domingo, 31 de agosto de 2014

SEGUIR A LOGICA DA NATUREZA

Por natureza entendemos o conjunto dos seres orgânicos e inorgânicos, os campos energéticos e morfogenéticos que existem como subsistemas de outros sistemas maiores, sejam ou não afetados pela intervenção humana, constituindo um todo orgânico, com um equilíbrio dinâmico. O ser humano é parte da natureza e co-pilota o processo de evolução junto com as forças diretivas da Terra.
A natureza é uma realidade tão complexa que não pode ser encerrada em nenhuma definição. Ela permanece um mistério, como mistério é o ser e o nada. O que possuímos são discursos culturais sobre a natureza: das culturas ancestrais, das modernas e das várias ciências. Em nome de cada compreensão, decide-se qual é o nosso lugar nela e que tipo de intervenção é adequada ou não.
Quando contemplamos a natureza salta logo aos olhos uma medida imanente a ela que resulta não das partes tomadas isoladamente, mas do todo orgânico e vivo. Há harmonia e equilíbrio.
Para os contemporâneos a natureza resulta de um imenso processo de evolução que vai além do modelo de Charles Darwin (1809-1882), que fundamentalmente a restringia à biosfera sem incluir o cosmos. Tudo começou com o big bang num processo não linear que conhece saltos, flutuações e bifurcações. Não só se expande, mas cria e organiza possibilidades novas. Significa que as leis naturais não possuem caráter determinístico, mas probabilístico.
Os conhecimentos da termodinânica nos sinalizam que a vida e qualquer novidade no universo surgem a partir de certa ruptura do equilíbrio. Essa quebra da medida é só um momento, pois provoca em seguida a auto-organização que cria um novo equilíbrio dinâmico. É dinâmico porque continuamente se refaz, não pela reprodução do equilíbrio anterior, mas pela criação de um novo. A lógica da natureza em evolução é esta: organização-desorganização-interação-nova organização. E assim sucessivamente.
Isso não significa que a natureza não possua uma medida (leis da natureza); o que ela não possui é uma medida estática e mecânica, mas dinâmica e flutuante, caracterizada por constâncias e variações. Há fases de ruptura para logo em seguida gestar nova regularidade. A Terra já foi quase duas vezes mais quente que hoje, mas apesar disso mostrou ao longo das eras um incrível equilíbrio dinâmico que tem favorecido benevolamente a vida em sua diversidade.
A natureza vista como um todo não impõe prescrições. Aponta para tendências e regularidades que podem ir em várias direções. Cabe ao ser humano, auscultando a natureza e com fina percepção, escolher uma que lhe pareça mais adequada. Então ele surge como um ser responsável e ético.
O ser humano deve seguir a lógica da natureza: fazer e refazer continuamente o equilíbrio. Não de uma vez por todas, mas sempre em atenção ao que está ocorrendo no ambiente, na história e nele mesmo. A justa medida muda, o que não muda é a permanente busca da justa medida.
Os povos indígenas nos dão disso o melhor exemplo. Por uma afinidade profunda com a natureza, os solos, as nuvens, os ventos e outros eventos naturais sabem, de golpe, o que vai acontecer e o que fazer.
Investigações recentes mostraram que as pessoas não mudam por causa de informações sobre o aquecimento global, mas quando sofrem na pele com a degradação ambiental. Isso comprova que o motor que move as pessoas é menos o intelecto que o sentimento profundo, raiz do novo paradigma de convivência com a Terra. Sem esse sentimento não ouviremos a grande voz da Terra a nos convidar para a sinergia, a compaixão, a coexistência pacífica com todos os seres. A partir desse pathos se torna absurdo querer subordinar o novo conhecimento genético à obtenção de lucros, como se a vida não valesse por si mesma, sem ser reduzida a uma simples mercadoria no balcão de negócios.
Se esta sintonia fina com a natureza em nós e também ao nosso redor não se transformar numa cultura, então estaremos sempre às voltas com a busca da justa medida a ser encontrada e aplicada. Viveremos reconciliados conosco mesmo e com a natureza. Eis um caminho a seguir.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

BARULHO E SILÊNCIO

 Gosto de ler na Bíblia, no primeiro livro dos Reis, o fato que revela a grandeza do silêncio e sua necessidade. O fato é esse. Deus ia passar por onde estava Elias e seus companheiros. De repente surgiu um furacão que rasgava os montes e despedaçava os rochedos. Deus não estava no furacão. Surgiu depois um grande terremoto. Deus não se encontrava no terremoto. Houve um grande fogo, mas Deus estava ausente. Passado o fogo percebeu-se o sussurro de uma brisa leve. No meio da brisa amena saiu uma suave voz que perguntou: O que estás fazendo aqui Elias?
Leio, observo, sento e olho para esta nossa sociedade, para este nosso chão feito de trabalho e música, de vida no lar e na rua, de encontros e desencontros de pessoas e me pergunto: Deus, onde estás?
Há demais furacões nas ruas. Quem ainda consegue aguentar o barulho dos carros que fazem comerciais e os carros que fazem tremer as janelas das casas, numa concorrência de quem está mais na solidão?
Há demais terremotos que rebentam os ouvidos dos jovens, usando e abusando dos fones, abusando na escuta de bandas que, para encobrir a pobreza musical, reforçam as baterias e os ritmos musicais.
Há demais fogos que incendeiam as brigas dentro de casa e os meios de comunicação sempre ligados em alto volume. Há demais ventos e trovões que vêm das escolas e das igrejas. Há demais tempestades que batem nas necessidades e nas emoções das pessoas que, em nome de Deus, gritam por socorro, curas e salvação. E Deus, que está em tudo e em todos, que está no longe e no perto, continua gostando da brisa do silêncio da vida.
Deus é o silêncio do universo. A natureza toda é silêncio e silenciosa. O equilíbrio da pessoa acontece na medida em que é capaz de estar só e de silenciar.
Cada pessoa, para poder sobreviver nesse ambiente de tempestade e furacões, deve ir criando o clima da brisa da tarde. O clima da brisa está em sentar-se e pensar sobre a vida, em ser capaz de estar sozinho.
O clima da brisa é conseguir tomar um livro ou a Palavra de Deus e passar uns momentos lendo. O clima da brisa é ser capaz de ficar esperando para que os furacões e os ventos passem, para sentir que a brisa chegou.
É preciso perceber a mistura de silêncio e de barulho em que vivemos. Além de perceber, sermos despertadores. Fazer as pessoas perceberem aquilo que faz bem ao corpo e à mente. Que ajude a viver melhor. A história passada nos ensina que pessoas de grande pensamento escolheram viver longe do barulho. Pessoas criativas se distanciam dos ambientes agitados. Artistas, escritores e poetas gostam do silêncio, e é lá que fazem suas criações.
Pessoalmente, caminho pelo silêncio do mundo, procuro ambientes para pensar, dispenso a companhia de pessoas comuns e gritalhonas e degusto a companhia de mim mesmo.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

A VIDA É FEITA DE ESCOLHAS.

