e a transformou em poesia. A moça na janela inundou tudo o que sou da mais profunda e silenciosa alegria. E, logo em seguida, de uma delicada e esquecida sensação de saudade...

Tive saudades das ruas da minha infância, onde havia tão poucos carros. Bateu em mim a nostalgia das janelas da minha adolescência, onde havia tão poucas moças, herança dessa família tão masculina. Saudades de outras moças da minha juventude, em outras janelas, vislumbres da paixão que, aos poucos, faria de mim um homem inundado de sentimentos.

Saudades da irmã, da filha que não veio. Saudades, enfim, do feminino em mim...
E assim, num átimo, em meio à saudade, cessou a pressa, calaram-se os motores, silenciaram as buzinas. Meus lábios, até então crispados, angustiados, permitiram-se um suave e terno sorriso de infância.
E em mim sorria o menino que fui, um dia. Um sorriso pascal, mais saboroso que o mais gostoso dos chocolates...

Nem tudo está perdido, pensei. Havia uma moça na janela. E sua presença, ali, anônima e intensa, era quase a garantia de que, mesmo na cidade grande, na loucura do trânsito das seis da tarde, ainda havia tempo e lugar para sonhar e viver poesia.

Mas então, simultaneamente, como se fosse um passo de dança exaustivamente ensaiado, a luz verde do sinal brilhou à minha frente e a moça, girando em câmara lenta, sumiu por trás da cortina que se fechava.

O choque de realidade percorreu meu corpo no compasso das buzinas e dos motores que de novo roncavam, ferozes, à minha volta. No retrovisor adivinhava os lábios crispados dos vizinhos de trânsito, as palavras, como rugidos, exigindo que eu engolisse logo os poucos metros possíveis cedidos pelo engarrafamento.

Mas na retina dos meus afetos, só havia a silhueta suave de uma moça na janela.

Só então me dei conta dos ombros relaxados, das mãos que tocavam suavemente o volante, os pés sem pressa, esquecidos entre o freio e o acelerador, o rosto descontraído, os lábios em teimoso e resistente sorriso.

Segui em frente e eu era outro. Ou, talvez, o verdadeiro eu mesmo. Aquele menino do tempo das saudades que ainda era capaz de contemplar e se reconhecer no vulto anônimo de uma moça na janela.
Tive mais sorte que Drummond, apesar de menos talento. Ele poderia tropeçar de novo, naquela pedra e nem sequer reconhecê-la. Eu posso, nessa crônica, dizer àquela moça que ela me humanizou um pouco mais, que sua presença ali, anônima e gratuita, foi um sopro de vida pascal na loucura de um dia que podia terminar tão somente cinzento, apressado, agônico e triste.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

TUDO OU NADA...

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Segundo a bela moça do tempo, na TV, o outono de 2019 teve início às 20h e 21min de um domingo, durante o equinócio de 20 de março, e vai durar 92 dias, 17 horas e 55 minutos.

Que precisão! Eu não consigo sentir tanta firmeza assim, com as loucuras do clima no nosso planeta azul. Há dias em que tenho a impressão de viver as quatro estações do ano comprimidas em 24 horas. Saio de casa, cedo, e é inverno. O outono começa ali por volta de 9 horas. O verão se faz presente ao meio dia, se estende pela tarde, até que a primavera chegue com o por do sol, colorindo mais um belo horizonte . As previsões do tempo me lembram "o samba do crioulo doido", do inesquecível Stanislaw Ponte Preta.

Sei que tem gente séria que questiona os alertas sobre as mudanças climáticas, as previsões sombrias nesses tempos de aquecimento global, mas não há dúvida de que alguma coisa está fora da ordem no que diz respeito às previsões meteorológicas.

Pode haver exageros, sim. Grandes eventos climáticos e manifestações da força brutal da natureza. Hoje, os efeitos devastadores desses eventos são maiores em função de fatores, como o aumento populacional com a consequente ocupação de áreas de risco, os contrastes econômicos que tornam países e populações pobres mais vulneráveis às forças destrutivas da natureza e o uso de tecnologias que implicam em alto grau de risco, como no caso dos reatores atômicos japoneses.

