quarta-feira, 22 de novembro de 2017

CACHORRA

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Zumbi deveria ser festejado por todos os brasileiros como mártir da liberdade e símbolo das vítimas da opressão, ao lado de Tiradentes. No entanto, é celebrado apenas como líder da consciência negra, como se a consciência da igualdade não dissesse respeito a todas as pessoas, mas apenas a quem tem a pele preta e viu pouca igualdade na vida.

Se deixamos de lado a hipocrisia, podemos dizer envergonhados que preferimos a seletividade. Na teoria, tratamos todos igualmente, mas os que pertencem ao nosso círculo tratamos de modo mais igual.

Falei de Zumbi, mas queria falar do cachorro, o Capataz. Pêlo brilhante, dentes brancos, olhos vivos, a maioria não lembra quando ele assumiu o seu cargo: porteiro. Não era um emprego, claro, cachorros não têm contrato. Mas era o que ele fazia o dia todo, na entrada do armazém: abanava o rabo aos clientes da casa, levantava-se e abria a boca com faceirice aos mais conhecidos, rosnava aos que chegavam pela primeira vez, chamando a atenção do dono, que vinha pessoalmente recepcionar e desfazer equívocos. Capataz também era bom guardião: à noite, quando todos iam para casa, ele se ajeitava com uma coberta atrás do balcão, depois de comer a sua ração. Uma noite tentaram roubar o estabelecimento: Capataz foi ferido a pauladas, mas não deixou que levassem nada. O dono lhe deu uma coleira. Capataz entendeu que tinha feito algo bom, mas não entendeu o presente. Queria uma bola, como as carolas querem a missa. Era a única coisa que fazia o cachorro sair da porta do armazém: jogar com a garotada, no ataque e na defesa. Mas a bola nunca veio. Vieram os anos, a velhice, a cegueira e um pouco de surdez. Capataz ainda reconhecia os antigos clientes pelo cheiro, mas com frequência não levantava e o rabo abanava pouco. O dono, ainda mais idoso, morreu entre o balcão e as prateleiras. Os herdeiros enxotaram Capataz do armazém tão logo caiu a noite. Essas regalias para cães vadios não seriam mais permitidas. Nunca viram o animal como fiel companheiro do comerciante. Para eles era apenas um cachorro de rua, a quem o dono do armazém tolerava, por ter muita pena.

Dizem que antes de morrer, Capataz andava pelos arredores da igreja da cidade, como quem espera uma esmola.

Falei do cachorro, mas queria falar de Zumbi. Ele deveria ser festejado como herói do nosso país tão nobre, onde “nós nem cremos que escravos outrora tenha havido”, como repetimos quando celebramos a nossa República. Por isso lembrei do Capataz: é que conheci alguém tratado como cachorro. Era mulher, era negra e ninguém mais se interessou por seu destino desde que o último dono se foi. As pessoas que enxotaram Capataz sempre se emocionavam ao ouvir os nossos hinos e cantavam com a mão direita posta sobre o coração.

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