Na encosta de uma montanha, cheia de silêncio e de luz, um monge estabeleceu sua morada. Construiu uma tosca cabana, sem portas. Alimentava-se com vegetais, raízes e frutas abundantes no local. Um pequeno e límpido riacho fornecia-lhe água para beber. A ordem, o canto dos pássaros e as flores lembravam um pequeno paraíso. Havia espaço, clima e tempo para uma vida feliz e inteiramente voltada para Deus.
Na paisagem destacavam-se muitas nogueiras e o monge colheu certa quantidade de nozes e guardou na cabana, uma vez que o inverno costumava ser rigoroso. Mas um pequeno rato descobriu as nozes e isso representou um perigo para a frugal alimentação do eremita. Aproveitando uma ida ao povoado, distante alguns quilômetros, trouxe um gato e pensou: o problema está resolvido. Mas o gato precisava, todos os dias, de um pires com leite e por isso foi necessário conseguir uma ovelha. Aí surgiu a necessidade de uma cerca para guardar a ovelha e um pequeno pasto para alimentá-la. O perigo, nesta altura, vinha do lobo, que poderia devorar a ovelha. O passo seguinte foi comprar um cachorro. A ovelha deu cria e foi necessário contratar um empregado, que exigiu uma arma para sua defesa.
Passaram-se anos e um discípulo foi visitar o velho mestre. Em vez de uma cabana, encontrou próspera fazenda, cercada de muros, com dezenas de empregados. Diante do espanto do discípulo, o mestre esclareceu: trata-se de uma longa história..., mas tudo começou com algumas nozes.
A vida é feita de escolhas. Nem todas parecem importantes, mas, quase sempre, todas indicam uma direção. E elas têm ligação entre si, como elos de uma corrente. Uma pequena escolha parece sem importância, mas pode iniciar um processo, que nos leve longe, bem longe, do objetivo proposto. Todos somos atraídos por valores, mas eles apresentam ambiguidades. Uma coisa é o valor ideal, outra coisa é o valor real. Valor é aquele que, na prática, vale para nós. E assim vamos formando nossa escala de valores, que ao longo da vida pode mudar. E podemos acabar bem longe do objetivo inicial. Linhas paralelas caminham até o infinito sem se afastar ou aproximar. Mas um pequeno desvio inicial acaba alterando significativamente o rumo.
Todo o viajante, algumas vezes, precisa parar e olhar o horizonte, para ver se está no caminho certo. Toda a pessoa, algumas vezes, precisa parar e analisar as próprias escolhas e ver se elas o estão levando para o seu objetivo. E ninguém pode dizer: fui longe demais, agora é tarde. Hoje é o primeiro dia do resto da vida. E se uma coisa é importante, não podemos deixar para amanhã. O tempo de Deus é hoje. A (in)fidelidade de hoje prepara a fidelidade de amanhã. Em seu leito de morte, Francisco de Assis aconselhou a si e aos seus frades: comecemos hoje

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

OS MISERÁVEIS NÃO FAZEM PROTESTOS.

Somam hoje 950 milhões as pessoas ameaçadas pela fome crônica. Eram 800 milhões até 2007. O número cresceu devido à expansão do agronegócio, cujas tecnologias encarecem os alimentos, e a maior extensão de áreas destinadas ao cultivo de agrocombustíveis, produzidos para saciar a fome de máquinas e não de gente.
A fome é o que há de mais letal inventado pela injustiça humana. Causa mais mortes que todas as guerras. Elimina cerca de 23 mil vidas por dia. As crianças são as principais vítimas.
Quase ninguém morre por falta de alimentos. O ser humano suporta quase tudo: políticos corruptos, humilhações, agressões, indiferenças, a opulência de uns poucos. Até o prato vazio. Por isso ninguém morre da falta completa de alimentos. Os famélicos, quando nada têm para comer, levam à boca, para enganar a fome, restos catados no lixo, lagarto, rato, gato e variados insetos. A falta de vitaminas, carboidratos e outros nutrientes essenciais debilita o organismo, torna-o vulnerável às enfermidades. Crianças raquíticas morrem de simples resfriado, privadas de defesas.
Há apenas quatro fatores de morte precoce: acidentes (de trabalho ou trânsito); violência (assassinato, terrorismo ou guerra); enfermidades (aids ou câncer); e fome. Esta produz o maior número de vítimas. No entanto, é o fator que menos suscita mobilizações. Há sucessivas campanhas contra o terrorismo ou pela cura da aids, mas quem protesta contra a fome?
Os miseráveis não fazem protestos. Só quem come entra em greve, vai às ruas, manifesta em público descontentamento e reivindicações. Como essa gente não sofre ameaça da fome, os famintos são ignorados.
Os líderes das nações mais ricas e poderosas do mundo, reunidos no G8,  no início de julho, decidiram liberar US$ 15 bilhões para aplacar a fome mundial. Como o G8 é cínico! Ele é o responsável pelos famintos serem multidão. Eles não existiriam se as nações metropolitanas não adotassem políticas protecionistas, barreiras alfandegárias, transnacionais de agrotóxicos e de sementes transgênicas. Não morreriam de fome cerca de 5 milhões de crianças por ano se o G8 não manipulasse a OMC, não incentivasse a desigualdade social e tudo isso que a aprofunda: o latifúndio, a especulação dos preços dos alimentos, a apropriação privada da riqueza.
Apenas US$ 15 bilhões! Sabem quanto esses senhores e senhoras do G8 destinaram para salvar o mercado financeiro, de setembro de 2008 a junho de 2009? Mil vezes esta quantia! US$ 15 bilhões servem apenas para oferecer uns caramelos a alguns famintos. Sem contar que boa parte desses recursos irá para o bolso dos corruptos ou servirá de moeda de troca eleitoral. Dou-lhe um pão, dá-me um voto!
Se o G8 tivesse de fato intenção de erradicar a fome no mundo, promoveria mudanças nas estruturas mercantilistas que regem a produção e o comércio mundiais, e canalizaria mais recursos às nações pobres que aos agentes do mercado financeiro e à indústria bélica.
Se os donos do mundo quisessem realmente acabar com a fome, eles tornariam o latifúndio um crime de lesa-humanidade e permitiriam a livre circulação de alimentos. Do mesmo modo, se tivessem mesmo o propósito de erradicar o narcotráfico, em vez de prender uns poucos traficantes, poriam suas máquinas de guerra para destruir definitivamente os campos de plantação de maconha, de coca, de papoula... transformando-os em áreas de agricultura familiar. Sem matérias-primas, não há traficante capaz de produzir droga.
Se a natureza algo ensina de óbvio é que, a médio prazo, estaremos todos mortos! Se a Terra já perdeu 25% de sua capacidade de autorregeneração, o que acontecerá se a humanidade tiver que esperar mais 40 anos para que se tomem medidas eficazes?
Se aqueles que não passam fome tivessem, ao menos, fome de justiça, virtude qualificada por Jesus como bem-aventurança, então a esperança em um futuro melhor não seria vã.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

A INGENUIDADE DA MÃE.

O filho mimado, superprotegido pela mãe que via nele sua realização de mulher, embora frequentemente alertada pelo pai, cresceu não precisando acertar em nada. A mãe passava-lhe a mão na cabecinha e dizia que adotara o método summerhill. Iria educá-lo em liberdade e não na repressão como sua mãe o fizera.
Assim foi, e ele cresceu. Chegou aos 32 anos como um fracasso em pessoa. O casal acabou se separando, o pai morreu depois num acidente e a mãe, que conseguia o seu dinheiro da aposentadoria do pai, continuou pondo a mão na cabeça do filho e a achar que ele era um gênio e que não devia ser forçado a nada.
Assim ele não se fixava em nenhum emprego e todo empreendimento que assumia, fracassava. Não deu certo em nada, nem no namoro, nem no trabalho, nem nas coisas que criava. Elas acabavam assim que ele começava a agir. Ninguém mais o queria por perto. Mas ela o via como um gênio. Ai de quem criticasse o menino ou o garoto já com mais de 30 anos.
Punha-lhe na mão dinheiro e quando era dinheiro grande, ele alegava ter perdido ou ter sido assaltado. Ela acreditava piamente nele. Um dia, um irmão dela lhe disse que o menino se drogava. Ela virou fera. Sabia quem era o filho. Nunca! Filho dela poderia ter defeitos, mas não se drogava. Segundo ela, vivera 30 anos com ele, era a mãe e ela saberia. Não, o filho dela apenas tinha traumas vindos do pai. Ela o protegia porque ele era um filho sofrido, mas droga, nunca! Não o filho dela.
O rapaz foi enterrado no dia seis de maio. Morrera de overdose. Ela aprontou um auê com os médicos. Para ela, o moço morreu de parada cardíaca. Médicos não sabem nada! O filho dela nunca se drogou!
Oremos pelas mães que têm certeza de que nunca erraram, nunca erram e nunca errarão.

domingo, 24 de agosto de 2014

UM PAÍS SEM MEMORIA VAI AFUNDANDO POUCO A POUCO.