Tudo isso é verdade, mas é impossível negar as consequências da intervenção do homem na vida do planeta.

A minha vida reproduz, de certa forma, esse caminhar confuso das estações. Na infância tive o brilho da primavera. Tudo era semente e flor. Fui moleque de rua, num tempo em que ser moleque e estar na rua eram as coisas mais saudáveis do mundo. Na juventude, vivi a exuberância do verão onde tudo era promessa de frutos abundantes. A idade adulta trouxe o tempo da colheita, abundante, generosa.

No grisalho dos cabelos chego ao outono, limiar do inverno...Começo a perceber a necessidade de conferir o estoque, de verificar se consegui guardar no silo da vida o que me garanta enfrentar os rigores do tempo que virá.
Mas, por enquanto, sou outono.

Tenho apreciado momentos e pessoas que me falam da leveza e da suavidade, próprias do outono. Meu olhar contemplativo busca, cada vez mais, belos horizontes. Dentro e fora de mim.

Procuro ser fiel a velhos amigos e cultivo com prazer, esses pequenos prazeres que o cotidiano esconde e revela a quem já desenvolveu a sabedoria da busca pela simplicidade.

Tenho me percebido mais poético e apaixonado pelas pessoas a quem quero bem. Amo a vida e acho que ela vale ser vivida.

Essa leveza não me poupa de angústias, contradições e batalhas. Em algumas questões, como justiça e dignidade para todos, o sentimento é de urgência. Noutras, prefiro relaxar e deixar que a vida flua e encontre seu caminho.

Em algumas áreas, como a política, o sentimento é de decepção. Mas isso não traz desânimo ao meu outono. Convida a contemplar, com mais profundidade ainda, a paisagem à minha frente.

O outono traz temperaturas que convidam ao aconchego. Nesse aspecto gosto também do inverno, mas seus rigores nem sempre são confortáveis. Se o vento, para mim, é "noturna melodia" para muitos é apenas o frio que tortura e acrescenta sofrimentos a quem já tem tantos.

O aconchego do outono me faz mais poético. O engraçado é que percebi há algum tempo que minha sensibilidade poética tem sido muito tocada numa situação inusitada: quando estou dirigindo, no trânsito.

Ruas e estradas são, para mim, lugar de reflexão e oração. Elas traduzem um dos princípios que mais me atrai na espiritualidade: o de ser contemplativo na ação e ativo na contemplação.

Dirigir por ruas, mas especialmente por estradas, reúne, para mim, todos esses elementos. Eu estou parado no carro que se move (quando o trânsito permite...). Os cenários e personagens, em volta, são muitos e variados. Cada um com seu mistério a ser desvendado. O olhar atento, o coração a postos.

Um dia desses, num sinal fechado, paro numa esquina e espero. Passa à minha frente, um longo cortejo fúnebre. No primeiro carro, vai o caixão, as coroas de flores. Atrás, uma fila de outros veículos levando as pessoas que darão ao falecido (ou falecida) o último adeus.

Dentro de cada carro, como adivinhar o sofrimento, medir a saudade, perceber as conveniências sociais, superficiais...?
Parado no sinal, vejo a morte passar à minha frente, no seu cortejo final. Um arrepio e o verso vem:
"Minha fé anda desconfiada. Morrer: isso sim é que é tudo, ou nada..."

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

TELEFONE SEM FIO



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Quando eu era moleque de rua, num tempo em que ser moleque e estar na rua eram as coisas mais saudáveis do mundo, havia uma brincadeira chamada "telefone sem fio" que, entre outras, garantia a diversão para a meninada que precisava, ela mesma, inventar seus brinquedos. A gente se organizava numa longa fila e o primeiro falava ao ouvido do segundo uma frase. Para garantir a lisura da coisa (brincadeira também tem regras), a frase era escrita num papel que ficava no bolso do primeiro, pra conferir ao final.

Na sequência, o segundo repetia a frase ao ouvido do terceiro, o terceiro para o quarto e assim sucessivamente até chegar ao fim da fila. Então, o último dizia a frase em voz alta.
Era uma gargalhada só. O primeiro tirava o papel do bolso e lia a frase original, que não tinha nada a ver com aquela que chegou ao último ouvido.

