sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

COMO FUBA NO FEIJÃO

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Italo Calvino usa a metáfora da alcachofra para explicar o trabalho de desfolhar as camadas do texto em busca dos seus sentidos. No miolo das alcachofras, as pétalas assumem uma forma cada vez mais semelhante à dos pistilos, deixando supor que aqueles inúmeros fiozinhos delicados abrem outra metáfora: a do infinito. Para Italo Calvino as possíveis leituras de um texto são ilimitadas. Mas o escritor referia-se à literatura: à capacidade de diálogo que a arte possui ao longo do tempo e das culturas. A infinitude da arte corresponde à sua universalidade e à sua capacidade de ter sentido e de adquirir novos sentidos para leitores pertencentes a gerações nascidas depois ou bem depois da sua criação.

Por isso, tragédias gregas têm sentido ainda hoje: porque apresentam situações verossímeis, capazes de estimular a reflexão do homem contemporâneo. Que sejam baseadas em fatos ou em mitos, os textos literários não são fatos nem são mitos. Especialmente, um texto literário não nos explica os fatos do passado, mas pode ajudar a entender como provavelmente aqueles fatos eram e podem ser abordados.

Para explicar a dinâmica entre ficção e fatos da realidade, é preciso passar pelos complexos mecanismos da interpretação, muitas vezes mediada pelo uso de figuras de linguagem, que complicam ainda mais o acesso à tal alcachofra literária. A literatura treina a nossa capacidade de ir e vir às palavras e aos fatos, desafiando a nossa capacidade de discernimento e a habilidade para ler o que é dito por meio de outras palavras ou mesmo o que não foi dito para ser entendido.

Lemos muito pouco e lemos muito mal. Os criadores de fake news sabem disso e também conhecem muito bem o fio sutil que separa os fatos da ficção. O termo usado para os sentidos criados por inventores de falsidades é pós-verdade, mas seria melhor deixar a verdade fora dessa história. O problema é muito maior, pois enquanto a verdade depende de um sistema conceitual para ser postulada, a chamada pós-verdade geralmente se detém em um nível mais concreto: o da negação ou da manipulação dos fatos, sobrepondo aquilo que deveria ser matéria para a história ao que pertence à fantasia, à ficção ou à mentira pura e simplesmente.

A pós-verdade está para os fatos como o fubá para a feijoada: é uma operação de falsificação com o objetivo claro de enganar o leitor. E isso é muito diferente do papel exercido pelo escritor quando simula deliberadamente. O leitor diante da literatura compartilha os códigos do escritor. Diante de um fato manipulado, o pressuposto do êxito para o falsificador é que o leitor não tenha domínio dos códigos comunicativos que usa.

Mas por que toda essa premissa, se o título fala de fubá e feijoada? É para lembrar que somos a pátria das personagens de Lima Barreto, como o homem que falava javanês ou Numa, o deputado de grande fama graças ao discurso da mulher (e do seu amante). Somos a pátria da empulhação, que não se envergonha de mentir ao mundo, pensando ingenuamente que temos os únicos falantes de javanês nos Alpes. No mundo da pós-verdade podemos dizer tudo, como já cantavam os Novos Baianos ao falar do cuscuz e do batuque que enganava a nossa ginga. Contudo, o fubá jamais será farofa, o cuscuz sempre será cuscuz e não outra coisa. Conceitos não são peças intercambiáveis. Nessa ilusão, muita gente dança.

Fatos, por mais que comovam ou indignem, por mais que mexam com nossas vísceras e provoquem a nossa paixão, não podem prescindir do exame racional. Comidas como metáforas da leitura ajudam a entender que a interpretação às vezes passa pelo coração, às vezes pelo cérebro, às vezes pelo fígado.

Se, ao ler um texto, sentir um aperto no coração ou uma raiva incontrolável que mexe com a sua barriga, pare e pense: use o órgão central. Desconfie, pois é no coração e no fígado que os escritores tiram seus melhores efeitos. E é onde os mentirosos buscam melhor tirar proveito dos leitores despreparados. Quando a emoção prevalecer, lembre do seu cérebro. Não ponha fubá no seu feijão.


Gislaine Marins

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