O grande filósofo Martin Heidegger afirma: “A memória é o recolhimento do pensar fiel”. Com isso, quer dizer que ela protege e guarda consigo tudo aquilo que é importante, que faz sentido, que se antepõe e antecede mesmo aos fatos como seu sentido. Por isso, a memória é a condição de possibilidade da cultura, da civilização, de tudo que o ser humano constrói sobre a terra.
Em termos teológicos, a memória é o que permite não perder a Palavra revelada e acolhida na fé; a identidade do Deus pessoal que se revela, diz seu nome e mostra seu rosto e deseja ser reconhecido. Pela memória se narra e se conta a história dessa experiência, desse diálogo, dessa identidade. E tudo isso para fazer memória, para não deixar esquecer aquilo que fez e deve continuar fazendo a humanidade: viver, sofrer, rir, pensar, falar e conhecer.
Existe a memória da alegria, do amor vivido e realizado, dos momentos vividos juntos. Memória dos rostos sorridentes, das palavras trocadas, dos gestos de carinho sentidos sobre a pele.
Mas existe também a memória da dor. Ela não fala em termos abstratos, do “ser humano” ou da “humanidade”. Fala do outro concreto: do desespero das viúvas que se lançam impotentes sobre o caixão do companheiro; do choro das crianças órfãs que gritam sem entender por que seu pai jaz no chão perfurado por balas; dos rostos emagrecidos e famintos dos que vivem em continentes que as grandes potências riscaram dos mapas. Fala do holocausto nazista... e dos expurgos stalinistas e de seus milhões de vítimas.
Quando há olvido dessa dor e desse sofrimento, surge um processo lento de desumanização de um povo ou de uma cultura. Por isso filósofos como Adorno, teólogos como Metz, enfatizam a importância da dimensão subversiva da memória. É subversiva porque não deixa desaparecer o mal praticado, a justiça desprezada e põe em evidência a extinção da tradição que começa a crescer, ameaçando sufocar a dignidade humana.
A memória reclama um modo de pensar que não reduza o sujeito a uma abstração conceitual sem referência à história e aos processos sociais. E assim reivindica o direito de ser uma mediação crítica para a prática humana. Seu instrumento é por excelência a narrativa. Assim nasceu o cristianismo, quando os discípulos do nazareno narravam a história daquele que passara pela vida fazendo o bem, que fora morto violenta e injustamente, mas que Deus ressuscitara e agora se encontrava vivo em meio a eles.
Assim acontece com as vítimas da história que, nomeadas e narradas pela memória, permanecem vivas. Não se trata de um mero amor às tradições, mas o desejo de criar e formar uma comunidade de solidariedade com as vítimas da história, que interrompe as tentativas de calar e amordaçar a verdade que os sistemas totalitários de todos os tipos carregam em seu bojo. A memória resgata a narrativa ardente do passado e o atualiza para transformar o presente. Rememora acontecimentos com urgência de futuro, criando uma solidariedade que olha longe e vê além das aparências.
Um país sem memória vai pouco a pouco vendo desaparecer e esfumar-se sua identidade verdadeira. Abre espaço para retornos indesejados e varre para as sombras de um equivocado esquecimento presenças luminosas cujas vidas deveriam ser narradas uma e mais vezes, a fim de iluminar o caminho das novas gerações. Esperemos que o Brasil não entre nessa lista. Seria desastroso e indigno da grande nação que é.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O MUNDO VAI MAL PORQUE OS BONS SE OMITEM.

Num campo isolado, com muita relva e muita água, viviam tranquilos três touros: um marrom, um branco e um preto. Nas cercanias habitava também um leão, que era visto, algumas vezes, entre a vegetação espessa, espiando os animais. Naturalmente, ele causava medo. Mas, aos poucos, os touros estavam se acostumando, até mesmo comentavam que o leão não era tão feroz como se dizia. Vez por outra o leão, respeitosamente, desejava a eles um bom dia.
Aproveitando a ausência do touro branco, o leão se aproximou dos touros preto e marrom e fez-lhe esta proposta: corremos o risco de chamar atenção dos caçadores por causa da cor chamativa do touro branco, tão diferente da nossa, que é tão discreta. Os touros concordaram e o leão devorou o touro branco. Passado algum tempo, o leão insinuou-se junto ao touro marrom: a tua cor e a minha cor são iguais. Deixa-me comer o touro preto, para que possamos viver tranquilos. A contragosto, o touro marrom concordou e o touro preto foi também devorado. E o touro marrom ficou sozinho. Chegou tua vez, disse o leão, uma semana depois. Conformado, o touro disse apenas: faze-o, mas antes deixe que eu proclame uma verdade: fui devorado no dia em que entregamos o touro branco.
A fábula dos animais se repete, muitas vezes, com os humanos. A injustiça praticada contra um inocente afeta a todos. A omissão costuma cobrar um preço muito alto. O raciocínio é míope: não tenho nada a ver com aquilo.
Poeta e pensador alemão do século XX, Bertold Brecht deixou um pequeno poema sobre a omissão diante do nazismo: primeiro vieram prender os comunistas, eu não me importei, pois não era marxista; depois prenderam alguns operários, não me importei, pois não sou operário; depois agarraram os sacerdotes, mais uma vez não me importei, não sou religioso... Quando vieram prender-me, não tinha ninguém para me defender.
A tentação de lavar as mãos, a clássica receita de Pilatos, costuma trazer um perigoso saldo de injustiças, lágrimas e sangue. Aparentemente não é conosco e fingimos não ver e escutar. O pensador John Danne proclamava: nenhum homem é uma ilha: cada homem é uma parte da terra. Se um torrão cai no mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, o solar do teu amigo ou o teu próprio...
Possivelmente o maior pecado da atualidade seja a omissão. O mundo não vai mal porque existem muitos maus, mas porque os bons se omitem. Povo unido jamais será vencido, proclamava um grito de mobilização na década de oitenta. A estratégia contrária propõe: dividir para vencer. Determinadas alianças podem tornar-se perigosas. E no final da vida seremos cobrados por tudo o que não fizemos. E a aliança do leão com o cabrito nunca dará certo.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

OS TALENTOS DEVEM CRESCER E FRUTIFICAR.