Brincadeiras infantis são nossa primeira escola. Como a gente aprende com elas! Aliás, a coisa mais séria que uma criança sabe fazer é brincar. Brincando, aprende a se relacionar consigo mesma, com o outro, com o mundo, com a vida.

Eu, hoje um moleque oitentão, continuo brincando de aprender e aprendendo a brincar, tentando manter viva a criança que mora em mim. Esta criança, aos cinco anos, entrou pela primeira vez numa sala de aula, no Jardim de Infância. Nunca mais saí. 


Muitas vezes,  me lembrei do "telefone sem fio" da minha infância. Era como se eu fosse o primeiro e o último da fila.
Para garantir a fidelidade da informação, era comum recorrer a uma circular. Nem assim. Um texto pode ser lido em muitos contextos e lá no fundão da mochila dos alunos existe um "buraco negro" que suga todas as informações, recados, comunicados, convites e convocações. E aí, adeus...

Quantas e quantas vezes testemunhei, não com uma gargalhada, mas com constrangimento, a lenta descaracterização da mensagem entre o emissor e o receptor, entre a direção, a sala de aula, os alunos e as famílias.

Isso acontece não apenas na Escola...
No horário eleitoral gratuito, por exemplo, vejo hospitais e postos de saúde impecáveis. Médicos, enfermeiras, auxiliares sorridentes em seus impecáveis uniformes brancos. Instalações e equipamentos de primeiro mundo.

Na outra ponta do telefone sem fio vi, um dia desses, na TV, num quadro apresentado pelo Dr. Dráuzio Varella. Na matéria, uma jornalista que tinha um problema no pulso ia a vários postos de saúde pública em busca de uma consulta com um ortopedista. A via sacra foi gravada com uma câmera escondida.

A demora para o atendimento foi, em média, de 3 horas. E as consultas, quando aconteceram, duraram dois minutos. Era uma ponta do problema.

Num extremo, o que queremos, o que temos direito. No outro, lá, no fim da fila, a dura realidade.
A mesma coisa vale para a Educação, a Segurança Pública e para os meus conselhos aos meus filhos. Digo uma coisa hoje, ao ouvido do meu caçula, na esperança de que lá na frente seja compreendido. Para meu consolo lembro que muitos conselhos, óbvios ululantes, do meu pai só fui ouvir e acatar depois que eu mesmo me tornei pai.

E o conselho óbvio, hoje, é mesmo ululante: é necessário e importante investir em Educação, Saúde, Segurança, como diz o discurso de todos os candidatos, de todos os partidos. Mas o conselho, ou a frase, dito no início da fila vai-se perdendo ao longo do caminho, mesmo quando há investimentos reais em equipamentos, infraestrutura, modernização de instalações. Nossos homens públicos se esquecem da longa fila de pessoas que, em sequência, irão lidar com a informação, os equipamentos, o atendimento, o cuidado, até que ele chegue ao cidadão que está ali, em busca de uma boa escola para seu filho, uma solução para o seu problema de saúde, segurança para ir e vir do trabalho.

Concluo o óbvio não menos ululante. Posso reformar ou construir novos prédios, instalar, numa escola, posto de saúde ou delegacia, equipamentos de última geração. Se por trás deles há uma pessoa desvalorizada, desmotivada, com baixa autoestima, mal remunerada, acumulando vícios e espertezas, validando os rótulos que costumamos imprimir ao chamado funcionalismo público, o que vamos ver, ao final, será uma fila onde desfilam carência, desrespeito, descuido, desespero e desalento.

Diante desse quadro, quero dar, aqui, um testemunho pessoal.
Há cerca de três anos conheci um grupo que trabalha na Academia de Polícia Civil de Porto Alegre. São funcionários públicos, agentes de polícia, pessoas responsáveis pela formação de novos policiais. Quando fui a eles, levava comigo o preconceito formado ao longo dos anos, tal qual um rótulo carimbado nas minhas certezas. Conheci gente séria, humana, competente. Lutando contra tudo e contra o rótulo. Perdendo e ganhando, mas lutando. Cheguei ao fim da fila com um sorriso de esperança.

O pessoal da Acadepol RS me ensinou que é preciso investir em pessoas. De verdade.

