segunda-feira, 30 de maio de 2016

DO TEATRO E OUTRAS TEATRALIDADES.

A história foi-me contada por um frade que já passou dos setenta. Ela aconteceu na segunda metade da década de 1950 na então Vila Ipê, naquela época um vilarejo a meio caminho entre a Região de Colonização Italiana e os Campos de Cima da Serra. Na vila os capuchinhos haviam instalado uma Escola Seráfica para a formação de futuros frades. No local residiam, no sistema de internato, mais de 100 jovens rapazes.

Na formação daqueles jovens, a arte ocupava um espaço importante. Em primeiro lugar, a música. Todos eram instados a aprender a tocar pelo menos um instrumento musical e a cantar, principalmente o canto coral. Para estimular a desinibição e a capacidade de falar em público, o teatro também tinha destaque. Organizados em grupos, os jovens preparavam peças teatrais e, regularmente, eram organizadas exibições. Normalmente, a representação era para o público interno. Extraordinariamente, para mostrar o trabalho desenvolvido na Escola Seráfica à comunidade local, o convite era estendido a toda a toda a população da vila.

Tais sessões abertas eram concorridíssimas. A sala de teatro do Seminário lotava. Todos os moradores da vila queriam assistir. Naquele sábado à noite não era diferente. Os jovens, orientados pelos frades, tinham preparado uma peça sobre a crise da família. No enredo, depois de uma forte discussão, o filho tomava de uma espingarda e desferia um tiro mortal contra o pai. A cena era representada com o maior realismo possível. A espingarda era de verdade e o tiro também era de verdade. Mas a carga era só de pólvora. Não havia chumbo... Mas o efeito era impressionante! O estampido, a fumaça, o cheiro, o grito, a tinta escorrendo pela roupa do pai, o desespero da mãe e dos outros filhos... Cena de arrepiar.

Na platéia, todas as reações se misturavam: silêncio, gritos, suspiros, risadas, choro... De repente, na calmaria que se seguiu à cena trágica, enquanto o pai morto era arrastado para fora do palco, em meio à platéia, um senhor de uma comunidade do interior, não conseguindo distinguir, pela força da emoção, entre a realidade e a representação, levantou-se e, estendendo o dedo acusador contra os jovens atores gritou em vêneto: I scherza lùri, ma un l’è belche ‘ndà! O que poderia ser traduzido como “Eles brincam, mas um já se foi!”

Corte no tempo... Sessenta anos depois, na metade da segunda década do séc. XX, o que prende a atenção das pessoas, tanto nas grandes cidades como no interior, não é mais a arte, a música, o teatro e suas representações. O mundo é vista através da tela. A cada noite, um percentual significativo de brasileiros e brasileiras, depois de um dia de trabalho exaustivo, senta à frente da televisão ou do computador para ver as informações do dia. Das telas, num teatro minuciosamente preparado, apresentadores e repórteres jogam sobre o público telespectador rios de lama que vão engolindo instituições públicas, empresas, pessoas e reputações. As pessoas são reais, as empresas são reais, as instituições são reais, a corrupção é real... Mas e o enredo, será que ele é real ou é uma teatral construção fruto da imaginação daquela pessoa que, por trás das telas e longe dos holofotes, orienta os atores?

Talvez seria desejável que, entre a tela e os telespectadores, se levantasse um colono que, mesmo por desavisado ou não conseguindo distinguir entre o real e o teatral, pronunciasse outra vez o grito indignado: I scherza lùri, ma un l’è belche ‘ndà!

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