Ser a melhor pessoa, não em relação às outras. Isso cheiraria a competição. Toda comparação limita e estraga. O bonito é ser a melhor pessoa em relação a si mesma. Quer dizer, tirar de dentro de si o melhor. Oferecer ao mundo o melhor de si. Não apenas existir como um satélite que rodeia esta terra, sem marcar presença. Dar o melhor de si é marcar esta terra com uma passagem e uma história pessoal, com assinatura própria e com o máximo de potência que o Criador confiou.
Ser a melhor pessoa no exercício dos talentos. Em cada ser humano há talentos diferentes. Não podem ser enterrados como no fato que Jesus conta no Evangelho. Devem frutificar. Os talentos são possibilidades que devem ser desenvolvidas. Muitas pessoas passam por esta viagem na terra sem descobrir seus talentos. Não tiveram ocasião ou simplesmente foram dominadas pela acomodação e preguiça. Nenhuma pessoa deve se considerar inútil e sem talentos. Todas nascem com possibilidades. Mas é preciso cultivar, deixar crescer e frutificar. Isso exige refletir, sacrificar-se, dedicar tempo. Isso exige grande disciplina e domínio de si. Exige ser aluno de si mesmo. Escutar-se. Tomar-se na mão. Ser senhor de si mesmo. Não viver ao sabor do vento. Ter um objetivo. Ter um propósito. Lutar e ver na frente, como num espelho, a melhor pessoa que pode tornar-se.
Ser a melhor pessoa respondendo às necessidades. Basicamente todas as pessoas têm as mesmas necessidades e podemos resumi-las em físicas, mentais, emocionais e espirituais. Devo cuidar bem do corpo para me tornar uma pessoa saudável. Para ter a melhor saúde possível. Devo cuidar de minhas emoções para ser a melhor pessoa nos relacionamentos com o próximo, com o mundo e com Deus. As relações sadias me tornam a melhor pessoa para mim mesmo. Devo cultivar minha mente, meu estudo e reflexão, para tornar-me o melhor de mim em minha profissão e na sabedoria da vida. Devo cultivar minha espiritualidade, para que minha vida tenha um significado e possa tornar-me a melhor criatura de Deus, segundo seus planos a meu respeito. Morrer sentindo-me a melhor pessoa que podia tornar-me é ter vivido com sentido e ter construído o céu, que é o desejo do coração.
Ser a melhor pessoa cultivando os desejos. Há desejos e sonhos no coração humano que não podem ser traídos. Trair os sonhos é trair-se a si mesmo. É trair a vocação e o destino. Devo escutar e cultivar meus desejos. Devo tomá-los na mão e ver qual a melhor maneira de realizá-los no trabalho, na convivência e em todas as situações. Os desejos são como gritos do coração que clamam para ser escutados: gritos de amar e ser amado, de vida e paz, de harmonia e convivência, de felicidade e alegria, de festa e eternidade.
Tenho que tirar de dentro de mim o melhor que sou, para poder dizer que sou uma pessoa livre e realizada. Tenho que chegar a ser a melhor pessoa que posso ser.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

CARTA A EDUARDO CAMPOS

Eduardo, você não imagina o quanto eu e todo povo pernambucano estamos lamentando a tua trágica e inesperada partida. Temos muitos motivos para isso. Primeiro, pela falta que irás fazer a tua família e aos teus amigos. Depois, pelo exemplo de homem público que representavas para o nosso estado e para o Brasil.
No entanto, eu tenho um motivo particular para lamentar a tua morte. Depois da tua entrevista no Jornal Nacional, eu fiquei com muita vontade de te encontrar, de apertar a tua mão, olhar no teu olho e te perguntar: Quem disse que eu desisti do Brasil, Eduardo? Infelizmente, no dia seguinte, ocorreu o trágico acidente e eu nunca vou poder te dizer isso. 
Eduardo, não fui eu, nem o povo brasileiro que desistimos do Brasil. 
Quem desistiu do Brasil foram setores da política e da mídia brasileira, quando promoveram o golpe militar de 1964 que mergulhou o nosso país em 21 anos de ditadura militar e que submeteu o povo brasileiro aos anos mais difíceis de nossa história. Inclusive, sua família foi vítima na carne daquele momento, quando o seu avô e então governador de Pernambuco, o inesquecível Miguel Arraes, foi retirado à força do Palácio do Campo das Princesas e levado ao exílio.

Eduardo, você não imagina o que essa mesma mídia está fazendo com a tragédia que marcou a queda do teu avião. Eu nunca pensei que um dia pudesse ver carrascos do jornalismo político brasileiro como Willian Bonner, Patrícia Poeta, Alexandre Garcia e Miriam Leitão falando tão bem de um homem público. Os mesmos que, um dia antes do acidente, quiseram associar a tua imagem ao nepotismo no Brasil choram agora a tua morte como se você fosse a última esperança do povo brasileiro ver um Brasil melhor. Reconheço as tuas qualidades, governador, mas não sou ingênuo para acreditar que sejam elas o motivo de tanta comoção no noticiário político brasileiro.

A pauta dos veículos de comunicação conservadores do Brasil sempre foi e vai continuar sendo a mesma: destruir o projeto político do partido dos trabalhadores que ameaça por fim às concessões feitas até então a eles. O teu acidente, Eduardo, é só mais uma circunstância explorada com esse fim, do mesmo jeito que foi o mensalão, os protestos de julho e a refinaria de Pasádena. Se amanhã surgir um escândalo “que dê mais ibope” e ameace a reeleição de Dilma, a mídia não hesitará em enterrar você de uma vez por todas. Por enquanto, eles vão disseminando as suposições de que foi Dilma quem sabotou o teu avião, e que fez isso no dia 13 justamente pra dizer que quem manda é o PT. Pior do que isso é que tem gente que acredita e multiplica mentiras e ódio nas redes sociais.

Lamentável! A Rede Globo e a Veja não estão nem aí para a dor da família, dos amigos e dos que, assim como eu, acreditavam que você não desistiria do Brasil. Você é objeto midiático do momento.

Eduardo, não fui eu quem desistiu do Brasil. Quem desistiu foi o PSDB, que após o regime militar teve a oportunidade de construir um novo projeto de nação soberana e, no entanto, preferiu entregar o Brasil ao FMI e ao imperialismo norte americano, afundando o Brasil em dívidas, inflação, concentração de renda e miséria. O mesmo PSDB que, antes do teu corpo ser enterrado, já estava disseminando disputas entre o PSB e REDE para inviabilizar a candidatura de Marina, aliança que custou tanto a você construir.

Eu não desisti do Brasil, Eduardo. Quem desistiu foi a classe média alta que vaiou uma chefe de Estado num evento de dimensões como a abertura de uma copa do mundo porque não se conforma com o Brasil que distribui renda e possibilita a ricos e pobres, negros e brancos as mesmas oportunidades.

E tem mais uma coisa, Governador. Se ao convocar o povo brasileiro para não desistir do Brasil o senhor quis passar o recado de que quem desistiu foi Lula e Dilma, eu gostaria muito de dizer que nem eu, nem o povo e, nem mesmo o senhor, acredita nisso. Muito pelo contrário. A gente sabe que o PT resgatou o Brasil do atraso imposto pelo nosso processo histórico de colonização, do intervencionismo norte americano e da recessão dos governos tucanos. Ao contrário de desistir do Brasil, Lula e Dilma se doaram ao nosso povo e promoveram a maior política de distribuição de renda do mundo, através do bolsa família. Lula e Dilma universalizaram o acesso às universidades públicas através do PROUNI, do FIES e do ENEM. Estão criando novas oportunidades de emprego e renda através do PRONATEC e estão revolucionando a saúde com o programa mais médicos.

Eduardo, eu precisava te dizer: não fui eu, nem o povo brasileiro, nem Lula, nem Dilma que desistimos do Brasil. Quem desistiu do Brasil, meu caro, foram os mesmos que hoje estão chafurdando em cima das circunstâncias que envolvem o acidente que de forma lamentável tirou você do nosso convívio. Fazem isso com o motivo único e claro de desgastar a reeleição de Dilma e entregar o país nas mãos de quem, de fato, desistiu do Brasil.

Descanse em paz, Eduardo. Por aqui, apesar da falta que você vai fazer a todo povo pernambucano, eu, Lula, Dilma e os brasileiros que acreditam no futuro do Brasil vamos continuar na luta, porque NÓS NUNCA DESISTIREMOS DO BRASIL.