No ano que vem vou ter, mais uma vez, oportunidade de encurtar a distância entre o início e o fim da fila. Esse é o sentido do meu voto. Depois da eleição, há que cuidar para que ele não se perca no longo caminho a percorrer entre o CONFIRMA que vou deixar na urna e as mãos do meu candidato.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

SONHAR COM O CORAÇÃO E CRER COM AS MÃOS

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Sempre que tem eleição desfila pelo horário eleitoral gratuito uma variada fauna de candidatos criados à imagem e semelhança de uma legislação que, em tese, pretende colocar todos em condições iguais e acaba por promover um espetáculo constrangedor que trafega entre o grotesco e o piegas, o cômico e o patético.

E, do lado de cá da telinha ou do rádio, o eleitor, se virando pra encontrar uma luz no fim do túnel ou, ao menos, perceber em que túnel está se metendo.

A TV de LCD pendurada na parede me faz pensar não num túnel mas numa caverna, aquela, do mito de Platão, onde os personagens nela encerrados viam as sombras projetadas por uma fresta de luz e acreditavam que aquilo era a realidade lá de fora.

300 anos antes de Cristo o filósofo grego já havia inventado a televisão...
Vendo as sombras que desfilam diariamente na tela da minha caverna, ou melhor, da minha TV, tenho a impressão de que há um movimento organizado, pensado, planejado para desmoralizar a imagem dos políticos de forma a evitar que pessoas de bem se sintam atraídas e motivadas a participar da Política. E se tal movimento há, ele tem sido muito bem sucedido, com a ajuda, claro, de boa parcela de suas "excelências".

Na geléia geral dos escândalos sucessivos, ampliados e repetidos de forma massiva na mídia, hoje, o que mais se vê é um quase generalizado desprezo pelos políticos e suas ações. Política virou sinônimo de corrupção, falcatrua, malandragem, quadrilha, bandidagem do colarinho branco. Daí, quando o tema vem à discussão é comum ouvir a frase, dita com expressão de nojo:

- "Odeio política!...".
O problema é que quem odeia ou não se interessa por política está condenado a ser governado por quem se interessa, e muito, por ela. E esse interesse pode ter as mais variadas motivações, as melhores e as piores possíveis.

Já disse aqui que ando meio desencantado com a forma como organizamos nosso modelo político. Penso que a democracia representativa funcionaria muito bem numa tribo onde todo mundo conhecesse todo mundo, as pessoas pudessem olhar nos olhos umas das outras, acompanhar a ação política diária, sugerir, cobrar, participar. Mas nesse mundão de meu Deus, de quase 7 bilhões de habitantes, a maioria anônimos e invisíveis, é muito difícil dar certo.

Mas então, pergunta-me o leitor, qual a alternativa?
As ditaduras ainda espalhadas pelo mundo são parte de uma resposta bem clara. Qualquer modelo de organização política, sem liberdade, não dá! Deixar decisões políticas nas mãos de uma meia dúzia, ou pior, de uma cabeça "iluminada" conduz, mais cedo ou mais tarde, à prepotência, à arrogância, à truculência, principalmente quando esse poder ganha ares messiânicos, contaminado pela dimensão religiosa. Regimes ditatoriais "teocráticos" ou não, são um passo seguro em direção à atrocidades.

Então, insiste o aflito leitor, como encontrar uma saída?
Inspiro-me, de novo, nos pensadores da História. Recorro a um mais recente, Berthold Brecht, um dramaturgo e poeta alemão do século XX, cujos trabalhos artísticos e teóricos marcaram profundamente o pensamento de várias gerações, inclusive a minha.

Influenciado pelo marxismo do início do século passado, Brecht escreveu, entre outras coisas, uma página que se transformou num ícone, pendurado nas paredes da juventude rebelde dos anos 1960 ao lado do poster de Che Guevara.

O Analfabeto Político

O pior analfabeto é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.

O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito
dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.

Mesmo com a queda do Muro de Berlim que decretou, aos olhos de muitos, o fim do socialismo real, o texto de Brecht não perdeu nada de sua novidade indignada, libertária, revolucionária. Continua por aí, guardado em algum armário, ao lado de um pôster empoeirado e de uma boina com uma estrela, à espera de que alguém se lembre de uma juventude que foi capaz de sonhar um mundo com mais luz e menos sombras, o que exige, com certeza, o resgate da Política como espaço de participação de todos os que buscam a construção desse mundo.

