domingo, 22 de março de 2020

A ILUSÃO DA HIPER-CONEXÃO.


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Este chamamento não contém tanto a evocação nostálgica de um tempo perdido, onde a família era o lugar idílico para troca e comunicação. No tempo dominado pela figura patriarcal do pai patrão, com muita frequência, o espaço da palavra era sequestrado por sua voz, cujo timbre severo obtinha um silêncio assustado. Portanto, não se trata de mendigar um tempo que irreversivelmente ficou para trás e de modo algum ideal; não se trata de olhar nostalgicamente para o passado para encontrar uma solução para os problemas de nosso tempo. A família não é uma instituição ideal, como nenhuma instituição humana ó é.

Como pais, sempre tateamos no escuro, precários, em dificuldade. Ninguém, muito menos o pai disciplinador do patriarcado, possui a chave para tornar a vida juntos frutuosa. Mas nosso tempo coloca um problema adicional: existe uma tendência cada vez mais difundida - especialmente no mundo juvenil - (que eu recentemente chamei de "neo-melancólica") à fobia, ao retraimento social, ao fechamento. Nossos filhos tendem a construir nichos separados que, em vez de protegê-los da vida, os separam da vida. É um atalho que também inclui o mundo dos adultos: preferir o fechamento à abertura; a defesa da vida ao encontro com a plenitude da vida.

A ilusão da hiper-conexão é a de colocar nossas vidas em relacionamento com aquelas dos outros quando, ao contrário, muitas vezes separa do relacionamento. Mas todo relacionamento, incluindo aquele familiar, não é protegido das dificuldades, dos mal-entendidos e dos conflitos. Talvez por esse motivo, o relacionamento sem relacionamento do parceiro tecnológico seja preferido às inevitáveis asperezas do relacionamento real. O chamamento deve então ser lido de uma maneira diferente de um genérico retorno à retórica patriarcal da família. Sabemos disso por experiência própria; se existe uma beleza na família, é aquela que podemos encontrar em toda instituição humana; uma beleza que não exclui rachaduras, trincas, desconforto, feridas.

No tempo em que a palavra não é mais (justamente) sequestrada pela autoridade dos pais, no tempo em que uma nova pluralidade se configura, o mais importante é preservar o lugar da palavra como um local de uma conexão diferente daquela alimentada pelos objetos tecnológicos. Não é a palavra retórica do diálogo entre gerações - muitas vezes impossível - nem a palavra conformista-burguesa, nem a palavra pacificadora do bom senso. Habitar a vida da família impõe hoje mais do que ontem um novo equipamento: suportar a solidão em que todos nós estamos evitando cultivar a ilusão de uma harmonia que simplesmente não existe.

Mas essa desilusão, em vez de desencorajar, desmotivar, frustrar, deveria ajudar-nos a reunir como "preciosos tesouros" aqueles fragmentos de humanidade e beleza que ainda podemos encontrar ao estar juntos em família. Não pretender a felicidade dos filhos, não se colocar como exemplos de como seja correto viver, não esconder as nossas dificuldades. Em outras palavras, estar junto com o desconforto que toda situação de estar juntos comporta.

Então, lido nesta chave, o chamamento não nos exorta a cultivar a ilusão de uma família ideal, mas a não esconder a cabeça na areia diante da dificuldade de construir relacionamentos humanos não artificiosos e unilaterais, como aqueles que a tecnologia oferece. Na verdade, aqueles relacionamentos não são relacionamentos. São relacionamentos - conexões - que prometem salvar da dificuldade real de qualquer relacionamento, inclusive o da família.

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