Por Carlos Francisco da Silva, de Bezerros (PE)

domingo, 17 de agosto de 2014

UMA ESCOLHA RADICALMENTE PESSOAL

Mais do que uma época de mudanças, estamos vivendo uma mudança de época. É uma passagem radical. Todos sentem essa situação. Devido a esse fato, a sociedade, como um todo, está tonta. Perdeu a direção. Está bebeda. Cumpre tarefas, mas não sabe para quê e para quem e para onde ir. Simplesmente se dedica a correr e a sobreviver. Afinal de contas, alguém me colocou neste planeta terra e tenho que suportar-me nos meus oitenta a cem anos. E como numa ventania que vem e que vai, as pessoas se amam e se odeiam, se criam e se matam, se encontram e desencontram. A grande mudança de época roubou a tranquilidade e a serenidade da vida. Assim mesmo, no coração de cada ser humano permanecem perguntas que todos devem responder, mas nem sempre as respostas satisfazem.
Quem sou eu? Milhares de filósofos e pensadores passaram a vida tentando responder a essa pergunta. Milhares de livros foram escritos sobre essa questão. Os problemáticos sentam angustiados diante de psicólogos e psiquiatras e são perguntados: quem é você? O que você sabe de você? O que você sente? O que você quer? O grande pensador Sócrates aconselhava aos alunos: “Conhece-te a ti mesmo.” Este é o princípio de toda a sabedoria. Você já começou esta tarefa ou vai esperar para quando não houver mais tempo?
De onde vim? Poucas pessoas olham para traz. Há uma história nesta humanidade. A Bíblia fala numa história sagrada, de um começo privilegiado: criaturas saídas das mãos de Deus, feitas à sua imagem e semelhança. Mas, ao lado desse ensinamento, há muitos outros. Todos com suas razões. É isso que torna linda a história da humanidade. Ninguém sabe do seu começo e nem como foi seu começo. Se a pessoa tem sua origem das mãos de Deus, ou da evolução, ou se chegou voando de outros sistemas estelares, pouco importa. Importa descobrir a grandeza que somos, os sonhos e os desejos infinitos que nos habitam, e que tudo isso não pode ter nascido ao acaso, mas que temos uma origem especial e sagrada. Nossos sonhos e desejos nos revelam que somos filhos do eterno.
O que vim fazer aqui? É a grande questão. Tenho uma missão ou simplesmente sou um número nesta humanidade? Sou um ser irrepetível e único ou vou dançando de reencarnação em reencarnação, ficando voltado em vidas passadas, que não existiram? Prefiro sentir-me único e irrepetível, com identidade própria, criatura escolhida e abençoada, amada e predestinada a tornar-me participante da vida de meu Criador!
Para onde vou? Simplesmente para um túmulo ou meus sonhos e desejos ultrapassam o túmulo? Ultrapassam o tempo e o espaço? É a grande pergunta. Será que tudo acaba com a morte? Para o materialista e o ladrão, para o assassino e o destruidor, para o ganancioso e o ambicioso, tudo parece acabar ali mesmo na sepultura. Há uma resposta radical: aquilo que fazemos com amor e por amor, com solidariedade e construção, dura para sempre. Cada pessoa vai construindo sua eternidade ou destruição. É uma escolha radicalmente pessoal.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

É PRECISO TER: TEMPO E AMOR NA EDUCAÇÃO.

Um menino de cinco anos recebeu na escola uma tarefa: fazer um desenho sobre sua família. Ele desenhou o pai, a mãe e, naturalmente, ele mesmo. Fez um círculo vermelho ao redor e percebeu que faltava alguma coisa. Chegando em casa, pegou a folha e dirigiu-se à mãe, que preparava a janta. Mãe, como a gente escreve... Irritada a mãe observou: não vê que estou ocupada! Vá brincar lá fora e feche a porta. E o menino guardou o desenho no bolso e foi brincar com o cachorro. No dia seguinte, tentou de novo, desta vez com o pai. Desenho na mão, o menino pediu: pai, como se escreve... Que coisa mais idiota, resmungou o pai, não vê que estou lendo o jornal. Vá brincar lá fora e fecha a porta! E o menino, mais uma vez, foi brincar com o cachorro! No dia seguinte, na escola, disse que não conseguira fazer o dever.
Passaram-se 28 anos e o menino tornara-se adulto, casado, com diploma universitário. Estava preparando, no computador, defesa para um cliente numa questão importante. A filhinha - cinco anos - puxou sua camisa e quis saber: pai, como se escreve amor? E o pai voltou no tempo, recuperou seu visual com cinco anos. Depois tomou a filhinha no colo, beijou-a ternamente e disse: o pai vai te ensinar como se escreve amor. E guiando os pequeninos dedos da filha no teclado, escreveu a palavra mágica - amor - e depois ampliou-a o máximo que podia, colorindo-a de verde. E a menina saiu em disparada e gritou: mãe, eu já sei escrever amor. E entregou-lhe a folha. Ao pé da página uma frase, que não fazia sentido para a criança, mas que a mãe compreendeu perfeitamente: Amor se escreve com estas letras: tempo.
A família moderna quase não tem tempo. Muitas vezes pai e mãe trabalham fora. Em casa existem muitas atividades, além da novela, do futebol e do noticiário. E os filhos precisam buscar as respostas e o carinho fora de casa. No passado, a criança lia a vida através dos olhos dos pais, da professora e do padre. Hoje, família, escola e igreja têm sua importância drasticamente reduzida e os filhos buscam fontes alternativas, muitas vezes poluídas.
A educação dos filhos é a tarefa mais importante dos pais. Eles precisam lutar pela vida, mas têm obrigação de reservar tempo e amor para os filhos. O verbo amar precisa ser conjugado em todos os tempos e modos. Tempo é questão de preferência. Quantidade e qualidade precisam marcar o tempo.
Um grande educador, Padre Charboneau, escreveu precioso lembrete, intitulado “Só uma vez...”. “Só uma vez teu filho terá três anos e estará doido para sentar em teu colo. Só uma vez ele terá cinco anos e quererá brincar contigo. Só uma vez terá dez anos e desejará estar contigo em teu trabalho. Só uma vez será adolescente e verá em ti um amigo em quem confiar. Só uma vez estará na universidade e quererá trocar ideias contigo. Se perderes estas oportunidades, perderás teu filho e ele não terá pais!”.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O PASSADO E O FUTURO.

Sucessivas gerações se encantaram com as fábulas. Trata-se de um gênero literário pedagógico que, quase sempre, empresta voz aos animais e árvores. Através de pequenos fatos, a fábula ilustra pontos do bom senso. Esopo, na Grécia antiga, parece ter sido o inventor da fábula. Mais perto de nós, no século XVII, o francês Jean de La Fontaine deu novo impulso, criando alegorias que a humanidade nunca esquecerá.