Assim, ao invés da gente se deixar tomar pelo desânimo geral diante de tanta mediocridade oportunista, entregando de vez e literalmente o ouro aos bandidos, é preciso buscar e construir espaços de participação, a "nossa tribo", capaz de dar voz às nossas propostas e sonhos.

Nesse sentido, uma experiência interessante são os Grupos de Fé e Política, formados por pessoas que participam e atuam em escolas, movimentos populares, sindicatos, igrejas, associações de bairro e outros espaços de organização social.

Algumas dessas pessoas se reúnem em grupos informais de reflexão, aprofundamento e celebração, buscando a formação do senso crítico que convida a uma ação consequente e coerente. Grupos assim se espalham por todo o Brasil. Em sua maioria são ecumênicos, não confessionais e não partidários. Estão abertos a todas as pessoas que consideram a Política uma dimensão fundamental da vivência da sua fé, e vêem a fé como o horizonte de sua utopia política, lembrando que utopia, na versão cristã, não é sonho impossível, é rumo. Para lá caminhamos.

Sendo assim, o Movimento Fé e Política pretende ser um serviço de formação e informação sobre questões de política, cultura, ecologia, ética e espiritualidade. Quer também reforçar, estimular e transformar propostas em gestos concretos, através de uma maior participação na vida política da cidade, do estado, do país, do mundo!
Volto a Berthold Brecht que disse em outro texto inspirado e inspirador:

"Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida. Estes são os imprescindíveis..."

Diante das sombras, das cavernas, das carências e contradições do mundão de meu Deus, optar por sonhar com o coração e crer com as mãos. Imprescindível...

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

O MEDO DO INFERNO DA DONA ANTÔNIA.

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Dona Antônia já havia passado dos noventa anos e dava por cumprida a sua missão aqui na Terra. Filhos criados, netos e até bisnetos já encaminhados, a vida começou a passar devagarinho à frente de sua vista miúda. Foi vindo uma canseira, uma preguiça imensa em ter que esticar os dias cada vez mais longos. Decidiu que era hora de abrir vaga para os mais novos e passar desta para a melhor.

Mas ao invés de encontrar paz e descanso na perspectiva do eterno repouso, o que brotou foi o medo terrível de uma ameaça que a acompanhava desde a longínqua infância: O FOGO DO INFERNO!
Era como se todos os sermões do Monsenhor Prado, mais as ameaças de dona Íris, no catecismo, tivessem saído da neblina do tempo e viessem assombrar como fantasmas à pobre dona Antônia. O pior é que a velhice, se limita braços, pernas, olhos e ouvidos, fechando portas para a realidade do aqui e do agora, deixa solta e até alimenta mais a imaginação. A quem não pode mais correr, ver, ouvir e até falar, resta o lembrar e o imaginar...

E nas lembranças e na imaginação de dona Antônia vieram todos os pecados (ou o que ela classificava como tal) de sua longa vida. Ao lado de cenas e personagens do passado surgiam o remorso e o medo, avivados pelo fogo do inferno. Não havia escapatória, dona Antônia estava frita, e o que é pior, por toda a eternidade!

Quem primeiro percebeu o drama foi Maria, a empregada, que era quem tinha mais paciência de ouvir os queixumes de dona Antônia. A parentada, ao saber da história, primeiro achou graça. Só mesmo caduquice, onde já se viu, a dona Tininha no inferno? Vai converter o capeta! Mas logo viram que o caso era sério. Dona Antônia sofria e se agoniava com o medo que a devorava.

Tio Haroldo era médico, o único dos filhos que se formara, e foi chamado para resolver a questão. Do alto do seu diploma diagnosticou:
"Bobagem mamãe, inferno é aqui mesmo, este seu medo é besteira..."
" Vade retro, Satanás, não venha me enrolar que ainda não cheguei em sua casa!", gritou dona Antônia, escondendo-se sob o cobertor depois de expulsar o Tio Haroldo como se fosse o próprio demo.


