segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

SARTRE PRISIONEIRO DE GUERRA: ESCREVEU ESTE TEXTO

 


Recebi de um amigo  este texto, conhecido, mas pouco divulgado de J.P.Sartre. Prisioneiro na segunda guerra mundial, a pedido de alguns padres, também prisioneiros, foi solicitado a escrever uma meditação, a mais ampla possível para que todos pudessem entendê-la. Ateu professo e generoso, acedeu ao convite. Entrou no espírito do Natal e lhes entregou este comovente texto que nos ilumina até os dias de hoje. Posto em dúvida, ele o reconheceu como seu em 1962, explicando o contexto em que foi elaborado. Agradecemos este texto em português.

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Estamos em 1940, na Alemanha, num campo de prisioneiros franceses. Alguns padres pedem a Jean-Paul Sartre, recluso há alguns meses com eles, que redija uma pequena meditação para a véspera de Natal. Sartre, ateu, aceita o pedido. Oferece aos seus camaradas “Barjoná ou filhos do trovão”, procurando unir crentes e não crentes.
“Como hoje é Natal, tendes o direito de exigir que vos seja mostrado o presépio. Ei-lo. Eis a Virgem, eis José e eis o Menino Jesus. O artista colocou todo o seu amor neste desenho, mas vós talvez o considereis ingénuo. Vede, as personagens têm belos ornamentos, mas estão rígidas, dir-se-ia que são marionetes. Não eram certamente assim. Se fordes como eu, que tenho os olhos fechados… Mas escutai: só tendes de fechar os olhos para me ouvir e eu vos direi como os vejo dentro de mim. A Virgem está pálida e observa o menino. O que falta pintar no seu rosto é um maravilhamento ansioso, que só aparece uma única vez numa figura humana. Pois Cristo é o seu filho, a carne da sua carne e o fruto das suas entranhas. Ela carregou-o nove meses e dar-lhe-á o seio e o seu leite tornar-se-á o sangue de Deus. E em certos momentos a tentação é tão forte que esquece que é Deus. Ela aperta-o nos seus braços e diz: “Meu pequeno!”. Mas noutros momentos permanece perturbada e pensa: “Deus está ali”, e sente-se tomada por um horror religioso por este Deus mudo, por este menino terrificante. Pois todas as mães se detêm por instantes diante desse fragmento rebelde da sua carne que é o seu filho e sentem-se exiladas diante dessa nova vida que foi feita com a sua vida e que povoam de pensamentos estranhos. Mas nenhum filho foi mais cruelmente e mais rapidamente arrancado da sua mãe, porque Ele é Deus e está além de tudo o que ela pode imaginar. E é uma dura provação para uma mãe ter vergonha de si e da sua condição humana diante do seu filho. Mas penso que deve ter havido outros momentos, rápidos e escorregadiços, nos quais sente ao mesmo tempo que o Cristo é seu filho, o seu pequeno, e que é Deus. Ela observa-o e pensa: “Este Deus é meu filho! Esta carne divina é a minha carne. É feito de mim, tem os meus olhos e esta forma da sua boca é a forma da minha. Parece-se comigo. É Deus e parece-se comigo”. E nenhuma mulher teve da sorte o seu Deus só para si. Um Deus pequenino que se pode tomar nos braços e cobrir de beijos, um Deus quente que sorri e respira, um Deus que se pode tocar e que vive. E é nesses momentos que eu pintaria Maria, se eu fosse pintor, e tentaria representar a expressão de terna audácia e de timidez com a qual ela avança o dedo para tocar a doce pelezinha deste menino-Deus, de quem sente sobre os joelhos o peso morno e que lhe sorri. E eis tudo para Jesus e para a Virgem Maria. E José? José, não o pintaria. Mostraria apenas uma sombra ao fundo da granja e dois olhos brilhantes. Pois não sei o que dizer de José e José não sabe o que dizer de si mesmo. Adora e está feliz por adorar e sente-se um pouco em exílio. Creio que sofre sem o admitir. Sofre porque vê o quanto a mulher que ama se parece com Deus, o quanto ela já está perto de Deus. Pois Deus rebentou como uma bomba na intimidade desta família. José e Maria estão separados para sempre por esse incêndio de claridade. E toda a vida de José, imagino, será para aprender a aceitar.

Jean-Paul Sartre – Trad.: Rui Jorge Martins

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