Uma das mais conhecidas fábulas de La Fontaine conta a história da cigarra e da formiga. Ao longo do verão a cigarra fez festa, cantou, sem preocupações com o futuro. Enquanto isso, a prudente formiga abarrotou sua casa de alimentos. Quando chegou o inverno, a cigarra foi pedir auxílio. Inflexível, a formiga aconselhou: você cantou durante todo o verão, pois dance agora!
Foi criada uma nova versão desta fábula. Ela começa da mesma maneira, com a formiga trabalhando e a cigarra usufruindo a vida. Quando começou o frio, a formiga, estressada, fechou-se em sua casa, onde havia alimento para muitos invernos. Ao tocar a campainha, a formiga comentou: deve ser a cigarra... E de fato era, mas bem produzida e pilotando uma esplêndida Ferrari. A cigarra pediu que a formiga desse uma olhada em sua casa, pois ela passaria o inverno em Paris. E contou que fora contratada para se apresentar numa famosa casa de espetáculos, com um fabuloso cachê. Gentil, a cigarra pediu se a formiga queria alguma coisa de Paris. Sim, quero, disse a formiga: se encontrar um tal de La Fontaine, em meu nome, pode enchê-lo de caroços.
Uma afirmação popular garante que nossas virtudes são nossos defeitos. A pessoa que é demasiadamente boa corre o risco de ser enrolada; aquela que economiza demais, pode acabar avarenta; alguém excessivamente generoso pode prejudicar a própria família. O costumeiro bom senso garante que a virtude está no meio termo.
É bastante comum a pessoa que passa a vida privando-se de tudo, com medo de que poderá passar necessidades mais tarde. Também acontece o contrário, com pessoas que esbanjam tudo e acabam na pior. O Evangelho aconselha: não vos preocupeis (Mt 6,3). Isso não significa descaso diante da vida. Preocupar-se é ocupar-se antes do tempo. A pessoa de bom senso resolve um problema por vez, sempre a seu tempo. O passado e o futuro têm sua importância, mas o tempo presente é o mais precioso e deve ser aproveitado. O passado não é mais nosso, o futuro ainda não é nosso. Inteiramente nosso é o presente, que devemos aproveitar, sempre com alguma preocupação no futuro. É ainda o Evangelho que aconselha armazenar tesouros para o céu.
Se você viver bem o momento que passa, terá todas as chances de enfrentar com alegria o futuro. O ideal é um meio termo entre o dinamismo e a preocupação da formiga, com a festa e a gratuidade da cigarra. De resto, São Francisco não apreciava a avarenta formiga, mas amava a festiva cigarra.

QUAL O CONVÊNIO?

Há médicos que agem como anjos. E há agentes de medicina que de anjo nada possuem. Chega a ser diabólico o procedimento de algumas empresas. O paciente é obrigado a lutar por seus direitos mais elementares. A alegação é a de sempre: o convênio não cobre aqueles custos. O conveniado trate de arranjar uma doença que o convênio cubra.
Recentemente, uma jovem vitima de erro médico percorreu todos os caminhos possíveis para corrigir a erro, que a impedia de exercer suas atividades diárias. Sua vida, literalmente, parou. Um médico empurrava para o outro e o convênio alegava mil desculpas. Uma delegada condoeu-se e levou o caso à juíza que determinou que o convênio incorresse com as despesas, que não seriam pequenas. Quase 20 meses para usufruir de um simples direito que, se tivesse dinheiro, conseguiria em duas semanas.
Uma outra, verificado um câncer de urgência urgentíssima, teria que despender o equivalente a três dos seus salários, dinheiro do qual não dispunha. A resposta do convênio foi que não cobria tais despesas. Autorizariam só quando o câncer estivesse em estado avançado? Alguém da família ajudou. Se esperasse, teria amargado meses na fila de espera.
Histórias como essas estão no cotidiano dos pobres do Brasil. Há exceções, mas é triste pensar que são milhares os que adiam o tratamento de maneira fatal, porque o convênio que decide para além dos médicos, não cobre. O governo precisa descobrir esses convênios eficientes na hora de cobrar, mas renitentes na hora de cobrir!

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

MUITA OCUPAÇÃO, MEMOS VIDA.

Parece que todos nos tornamos donos do mundo. Temos um senso de posse muito grande! Todos ocupados demais. O tempo foi mal dividido. Uma hora é curta demais. O dia deveria ter trinta horas. Vinte e quatro horas são poucas. A semana é traidora. Começamos e logo está nos anunciando o sábado. O mês passa depressa demais. O ano é cruel. Não nos avisa, passa depressa e nos envelhece. E porque estamos demais ocupados e preocupados, nos tornamos abobados, esquecendo de viver.
Fisicamente não fazemos exercícios. Nós, os seres caminhantes, esquecemos de caminhar. Não nos alimentamos bem, porque temos pressa e preferimos uma comida rápida a uma refeição prazerosa. Dormimos mal e pouco, e essa atitude se reflete no cansaço e no desgosto de fazer as tarefas costumeiras. Estamos sempre com obrigações atrasadas, com serviços a fazer. Temos a sensação de estar sempre atrasados. Esquecemos e não temos tempo de sentar e sentir que existimos. Não nos lembramos de fazer uma respiração mais profunda e relaxante. Tudo isso porque estamos sempre ocupados ou preocupados.
Emocionalmente vivemos estraçalhados em nossas relações pessoais. Os relacionamentos necessitam de tempo e entrega confiante. Não será esse um dos motivos de muitos homens e mulheres trocarem de relacionamentos muito seguidamente? Não serão os relacionamentos muito superficiais, que qualquer descontrole emocional desfaz, por não dar-se tempo? Vemos que as pessoas sofrem com isso, as crianças se sentem coisas e a sociedade se torna um mercado, um relacionamento mercantil. Falta coração no pulsar do vai e vem  dos relacionamentos. Parece que os animais nos ensinam em seus relacionamentos. Eles se dão tempo e afetividade.
Intelectualmente somos apenas profissionais. Estudamos e lemos em vista do ganhar mais dinheiro e de ser mais eficaz no trabalho. Isso é bom. Mas basta? As famílias reservam e dedicam um espaço para o televisor e a geladeira, para o fogão e o roupeiro, para os perfumes e os remédios, mas dificilmente reservam um espaço para livros, revistas e jornais. Porque estamos ocupados demais não nos damos tempo para a leitura que favorece o crescimento humano e espiritual e para estarmos informados das mudanças de nossa sociedade.
Espiritualmente dispensamos as relações de amor com Deus e com o próximo. Em geral as temos como tempo perdido. Ou são buscadas somente nas horas de “pronto-socorro” e de “emergência.” A espiritualidade se tornou descartável. Usa-se e joga-se fora. Trocasse de espiritualidade e de igreja conforme as conveniências. Não dedicamos tempo para nos conectar conosco mesmos e nos programarmos para um crescimento eterno.
A pergunta é essa: o que é que nos faz estar sempre tão ocupados?
Na verdade, estamos sempre ocupados em fazer um pouco de tudo e, de repente, fazendo coisas que não terão o menor significado daqui a alguns anos.

sábado, 9 de agosto de 2014

POESIA E PROSA.