Carolina, uma das netas, estudante de Comunicação, tentou explicar que o inferno era uma invenção das padres para manter os fiéis sob controle. Levou uma bengalada na testa.

Em dona Antônia o medo estava agora misturado com a raiva, o que já era um outro pecado a carimbar seu passaporte para as profundas. A casa virou um inferno. Ninguém mais vivia em paz e dona Antônia não morria em paz...

Esgotadas todas as tentativas domésticas, resolveram apelar para a Santa Madre Igreja. Chamaram o Padre Candinho, santo homem, para abrir à dona Antônia as portas do Paraíso. Ele veio munido de sermão, benção, água benta, confissão, unção, Eucaristia e todo o arsenal capaz de garantir uma vaga à direita de Deus Pai.

Dona Antônia agarrou-se àquela tábua de salvação. Passou a vida a limpo. Lavou e enxaguou a alma no ouvido de Pe. Candinho. Confissão de mais de duas horas, pois além da dificuldade de se fazer entender, depois de aposentada a dentadura, eram noventa anos de pecados a apurar...

No finalzinho, quando Pe. Candinho já engatilhava a absolvição plenária que apagaria o fogo do inferno, dona Antônia arregalou os olhos apavorada e disse:

" Tô perdida! Tem um pecado que Deus não perdoa. Li na Bíblia. Pecado contra o Espírito Santo não tem perdão. Não tenho salvação..."
E dona Antônia foi buscar lá na sua meninice de 6 anos a lembrança de uma travessura que custara a vida de uma pobre pombinha. Tininha, levada, resolveu brincar com a ave como se fosse uma peteca... a coitada virou paçoca. Dona Eulália ralhou e prescreveu castigo. "Onde já se viu tamanha maldade com o bichinho? Quando morrer, Deus castiga!"

QUANDO MORRER, DEUS CASTIGA...

A frase ficou gravada nos labirintos da memória como uma maldição e voltava agora, condenação última, definitiva e sem perdão. Dona Antônia matara um parente do Espirito Santo e estava inapelavelmente FRITA!

A paciência do Pe. Candinho já estava derramando pelas beiradas. Num último esforço, ele reuniu todos os argumentos teológicos acumulados em anos de seminário e paróquias, nas milhares de aulas de religião e sermões do seu longo sacerdócio, para explicar à dona Antônia que Deus não é um carrasco vingativo, nem trabalha na polícia. Que Ele é um Pai amoroso que perdoa e acolhe a todos os seus filhos, mesmo os mais pecadores, que afinal somos todos nós. E além do mais, acrescentou o Pe. Candinho, vermelho como um pimentão, O ESPIRITO SANTO NÃO É UMA POMBA!!!

Tudo inútil. Dona Antônia entregava-se aterrorizada à maldição que a acompanhara por toda vida: O FOGO DO INFERNO A ESPERAVA!
Pe. Candinho já ia desistindo quando uma idéia iluminou-lhe o rosto.

Correu na Bíblia e localizou o trecho que procurava.
" Dona Antônia, a senhora está salva!"
"Salva o que, Pe. Candinho, eu tô é fudida" disse dona Antônia, já apelando para a ignorância e, em nome da caduquice, falando um palavrão, coisa que nunca fizera em toda a sua vida, ainda mais na frente de um padre, o que, agora, condenada como estava, não ia alterar muito a temperatura das fornalhas infernais que a aguardavam.

"Não, dona Antônia, tá aqui na Bíblia, Mateus capítulo 24, versículo 51, aqui diz que no inferno tem choro e ranger de dentes... a senhora não tem dentes, dona Antônia, não vai poder ficar no inferno!!!"
Dona Antônia aprumou-se na cama e com os olhinhos miúdos tentava ler o trecho que Pe. Candinho apontava com o dedo. Com muito custo soletrou o versículo salvador.

Dona Antônia não teve dúvida. Reuniu a parentada, despediu-se de todos, fez as recomendações de praxe e acrescentou uma, especialíssima:

NÃO ME ENTERREM DE DENTADURA!!!
Aí, deitou-se de novo, virou pro canto, deu um suspiro profundo, sorriu, morreu e foi pro céu...