terça-feira, 8 de outubro de 2019

QUEM É O PRÓXIMO

Resultado de imagem para o bom samaritano

Uma das experiências mais ricas da Espiritualidade é, para mim, a Oração Contemplativa. Através dela, é possível mergulhar na cena evangélica, colocar-se ao lado do Senhor e deixar-se tocar e afetar pelas suas palavras, pelos seus gestos, pela sua presença.
Na Oração Contemplativa, tudo reza em nós. O corpo, a mente, a imaginação, os sentidos, a memória, tudo concorre para nos colocar com Jesus.
Tenho, há vários anos, registrado minhas experiências nesse estilo de oração. No texto escrito, que em geral guardo comigo, muitas vezes me permito usar as palavras como moldura dos sentimentos aí experimentados. Mas o essencial não consigo escrever. Só sentir.
Em alguns textos, para facilitar o compartilhar com meus companheiros e companheiras de fé e de vida, tento tornar a história de leitura mais fluente e agradável, acrescentando detalhes da cena, tal como a imaginei. Mas, repito, o essencial cabe em poucas palavras, aquelas em que meus afetos são tocados pela presença do Senhor. E assim, afetado, sinto-me chamado a ser, como cristão, um ser humano melhor.
Dito isso, à guisa de pequena introdução, quero compartilhar com vocês algumas experiências de contemplação, começando pelo texto de Lucas, que nos conta a Parábola do Bom Samaritano.

Em janeiro último, durante um retiro, passei um dia inteiro rezando e contemplando esta parábola. No texto que se segue, o que dei conta de traduzir, a partir dos meus sentimentos...

Contemplando Lucas 10,30-37

O doutor da Lei, insistindo, perguntou a Jesus: ‘Mas quem é o meu próximo?’.

Jesus ficou em silêncio por alguns instantes, o olhar distante, como se buscasse uma lembrança antiga, depois, voltando-se para nós, disse:

...vocês sabem, é longo e perigoso o caminho de Jerusalém a Jericó. Cerca de 30 km de descida íngreme, bordejando abismos ameaçadores. Mas não é esse o risco maior. Quadrilhas de ladrões infestam a região, sempre à espreita de viajantes descuidados.

As autoridades sabem disso, mas não tomam providências efetivas. Afinal, quando tem que se deslocar por essas estradas, o fazem em meio a ostensivas escoltas, armadas até os dentes. O povo? Ora, o povo que se vire!

Todos se acomodaram, olhos e ouvidos atentos em Jesus.

Pois bem, naquela manhã, Josias, o sacerdote, saiu cedo de casa, pois pretendia chegar ao seu destino o mais rápido possível. Além dos quatro servos que o carregavam na liteira, dois guardas lhe faziam escolta, um à frente, outro atrás da pequena, mas segura comitiva.

Confortavelmente instalado, Josias ia recitando pelo caminho, com todo direito, o salmo que diz: “O Senhor Javé é meu pastor, nada me falta”. E nada, mesmo, parecia lhe faltar...

De repente, numa curva da estrada, o soldado que ia à frente para e ergue a lança em sinal de alerta. Os carregadores detêm a marcha, assustados. Tensos, todos prendem a respiração.

- O que houve? perguntou Josias.

- Não sei, parece que ele viu alguma coisa, respondeu um dos carregadores.

O guarda, lança em riste, adiantava-se lentamente, olhando para o chão, para um lado e para outro. O outro guarda, postado ao lado da liteira, apontava a lança de forma ostensiva em direção à mata.

- Há um homem caído aqui, ao lado da estrada. Ele está se mexendo...

Josias soltou uma praga:

- Um bêbado! Deve ser um bêbado! Essa estrada está cheia deles. Bêbados e mendigos por toda parte! Malditos sejam!

- Ele está ferido, senhor. Está sangrando muito. Parece que foi espancado.

- Briga de bêbados. Ele que se dane! Vamos, vamos em frente. Não tenho o dia todo...

Os servos ergueram a liteira e, desviando o máximo possível, passaram ao lado do homem caído. Um deles, tentando ver seu rosto, desequilibrou a liteira que quase caiu.

- Bêbados, mendigos e um carregador idiota, praguejou Josias, assustado.

A comitiva seguiu seu caminho deixando o homem ferido ali, à margem da estrada e da vida...

Meia hora depois, outro pequeno grupo se aproxima. A cavalo, Matias, o levita, seguia também para os lados de Jericó. Um servo puxava um burrinho que carregava pesada bagagem: rolos da Torah, um Menorah em ferro fundido, velas, uma lâmpada de óleo, ânforas, tudo destinado a uma nova sinagoga que iria inaugurar. E, claro, três soldados que lhe faziam a guarda.