Disse um dos mais inspirados poetas alemães : “É poeticamente que o ser humano habita a Terra”. Completou-o mais tarde um pensador francês, : “É também prosaicamente que o ser humano habita a Terra”. Poesia e prosa, além de gêneros literários, expressam dois modos distintos de ser.
A poesia supõe a criação que faz com que a pessoa se sinta tomada por uma força maior que ela, que lhe traz conexões inusitadas, iluminações novas, rumos novos. Sob a força da criação, a pessoa canta, sai da rotina e assume caminhos diferentes. Emerge então o xamã que se esconde dentro de cada um, aquela disposição que nos faz sintonizar com as energias do universo, que capta o pulsar do coração do outro, da natureza e do próprio Deus. Por esta capacidade se desocultam surpreendentes sentidos do real. “Habitar poeticamente a Terra” significa senti-la como algo vivo, evocativo, grandioso e mágico. A Terra são paisagens, cores, odores, imensidão, fascínio e mistério.
Como não se extasiar diante da majestade da floresta amazônica com suas árvores quais mãos ao alto tentando tocar as nuvens, com o emaranhado de seus cipós e trepadeiras, com as nuances sutis de seus verdes, vermelhos e amarelos, com os trinados das aves e a profusão de frutos? Como não quedar-se boquiaberto pela imensidão das águas que se espraiam mato adentro e descem molemente para o oceano? Como não sentir-se tomado de temor reverencial quando se anda horas e horas pela floresta virgem como me tocou várias vezes com Chico Mendes? Com não sentir-se pequeno, perdido, bichinho insignificante face à incontável biodiversidade? Habitamos poeticamente o mundo quando sentimos na pele o frescor da manhã, quando padecemos sob a canícula do sol a pino, quando serenamos com o cair esmaecido da tarde, quando nos invade o mistério da escuridão da noite. Estremecemos, vibramos, nos enternecemos, nos aterramos extasiados diante da Terra em sua inesgotável vitalidade e no encontro com a pessoa amada. Então todos vivemos o modo de ser poético.
Lamentavelmente, são cegos e surdos e vítimas da lobotomia do paradigma positivista moderno aqueles que veem a Terra simplesmente como laboratório de elementos físico-químicos, como um conglomerado desconexo de coisas justapostas. Não. Ela é viva, Mãe e Pacha Mama.
Mas habitamos também prosaicamente a Terra. A prosa recolhe o cotidiano e o dia-a-dia cinzento, feito de tensões familiares e sociais, com os horários e os deveres profissionais, com discretas alegrias e disfarçadas tristezas. Mas o prosaico esconde também valores inestimáveis, descobertos depois de longa internação num hospital ou quando regressamos, pressurosos, após penosos meses fora de casa. Nada mais suave que o desenrolar sereno e doce dos horários e dos afazeres caseiros e profissionais. Temos a sensação de uma navegação tranquila pelo mar da vida.
Poético e prosaico convivem, se complementam e se revezam de tempos em tempos. Temos que zelar pelo poético e pelo prosaico de nossas vidas, pois ambos se complementam e estão ameaçados de banalização.
A cultura de massas desnaturou o poético. O lazer que seria ocasião de ruptura do prosaico foi aprisionado pela cultura do entretenimento que incita ao excesso, ao consumo de álcool, de drogas e de sexo. É um poético domesticado, sem êxtase, um desfrute e sem encantamento.
O prosaico foi transformado em simples luta darwiniana pela sobrevivência, extenuando as pessoas com trabalhos monótonos, sem esperança de gozar de merecido lazer. E quando chega o lazer, ficam reféns daqueles que já pensaram tudo para elas, organizaram suas viagens e fabricaram-lhes experiências inesquecíveis. E conseguiram. Mas como tudo é artificialmente induzido, o efeito final é um doloroso vazio existencial. E aí dá-lhes depressivos.
Saber viver com leveza o prosaico e com entusiasmo o poético é indicativo de uma vida densamente humana.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

RESPEITAR A DIVERSIDADE.

Numa carpintaria, na calada da noite, foi feita uma assembleia geral. Dela participaram todas as ferramentas. A tensão estava à flor da pele de todos. O martelo assumiu a presidência, mas foi informado que deveria renunciar. Motivo: ele fazia barulho demais e passava o tempo todo batendo nos outros. Bom democrata, o martelo aceitou, mas decidiu afundar atirando. O parafuso, declarou o martelo, deveria ser expulso, pois era muito teimoso, dava muitas voltas para conseguir seu objetivo. O parafuso admitiu, mas pediu a expulsão da lixa. Explicou que ela era muito áspera no tratamento com os demais, causando sérios atritos.
A tensão continuava subindo e a lixa exigiu a expulsão do metro, pois ele se considerava dono da verdade e julgava os outros segundo sua medida, como se ele tivesse toda a perfeição... Neste momento, entrou o carpinteiro e a assembleia teve de ser suspensa. Colocou as ferramentas todas sobre o balcão e iniciou seu trabalho. Ele utilizou o martelo, a lixa, o metro, o parafuso... Algumas horas após a madeira se transformara num luxuoso móvel.
Sobreveio a noite e - no silêncio da carpintaria - recomeçou a assembleia. As feridas recentes e as mágoas eram recíprocas. O serrote, que se mantivera calado na sessão anterior, tomou a palavra para uma síntese. Ao longo do dia ficou demonstrado que o carpinteiro trabalha com nossas qualidades. Nosso foco devem ser as qualidades e não os defeitos. E a assembleia, após um instante de surpresa, entendeu que o martelo era forte, o parafuso unia e dava forças, a lixa era especial para superar as asperezas, o metro era preciso e exato. Perceberam que formavam uma grande equipe. Cada um deles só tinha sentido e utilidade com a presença do outro. Sentiram a alegria de trabalhar juntos e a paz voltou a reinar na carpintaria.
Essa história se repete na vida das famílias e das comunidades. Há sempre mais coisas a admirar do que a criticar. E todos precisamos uns dos outros. A diversidade é riqueza. Um time de futebol não sobrevive com onze goleiros, ou onze atacantes, por melhores que sejam. Ninguém pode ser feliz sozinho. Ninguém pode dizer: não preciso de ninguém. Todos somos chamados a dar-nos as mãos e formar equipe. Por outro lado, todos somos limitados e precisamos sempre pedir e dar o perdão. A convivência harmoniosa e feliz reside no respeito à diversidade, que é riqueza.
Santa Catarina de Sena afirmava: Deus não deu a ninguém todos as qualidades, e não deixou ninguém sem qualidades. E isso para que aprendamos a partilhar e precisar uns dos outros.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O QUE É SER ZEN?

O zen-budismo pode significar uma fonte inspiradora para o paradigma ocidental em crise bem como para a vida cotidiana. Isso porque o zen não é uma teoria ou filosofia. É uma prática de vida que se inscreve na tradição das grandes sabedorias da humanidade. O zen pode ser vivido pelas mais diferentes pessoas, simples donas de casa, empresários e pessoas religiosas de diferentes credos.
O centro para o zen-budismo não está na razão, tão importante para a nossa cultura ocidental. Mas na consciência. Para nós a consciência é algo mental. Para o zen-budismo cada sentido corporal possui a sua consciência: a visão, o olfato, o paladar, a audição e o tato. Um sexto é a razão. Tudo se concentra em ativar cada uma destas consciências, a partir das coisas do dia a dia. Possuir uma atitude zen é discernir cada nuance do verde, sentir cada cheiro, aperceber-se de cada toque. E estar atento às perambulações da razão no seu fluxo interminável.
Por isso, o zen se constrói sobre a concentração, a atenção, o cuidado e a inteireza em tudo aquilo que se faz. Por exemplo, expulsar um gato da poltrona pode ser zen; também libertar os cachorros do canil e deixá-los correr pelo jardim. Conta-se que um guerreiro samurai antes de uma batalha visitou um mestre zen e lhe perguntou: “Que é o céu e o inferno”? O mestre respondeu: “Para gente armada como você não perco nenhum minuto”. O samurai enfurecido tirou a espada e disse: “Por tal senvergonhice poderia matá-lo agora mesmo”. E aí disse-lhe calmamente o mestre: “Eis aí o inferno”. O samurai caiu em si com a calma do mestre, meteu a espada na bainha e foi embora. E o mestre lhe gritou atrás: “Eis aí o céu.”
O que a atitude zen visa é a completa integração da pessoa com a realidade que vive. Deparamo-nos no meio de diferenças, compartimentando nossa vida. O zen busca o vazio. Mas esse vazio não é vazio. É o espaço livre no qual tudo pode se formar. Por isso não podemos ficar presos a isto e aquilo. Quando um discípulo perguntou ao mestre “quem somos?”, ele respondeu apontando simplesmente para o universo: “Somos tudo isso”. Você é a planta, a árvore, a montanha, a estrela, o inteiro universo. Quando nos concentramos totalmente em tais realidades, nos identificamos com elas. Mas isso só é possível se ficarmos vazios e permitirmos que as coisas nos tomem totalmente. O pequeno eu desaparece para surgir o eu profundo. Então somos um com o todo. Este caminho exige muita disciplina. Não é nada fácil ultrapassar as flutuações de cada uma das consciências e criar um centro unificador.
Há uma base cosmológica para a busca desta unidade originária. Hoje sabemos que todos os seres provêm dos elementos físico-químicos que se forjaram no coração das grandes estrelas vermelhas que depois explodiram. Todos estávamos um dia juntos naquele coração incandescente. Guardamos uma memória cósmica desta nossa ancestralidade.
Depois, sabemos que possuímos o mesmo código genético de base presente em todos os demais seres vivos. Viemos de uma bactéria primordial surgida há 3,8 bilhões de anos. Formamos a única e sagrada comunidade de vida. Ao buscar um centro unificador, o zen nos convida a fazer esta viagem interior. É excusado dizer que tudo isso vale para todos, mas principalmente para mim.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

LOBO NÃO COME LOBO.

