terça-feira, 15 de outubro de 2013

SOMOS TODOS DEMENTES. SIM OU NÃO?

Para não desesperarmos precisamos manter a lucidez. A duras penas, mesmo sob o escândalo da razão analítica, urge admitir que o ser humano, supercomplexo, comparece como sapiens sapiens e simultaneamente demens demens. Vale dizer, somos descendentes do sapiens arcaico, no qual irrompeu, por primeiro, a inteligência reflexa, há duzentos mil anos, e do sapiens sapiens, já falante, societário e trabalhador, há quarenta mil anos. Portadores de afeto, cuidado, inteligência, criatividade, arte, poesia e êxtase, ocupamos todo o Planeta, começamos a nos expandir pelo sistema solar e através de uma nave espacial já saímos dele e entramos rumo ao infinito.
A cultura iluminista lhe construiu um arco do triunfo. Exaltou até às estrelas a sapiência humana. A história, entretanto, continuamente, desfaz essa imagem magnificadora. Revela, a cada momento, o lado de demência, de crueldade, de massacres, de exterminações em massa. Ele se revelou o satã da Terra. Só no século XX foram chacinados em guerras 200 milhões de pessoas. A violência humana excede a de qualquer outra espécie, inclusive dos tiranossauros. Sua demência não é ocasional. Configura uma desordem originária. O homo sapiens é homo demens, assevera com insistência Edgar Morin, um dos que melhor nos fez aceitar a contradição humana.
Mas custa-nos muito aceitar que somos a unidade dos contrários, cheios de enternecimento e simultaneamente inflados de arrogância. Mais que as filosofias, foram as religiões que trabalharam essa contradição humana. Santo Agostinho, que cunhou a expressão pecado original, repete muitas vezes que "todo homem é Cristo, todo homem é Adão", ou, na expressão proferida por Lutero,"somos simultaneamente justos e pecadores". Tais expressões não devem ser tomadas em sentido moral, mas ontológico, vale dizer, expressam a situação real e objetiva do ser humano como ser de contradição.
Como entender nele a unidade destas contradições que provocam choque existencial e sensação de total absurdo como no Iraque ou Afeganistão? Prescindindo das clássicas reflexões filosóficas e religiosas, estimamos que a contribuição das ciências da Terra nos possam trazer alguma luz. Mas à condição de começarmos a pensar cosmológica e biologicamente, coisa que a consciência coletiva ainda não incorporou suficientemente. Tudo no universo e na vida é feito de desordem e de ordem, de caos e de cosmos, do dia-bólico e do sim-bólico.  A evolução se faz no esforço de criar ordem na desordem e a partir da desordem. O processo evolucionário tem mostrado que o caos originário não se revela caótico, mas altamente generativo. Origina a complexidade que é a forma como o caos vem domesticado e transformado em fator de dinamismo construtor de novas ordens, capazes de fazer da desordem (do lixo), fonte de vida (as estruturas dissipativas de Ilya Prigogine).
O fato inegável é que a presença do caos em nós nos faz seres agressivos e dementes, que nenhuma psicanálise consegue curar. Esse fato se impõe contra todas as tentativas de dilucidação, pois pertence simplesmente à nossa realidade de sapientes. A vida resulta da auto-organização da matéria e a vida humana expressa o alto grau de complexidade alcançado pela corrente da vida, da qual somos um elo entre outros. Cada célula, por mais epidérmica, carrega todas as informações que constroem a vida, cuja estrutura básica é comum a todos os seres vivos. 99% dos genes do chimpanzé são comuns à espécie homo sapiens-demens. Mas esse 1% faz toda a diferença. Os chimpanzés são seres societários, mas comem eles próprios suas presas. O ser humano, ao contrário, carrega suas presas para locais determinados e as repartem comunitariamente com seus semelhantes. Somos seres cooperativos, carregados de afeto e de vontade de comunhão. Aqui reside a humanitas do ser humano. Não nascemos ainda totalmente, estamos a caminho de nossa verdadeira diferença e identidade.
Na medida em que compartilharmos tudo o que somos e temos, inauguramos o reino humano e deixamos emergir o sapiens sapiens. A desordem em nós é herança do processo cosmogênico e biológico, a persistência da dimensão-chimpanzé em nós. Mas temos condições de impôr limites à demência usando nossa sapiência, urdida de cuidado, amorização, solidariedade a partir de baixo, com-paixão, racionalidade e perdão.
O que ocorre no no mundo é a irrupção da demência originária que nos aterra. Mas ela nos pertence. A humilde acolhida dela é pré-condição de seu controle através do processo civilizatório, da razão e de todas as energias humanitárias do homo sapiens e cooperator. Sempre que reforçarmos aquela dimensão que nos faz humanos emergem figuras como Buda, Jesus Cristo, Francisco de Assis, Gandhi, Luther King, Madre Teresa de Calcutá, a Irmã Dulce, os voluntários que cuidam de crianças com câncer ou Aids, entre outras figuras e movimentos que nos mostram a viabilidade da utopia realista do triunfo do sentido sobre o absurdo, do sim-bólico sobre o dia-bólico. Cabe a nós decidir que futuro queremos. Quem conhece a história da vida, tira dela esta lição bem -aventurada: depois de cada grande catástrofe, a vida sempre floresceu e floresceu como nunca antes. Agora, assim o esperamos, não será diferente. Floresceremos em mais convivialidade, com mais senso da inclusão de todos, com mais veneração pela natureza e com mais acolhida das diferentes tribos da Terra e com mais abertura à Fonte de todo o ser.

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