Diante do homem caído, a cena se repete. Matias, impaciente, ordena que passem pelo outro lado da estrada, já tocando por ali o seu cavalo. Sequer olha para o homem, apesar de poder ouvir seus gemidos.

O tempo passa, as dores não. Só aumentam. O sol já vai quase a pino e o calor só acrescenta ainda mais agonia ao sofrimento daquele homem. Moscas zumbem em torno das suas feridas. Uma sede abrasadora lhe queima a garganta ressequida. Ele tentou, por várias vezes, erguer-se do chão, arrastar-se para uma sombra, mas não conseguiu. Seu corpo, moído de pancadas, é uma chaga só. Qualquer movimento lhe causa dores atrozes.

De repente, na curva do caminho, surge um homem, conduzindo um burrinho. Para, assustado, olha em volta, alerta, dá mais uns passos até ficar bem ao lado do corpo caído no chão. Ele respira ainda, ele percebe.

Olha mais uma vez em volta e, amarrando o burrinho num arbusto, ajoelha-se ao lado do ferido.

Espanta as moscas e segura suavemente a mão do pobre coitado, gesto que é seguido de um gemido que sai daquela boca ensanguentada:

- Tenho sede...

O homem corre ao burrinho e traz um cantil de água que leva delicadamente à boca do ferido. Ele bebe sofregamente, se engasga um pouco, tosse e cospe uma massa de sangue coagulado junto com fragmentos de dentes quebrados.

Quanta maldade, pensa o homem...

O ferido abre os olhos, que são ofuscados pelo sol. O homem percebe e lhe faz sombra, com o próprio corpo.

- Como se chama, pergunta.

- Benjamin, sussurra o homem ferido. Ladrões... quase me mataram... tinha pouco dinheiro. Levaram meu cavalo...

- Calma, Benjamin, depois você me conta. Agora preciso tirá-lo daqui, cuidar de você; está muito ferido...

Volta ao burrinho e traz um alforje de onde tira um pequeno odre de vinho e uma ânfora com óleo de oliva. Delicadamente vai lavando as feridas com água do cantil. À medida que as lava, coloca um pouco de vinho, óleo e as cobre com ataduras que improvisou, rasgando um tecido que estava no alforje.

- Tome, beba um pouco de vinho. Vai lhe dar forças e aliviar a dor...

- Quem é você, de onde vem, balbuciou Benjamin.

- Sou Azer, venho da Samaria. Sou comerciante de tecidos e, para sua sorte, passo sempre por esta estrada...

- Você é samaritano? Mas eu sou judeu...

- Agora você é apenas alguém que precisa de ajuda. Venha, vamos tentar levantar...

Depois de muito esforço e dor, Benjamin, amparado por Azer, está sobre o burrinho.

- Vamos devagar. Conheço bem o caminho. Não tão longe daqui há uma hospedaria. Lá poderei cuidar melhor de você. Aguente firme, amigo.

Lentamente, tomaram o caminho que serpenteava na descida da montanha. Cada passo do burrinho era seguido de um gemido de Benjamin. Azer segurava sua mão e ia animando-o com palavras de incentivo e coragem. Benjamin só olhava para seu benfeitor, entre um gemido e outro. Por um instante, Azer pensou ter visto, por trás daquela máscara de dor, o esboço de um sorriso agradecido.

Passava do meio dia quando chegaram à hospedaria que era uma parada quase obrigatória para quem fazia aquele percurso. Ao lado da coletoria de impostos, onde reinava um odiado publicano, o dono da estalagem recebia os hóspedes e viajantes oferecendo-lhes a opção de um quarto ou, no mínimo, uma razoável refeição.

Assim que chegaram, um garoto veio correndo pedir para tomar conta do burrinho em troca de umas moedas. Um criado se aproximou e se assustou quando viu o estado em que se encontrava o homem na montaria.

- Foi atacado por ladrões, disse Azer, ajude-me a desmontá-lo.

Entre dores e gemidos, Azer e o criado ajudam Benjamin a descer do burrinho e o levam, quase carregado, para dentro da estalagem.

O estalajadeiro, percebendo o movimento, aproximou-se. O criado foi logo dizendo:

- Está muito ferido, ladrões...

- Um quarto, rápido, por favor, disse Azer, e também uma tina de água quente e toalhas.