Todos conhecem o lobo e o cordeiro. Ao menos em figuras ou em programas de televisão. O lobo é símbolo da maldade, do poder e da destruição. O cordeiro é o símbolo da mansidão e da paz. Muitas histórias foram montadas com esses dois símbolos. Muitas outras serão construídas, porque esses animais simbolizam nossa humanidade lobo e cordeiro. Humanidade formada de lobos e cordeiros. A sociedade atual está construindo novas histórias de lobos e cordeiros. Sempre há lobos procurando cordeiros para desculpar-se ou para esconder sua fome de poder e destruição. Como nos tempos passados, as fogueiras estão acesas. Esperando vítimas. É preciso encontrar bruxas para justificar as queimas e a fome de poder. É preciso encontrar cordeiros que se calem ou aguentem as mentiras, as denúncias falsas e as trapaças dos lobos.
Lobos se entendem com lobos. Uma organização de sociedade democrática entre lobos e cordeiros não é possível, e nem pode existir. Mesmo sendo os cordeiros em número muito maior, não aguentarão a pressão e o poder destruidor dos lobos. Os cordeiros serão sempre culpados por tudo o que acontece na sociedade. No final dos fatos há sempre um lobo comendo um cordeiro, justificando que ele é o culpado. Vivemos num Brasil, numa sociedade, numa comunidade bem pertinho de nós. Sabemos distinguir os lobos e os cordeiros? Ou pior, não fazemos parte da matilha de lobos que se apresentam com aparência de cordeiros? Não fazemos parte, inocentemente ou maldosamente, dos lobos que sempre tentam mandar em nosso Brasil e em nossa comunidade? Uma democracia entre lobos é possível. Eles se defendem entre si e se apoiam.
Cordeiros se entendem com cordeiros. Uma sociedade entre cordeiros é possível. Há um equilíbrio de poder entre eles. Todos se aceitam como iguais e se defendem uns aos outros. Não terão que se defender contra os lobos. Vivemos num Brasil, numa comunidade, onde estão presentes os cordeiros. Defendemos os cordeiros? Defendemos os sem teto e sem terra, os sem saúde e sem remédio, os sem trabalho e sem alimentos, os sem voz e sem vez, ou também fazemos parte dos lobos que, através dos meios de comunicação e da política, diariamente estão condenando e culpando os cordeiros pela desordem social? Se estamos no lado dos acusadores, é sinal evidente que fazemos parte da matilha dos lobos.
Crer numa sociedade sem lobos. É possível. Não em nível mundial e nem nacional. Onde está a corrupção ali estão os lobos. Nem em nível de sociedade grande. Podemos sonhar a utopia de uma sociedade sem lobos somente ali pertinho de nós. Ali na comunidade pequena, na vizinhança, na família, no ambiente de trabalho, podemos criar um clima de paraíso e de um novo céu e nova terra. Que bonito o patrão sentar-se junto com o operário, o pai junto com o filho, o vizinho com o vizinho! É possível! Há experiências lindas, em tamanho pequeno, de eliminação de diferenças entre lobos e cordeiros, onde se pode criar uma sociedade de irmãos e irmãs, que se respeitam e se amam. Esse é o sonho de Deus. O sonho que toda pessoa humana normal sonha junto com Deus.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

ARGENTINA ALÉM DO TANGO.

Meu encanto por Buenos Aires existe e se mantém inalterado ao longo dos anos. Conheço igualmente algo da Argentina profunda. Não apenas a turística e bela Bariloche, mas outros recantos da paisagem majestosa da Patagônia, além de cidades do interior: Mendoza, Salta etc. Por tudo isso, nunca deixa de chocar-me como os anos da ditadura militar conseguiram ser tão cruéis e sangrentos neste país de tanto desenvolvimento e povo tão politizado. Em recente viagem, trouxe de lá um livro que é o pungente relato de uma missionária francesa que escapou da morte fugindo para a França no último minuto.
Tal não foi a sorte de duas outras irmãs de sua congregação. Uma delas, Alice Domon, de apelido Caty, foi presa quando manifestava sob as janelas do palácio presidencial juntamente com as mães da Praça de Maio. Um dos manifestantes era um frio e cruel militar infiltrado, o capitão Astiz, apelidado Gustavo Niño, que conquistou a confiança das mulheres e depois entregou a lista de seus nomes às forças da repressão.
Quando a irmã Caty foi presa, estava em casa de outra irmã da congregação, Léonie, pessoa de idade e completamente alheia a militâncias políticas e manifestações públicas. Prenderam as duas, das quais nunca mais se soube nada. Nos jornais puseram uma foto de ambas com uma declaração que as forçaram a assinar. Com visíveis marcas de tortura, a fotografia chocou o país.
A partir daí, Irmã Ivone nunca mais soube de suas coirmãs. Foi nessa ocasião que um homem simples do bairro onde trabalhava avisou-a de que a estavam procurando. Foi questão de horas, o tempo que lhe permitiu, depois de alguma hesitação, embarcar num avião e desembarcar em Paris.
Lutou durante anos, denunciando a barbárie que se passava no país onde escolhera viver e entregar sua vida pelo Reino de Deus. Foi a Genebra, às Nações Unidas, aos EUA. Seus depoimentos foram peças importantes para que a ditadura argentina fosse sendo desmontada. A grotesca Guerra das Malvinas, onde muitíssimos jovens argentinos perderam a vida, foi a pá de cal que desmascarou a ilegitimidade daquele governo.
Passaram algumas décadas antes que Irmã Ivone soubesse o que realmente acontecera com suas duas irmãs. Logo após a foto que circulara nos jornais, foram levadas assim como todas as outras senhoras que, diante da Casa Rosada, exibiam a própria orfandade dos filhos e netos desaparecidos em um avião. Lá, após dopadas e despojadas de suas roupas, foram atiradas do avião no Rio da Prata. As correntes levaram os cadáveres para perto do delta e o corpo de Léonie foi reconhecido. Não o de Caty. Ivone soube do destino de sua amiga apenas pelo relato de uma prisioneira que havia conseguido fugir.
Após a volta da democracia na Argentina, pudemos ver notícias de vários cemitérios encontrados em diversos pontos do país. Dali saíam cadáveres “desaparecidos” que eram procurados há décadas. Com eles, enterrada estava também a dor dos parentes, familiares, amigos que choraram durante anos, décadas, a morte sem cadáver de seus entes queridos.
O depoimento de Irmã Ivone é forte e impressionante. Após o final da ditadura, essa corajosa mulher voltou à Argentina e lá vive até hoje, trabalhando junto aos pobres, com desvelo e amor. A memória das duas mártires com quem conviveu e de cuja amizade privou a sustenta na incansável luta pela liberdade de um povo que deseja ser livre e que tem todas as condições para sê-lo, se não o impedisse uma e outra vez a crueldade dos ditadores e dos donos do poder.
A Caty, Léonie e Ivone, nossa mais sentida e emocionada homenagem, assim como a todos os mártires da luta pela liberdade que regaram com seu sangue o solo do sofrido continente latino-americano.