O estalajadeiro fez um gesto e o criado saiu correndo para providenciar o que tinha sido pedido. Um dos hóspedes que acompanhava a cena, vendo Azer passar, cochichou com outro:

- É um samaritano... e cuspiu no chão com desprezo.

Já no quarto, ajudado pelo criado, Azer despiu Benjamin dos trapos rasgados e sujos que lhe sobraram, tarefa dolorosa e delicada, pois os panos haviam grudado nas feridas.

Em seguida, o corpo mergulhado na água morna, Benjamin deu um longo suspiro, agora de alívio.

Após um banho restaurador, enquanto o criado corria para providenciar uma refeição pedida por Azer, ele, mais uma vez, tratou as feridas de Benjamin, enfaixou-as e o vestiu com uma túnica nova que levava na bagagem. Ajudou-o a deitar-se na cama onde, quase imediatamente, Benjamin caiu num sono profundo.

Azer foi até o refeitório falar com o estalajadeiro que, naquele instante, servia uma lauta refeição aos dois hóspedes que viram a chegada dos estranhos viajantes.

Sentados à cabeceira de uma mesa comprida, Josias, o sacerdote, e Matias, o levita, fizeram menção de se levantar ao verem o ambiente ‘contaminado’ pela presença de um samaritano. Azer percebeu o mal-estar e chamou o estalajadeiro fora da sala.

- Olha, preciso seguir viagem, tenho negócios a fazer e já estou muito atrasado.

- Mas, e o homem ferido...?

- Seu nome é Benjamin. Cuide dele. Volto daqui a dois ou três dias e acertamos tudo.

- Quem me garante que vai voltar, disse o estalajadeiro, alterando a voz. Você some no mundo e eu fico com aquele moribundo e o meu prejuízo!

- Eu lhe dou minha palavra. Volto em três dias, no máximo.

Do fundo do refeitório Josias zombou:

- Palavra de samaritano, grande coisa...

Azer engoliu a raiva e disse:

- Tome esses sete denários de prata. É o suficiente para uma semana de hospedagem. É sua garantia, já que minha palavra, aqui, não vale nada. Eu vou voltar e, se precisar gastar mais, lhe pagarei cada centavo.

O estalajadeiro pegou as moedas e saiu, meio envergonhado. Azer pegou a refeição que o criado trouxera, um prato fumegante de sopa de lentilhas, voltou ao quarto e ficou de vigília, até Benjamin acordar.

Conversaram longamente, como se fossem velhos amigos, enquanto Azer colocava pequenas colheradas de sopa na boca ferida de Benjamin. Ele, a princípio, queria contar detalhes do assalto, mas Azer o desencorajou com um sorriso.

- Esqueça, não vale a pena. Deixa pra lá, o pior já passou. Para onde você ia?

- Subia a Jerusalém, ao Templo, para fazer minha oferenda a Javé.

Azer, num sorriso: - Nós, samaritanos, também fazemos oferendas a Javé, no monte Garizin...

- Por que me ajudou, Azer? Sou judeu, você é samaritano, somos tão distantes...

- Ah, meu caro Benjamin, se você soubesse o quanto somos próximos...

Quando Jesus terminou de contar a história, podia-se ouvir o esvoaçar de uma mosca, tal o silêncio que envolvia a todos que estavam à sua volta. Ele olhou fixamente para o doutor da Lei que havia perguntado quem é o seu próximo e disse:

- Então, um sacerdote, um levita e um samaritano passaram por aquele homem ferido na estrada. Qual deles lhe parece ter sido seu próximo?

O homem riu, meio sem graça e disse:

- Aquele que praticou misericórdia para com ele.

- O samaritano? Insistiu Jesus.

- Sim, claro... respondeu o levita, contrafeito.

Jesus olhou aquele homem, depois olhou para cada um de nós. Seu rosto expressava uma paz inquieta, seus olhos pareciam enxergar nossa alma. Ele disse:

- Pois bem, faça o mesmo você também...

Ato contínuo, o doutor da Lei saiu, seguido por vários homens. Outras pessoas também saíram, pensativas. Ficaram Jesus, seus discípulos e eu. Aproximei-me de Jesus.

- Mestre, essa história que o senhor acaba de contar, aconteceu de verdade ou era só uma parábola? Os detalhes, tão vivos, parecia que o senhor estava lá... Aconteceu mesmo, Senhor?

Jesus sorriu, tocou meu rosto como se eu fosse um ancião, afagou meus cabelos como se eu fosse uma criança e respondeu...



- Ah, Rui Eloi, acontece, todos os dias, bem aí, no seu coração...

Nenhum comentário:

Postar um comentário